PERVERSÃO E LAÇOS SOCIAIS: Uma tentativa de articulação
Monografia
de conclusão do curso Formação em Psicanálise
Marta Quaglia Cerruti
Orientadora: Maria Helena Saleme
Novembro de 2002
"Quando se formula que a ética da psicanálise é uma ética do desejo, fundada no desejo e não no "bem supremo", como enuncia Lacan, o que se encontra em pauta é uma concepção do sujeito como diferença e singularidade." (Joel Birman).
Para discorrer sobre as possíveis articulações entre a psicanálise e o campo social deve-se ter em conta, desde o primeiro momento, a concepção de um sujeito absolutamente singular, inserido em um campo estritamente intersubjetivo. Se, do ponto de vista psicanalítico, a subjetividade se constitui entre o campo pulsional e o campo simbólico, sendo este último aquele que acolhe a força pulsional, pode-se postular que os emblemas e valores da ordem social são fundamentais no processo de subjetivação.
A pulsão enquanto um "espaço virtual" entre os registros somáticos e psíquicos, é uma força que exige trabalho do aparelho psíquico para que seja representada. Ou seja, para que ocorra uma passagem das excitações corporais para o universo representacional esta força deve ser, de alguma maneira, organizada em representações. Para a constituição do campo psíquico enquanto tal, é fundamental que esta força seja ordenada através de seus representantes-representações. E, para tanto, é preciso destacar o papel do Outro: é ele quem acolhe esta força e, através de operações interpretativas, permite a inscrição desta no campo simbólico.
Em suas teorizações iniciais, Freud postulou que haveria uma possível harmonia entre a força pulsional e as representações, uma vez que esta força poderia ser dominada pela interpretação e pelo acesso a estas representações. Com a articulação do conceito de pulsão de morte já não é mais possível pensar em tal harmonia. E isto se refere a condição estrutural do desamparo do ser humano, pois há sempre um descompasso entre a exigência da força pulsional e a capacidade simbólica.
O conceito de pulsão de morte, silenciosa e sem representação no campo psíquico, marca a eterna desarmonia entre os registros pulsionais e simbólicos. Isto se traduz em postular a existência de um conflito estrutural, e não conjuntural, entre os registros da pulsão e da civilização. Um conflito jamais ultrapassado, no qual o sujeito está irredutivelmente lançado em sua condição originaria de desamparo.
A proposta deste texto é refletir sobre os destinos desta força pulsional, e sua articulação com os emblemas oferecidos pela ordem social contemporânea. Um breve zoom sobre o campo social da atualidade evidencia o culto exacerbado da imagem, ancorado em um investimento ilimitado no eu. Há uma necessidade, cada vez mais urgente, de transformar o eu em objeto de admiração no campo social, uma vez que o sujeito é reconhecido pelo que parece ser, sempre munido de parafernálias de ultima geração e sorriso estampado nas revistas da moda.
E é justamente neste campo social definido pela imagem, que sacrifica a substância afetiva em detrimento do visível, que pode-se tentar articular a questão da perversão. O que se assiste hoje é a edificação de uma cultura que prega o evitamento da dor e do sofrimento. Através das medicações psiquiátricas busca-se desesperadamente sedar angústias, recusar conflitos, negando, dessa forma, a condição estrutural do desamparo. Os emblemas oferecidos por este campo social, neste sentido, podem se articular a uma forma perversa de existência, uma vez que a ordem social contemporânea pretende obturar a condição estrutural do desamparo.
Estas reflexões se iniciam com uma breve discussão sobre a assunção da subjetividade como conceito, o que abre o campo possível para que a teoria psicanalítica se estabeleça. Nos desenvolvimentos teóricos da psicanálise vai-se articulando, de maneira radical, que não se trata de pensar o sujeito em conflito entre seus impulsos e a ordem moral vigente. Trata-se, sim, de um sujeito fragmentado em pulsões e identificações. E é do reconhecimento desta condição que é possível que qualquer ética se articule.
