Feridas narcísicas – por Gustavo Adolpho Junqueira Amarante

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O crescimento e o amadurecimento pessoais (e também sociais), processos permantes e quase ilimitados, não se constituem de modo fácil e indolor. Desde um tempo fugidio da memória, somos forçados a conviver com frustrações que se iniciam com as que se associam à sobrevivência ou auto-preservação e simultâneamente, com as que se ligam à busca de prazer e evitação de desprazer. Este sofrimento primitivo, introdução ao mundo real, dá-se num momento da vida em que, de algum modo, fantasiamos possuir uma onipotência, que contrasta flagrantemente com a dependência absoluta de outros. Assim se instalam as primeiras feridas narcísicas, impostas por uma realidade que desconhecemos, por um outro que não reconhecemos, e contra os quais desenvolvemos forte sentimento de ódio e desejo de destruição.

Na medida em que a realidade se revela e o outro se diferencia de nós mesmos, percebemos que aquele e aquilo que por vezes odiávamos, são também os objetos que nos sustentam e que nos amam. Passamos então a experimentar uma intensa vivência de culpa por agredir e odiar o que descobrimos também amar. Com a culpa aparece o desejo de reparar o dano imaginário causado, tudo envolto em angústia, o motor do desenvolvimento de nossas relações primeiras. Ódio, culpa, amor e reparação, permeando um mundo em parte fantasiado e que progressivamente ganha realidade, formam o alicerce da singularidade de cada um de nós.

Borrões intensos e indiscerníveis, terríveis e amedrontadores, transformam-se em imagens nítidas, do mesmo modo que uma miríade de sons incompreensíveis, em algum momento se constituirá em palavras e linguagem. Longo é o caminho dos primeiros meses de vida, quando se instala na memória, na memória obscura e turva das sensações difusas e confusas, o padrão de referência de todas as experiências por vir. Sem perceber, à ele retornamos sempre que a realidade nos infligir nova ferida narcísica, novo arranhão na onipotência infantil, novas realidades e novos desafios.

Aos cinquenta e quatro anos de idade, reflito sobre as minhas próprias feridas narcísicas, as antigas e as recém abertas. Vejo (e sorrio diante da evidência da perda da onipotência imaginada) os incontáveis retornos aos tempos borrados da aurora da minha vida. Sinto novamente o ódio primevo, o desejo de destruir, a descoberta do amor e da culpa, e o desejo de reparar. Sinto uma vez mais a “angústia de quem vive”, e sigo adiante. Percebo que no refazer esses caminhos arcaicos, a dor re-experimentada transforma sem alterar e altera sem transformar: reafirmo minha singularidade em meio à tantas outras singularidades. Descubro e redescubro que viver não é fácil, é apenas possível.

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