Discorrer sobre a questão da perversão e sua articulação possível, na contemporaneidade, com o mal-estar que nos habita assumiu, de início, o caráter de uma queixa melancólica pela revolução que não ocorreu. Mas, como Freud (1915) aponta em Luto e Melancolia, tanto o luto como a melancolia se originam de uma perda. A diferença se dá na medida em que, o trabalho de luto pressupõe a aceitação e o reconhecimento da perda do objeto, o que implica reconhecer a própria condição de impotência e finitude. Já o melancólico se torna prisioneiro do objeto que perdeu, e é incapaz de se livrar deste sofrimento.
A pretensão deste trabalho, que pode ser considerado como uma pauta possível para uma pesquisa futura, é se desprender das entranhas melancólicas, que condenam e não vislumbram futuro para a contemporaneidade. Neste sentido, um trabalho de luto. Luto da ilusão de uma revolução, luto da busca do Pai, tão condenado hoje por seu padecimento. E dizer isto supõe compreender o trabalho de luto como aquele que abre campo para que se possa entrar na ordem do relativo, pois uma crença cristalizada se desfaz, e cria condições para que a palavra se articule como instrumento mediador por excelência. A tarefa é a tentativa de elaborar uma reflexão sobre questões que nos atingem cotidianamente, e que se articulam ao luto de um certo modo de viver, e se inserir no jogo social. Só assim vislumbra-se um futuro possível: acreditando que a perda do conhecido implica em aceitar a condição de que o objeto é substituível, o que desemboca em uma inserção visceral na constituição do laço social.
Subjetividade: o surgimento de um conceito
São inúmeras as dificuldades para uma definição
dos critérios que definem os modos de subjetivação, o
que revela a complexidade que o termo comporta. São vários os
critérios possíveis: filosóficos, históricos,
culturais, antropológicos. A intenção é ressaltar
aqui, a partir de uma observação panorâmica das concepções
clássicas e modernas da subjetividade, o que nos permite delinear o
surgimento do espaço da singularidade como aquele no qual, o sujeito
biológico, ao se desbaratar no ser pulsional, lança-se no desamparo.
Para o pensamento medieval a conservação da existência humana era dependente da açõa contínua de Deus. O mundo era criação de Deus, e o que fundamenta o sujeito é referir-Lhe a própria vida. Ou seja, a ordenação da existência do sujeito é fundamentada e criada pela soberana existência de Deus; não há, nesta sentido, a concepção moderna da autonomia do sujeito, pois este se define como obra de Deus soberano.
"Para lá de todas as experiências encontra-se sempre o mesmo pensamento: o conjunto da ordenação da existência humana tem que ser fundamentada e criada pela soberana transcendência de Deus" .
De
um ponto de vista estritamente religioso, as vicissitudes da vida individual,
familiar e social, estão inseridas no curso do ano litúrgico.
O que atualiza, de forma simbólica, os momentos históricos,
é a fé cristã, construída como verdade universalmente
admitida. O sujeito não é concebido como autônomo, mas
sim como aquele que legitima a obra de Deus: criado por Ele e representante
de Sua vontade. As instituições que regem a vida em comum são
ancoradas em dois grandes ideais: os ideais da Igreja e os ideais do Império,
representantes máximos da ordem divina.
Esta organização da subjetividade, e a atitude humana e cultural
que a define- aqui exposta em linhas bastante gerais- começa a se desagregar
no século XVI, adquirindo no século XVII uma imagem que pode
ser mais claramente delineada. Luís Cláudio Figueiredo toma
como referência para discorrer sobre esta desagregação
a "abertura de espaços, e o conseqüente processo de desintegração
das civilizações fechadas". O homem começa a descobrir
e conquistar novos continentes, já não sente o desconhecido
à sua volta como algo proibido. A astronomia descobre que a terra não
é o centro do mundo, mas sim gira à volta do sol. Neste sentido,
o mundo começa a se estender e desfazer seus contornos. A ciência,
cada vez mais, vai se separando da ordem religiosa e se constituindo como
campo autônomo da cultura.
A partir destas rupturas, estimuladas pelo desejo de explorar, vai se delineando o sujeito como aquele que se aventura em um mundo infinito, com a possibilidade de dominá-lo. Se antes o homem se circunscrevia a domínios conhecidos, pois o mundo possuía uma grandeza limitada e o infinito era compensado pela existência de Deus, o desconhecido carrega, agora, para o homem a possibilidade de dominação.
Este movimento vai delineando a consciência da personalidade, atributo da Idade Moderna. O indivíduo torna-se objeto de interesse, observação e análise. É senhor de si próprio, autônomo. Torna-se o sujeito da ação, ao qual é concedido o direito de criar e arriscar. O eu se torna medida do valor da vida.
Romano
Guardini ressalta o conceito de Natureza como elemento fundamental da imagem
da existência na Idade Moderna. A partir da expansão de fronteiras
o mundo deixa de ser criação divina e torna-se Natureza; "
obra do homem deixa de ser um serviço dado em obediência a Deus
e passa a ser criação, o homem, até aqui adorador e servidor,
torna-se criador."
A Natureza refere-se ao supremo, conjunto experimentado como pressuposto da
existência, o próprio homem pertence à Natureza. É
a partir do reconhecimento que faz do conjunto dos fenômenos da natureza
é que a domina. Ou seja, a partir do reconhecimento de sua existência
cria-se a possibilidade de domínio da Natureza; o sujeito se separa
do todo que forma com ela e torna-se o responsável último por
sua existência.
Isto
abre campo, ainda segundo Guardini , para outro elemento fundamental de significação
da existência na Idade Moderna: a subjetividade. O conceito de subjetividade
surge como aquele que define o humano como capaz de se desenvolver a partir
de iniciativa própria, uma vez que a autonomia passa a ser o que fundamenta
o sentido da existência. A concepção do mundo como Natureza
situa o homem como senhor da própria existência, surge o mundo
da ação, e o conceito de cultura justifica e ancora a construção
da existência como obra humana.
"Ao ver o mundo como Natureza, o homem situa o mundo em si mesmo; ao
compreender-se como personalidade, torna-se o senhor da própria existência;
na vontade de cultura empreende a construção da existência
como obra sua."
A história da subjetividade moderna concebe o conhecimento no espaço da representação, uma vez que o homem passa a ser o construtor do conhecimento e o produtor de si mesmo, o responsável último por sua própria existência. Isto implica em realizar-se como tarefa histórica, e a razão é o elemento de emancipação por excelência.
A
ciência moderna traz uma nova maneira de conceber o mundo, ancorada
na vitória da racionalidade, e o conteúdo do conhecimento é
sua representação, ou seja, a substituição do
objeto na mente. A consumação do projeto da modernidade se dá
pela razão planejadora, e toda a realidade e toda a experiência
se reduz a homogeneidade e coerência das representações.
"As aporias do grande racionalismo moderno levam ao deslocamento do pensamento
para o domínio prático-histórico. Este deslocamento,
que se efetivou no ideal programático do Iluminismo, explicitou um
traço estrutural da modernidade, presente desde o seu início,
mas de modo incipiente: a afirmação da primazia da representação
sobre o ser traz como corolário a idéia de que é o próprio
homem que se sustenta em seu ser, que o homem é o responsável
último por sua existência. Ao contrário do pensamento
medieval, no qual a conservação do homem na existência,
por ser a existência humana situada no tempo contingente e condicionada
a cada instante, era dependente da ação contínua de Deus."
Cada vez mais se evidencia uma visão do homem considerado como sujeito abstrato, isto é, um sujeito cindido entre sua individualidade e sua posição de agente de uma racionalidade que visa dominar a natureza, com o objetivo de alcançar a máxima funcionalidade da sociedade. A relação com a Natureza deixa de ser experiência individual, tornando-se abstrata e formal, objetiva e técnica. Louis Dumont coloca que o individualismo moderno é psicologizado, atomizado, idiossincrático e igualizado.
Os
acontecimentos da vida humana (concepção, nascimento, doença
e morte) são pautados por processos biológicos, estudados por
uma ciência e uma técnica médica que pretende, em última
instância, vencer racionalmente a vida e a morte. Romano Guardini utiliza
o exemplo do moderno sistema de seguros como algo que ilustra esta questão:
"todas as eventualidades da vida estão previstas, calculadas segundo
sua freqüência e sua importância de modo a serem inofensivas".
O que vai se delineando é uma crescente objetivação do
sujeito, e esta racionalidade objetivante que se pretende universal vai, cada
vez mais, negar a história singular de cada sujeito. Segundo Luís
Cláudio Figueiredo:
"...ficava de fora, irrepresentável, o corpo humano e suas funções, nos seus automatismos e na sua impulsividade e, ainda, a alma e seus caprichos, suas ambigüidades, suas caraminholas e invencionices. A verdadeira "natureza humana" só podia se dar a conhecer no campo da vida civilizada e sob a forma de representações claras e distintas. Aliás, não só a natureza humana, mas toda a natureza ficava assim submetida ao racional."
O Pós-moderno
" As portas são inumeráveis, a saída é uma
só mas as possibilidades de saída são tão inumeráveis
quanto as portas. Há um propósito e nenhum caminho: o que denominamos
caminho não passa de vacilação." (Franz Kafka)
As tragédias que vão se sucedendo ao longo do século
passado vão denunciando um desfecho dramático para o ambicioso
projeto de subjetivação ancorado na racionalidade. O que vai
se delineando é que a vitória da racionalidade, a utopia de
uma igualdade perfeita produzida pela razão e governada pala técnica,
segundo Durval Mazzei Nogueira Filho , "desembocam na radicalização
do individualismo e se despreocupam dos significados transcendentais, sejam
eles no campo social, cultural, existencial e íntimo."
Não
é possível estabelecer um ato inaugural que defina a chamada
pós-modernidade. Deve-se entender esta atitude a partir do desencanto
de sonho arrogante da racionalidade antropocêntrica. A tentativa da
modernidade de apagar diferenças e aplacar as paixões, tidas
como manifestações selvagens e não civilizadas, naufraga
em campos de batalha, intolerância e violência.
"As tragédias que se sucedem parecem demonstrar que a razão
emancipatória acabou por voltar-se contra a humanidade que deveria
realizar e assim revelou o lado sinistro do pacto fáustico da modernidade."
O homem não é o que a razão revela, uma vez que o homem é ser absolutamente particular, determinado por algo que não deriva de nada material, apesar de todas as tentativas de reduzi-lo a categorias, sejam elas mecânicas, biológicas, psicológicas, sociológicas.
"No sentido mais amplo do progresso do pensamento, o esclarecimento tem perseguido sempre o objetivo de livrar os homens do medo e investi-los na posição de senhores. Mas a terra totalmente esclarecida resplandece sob o signo de uma calamidade triunfal."
Pode-se iniciar o delineamento desta questão, sem perder de vista sua complexidade, a partir de uma constatação imediata: não existem mais valores universais que sustentem as ações. Ora, se os valores universais denunciam sua insuficiência, o que se testemunha no mundo contemporâneo é o predomínio de uma sociedade narcisicamente organizada (C. Lasch) . Os valores individuais tem preponderância sobre quaisquer outros, e a legitimidade para ocupar um lugar no mundo é respondida pela capacidade de consumo que cada um possa ter.
A mídia anuncia produtos como se o acesso à eles fosse possível à todos, e o sujeito busca seu reconhecimento social através da imagem que os produtos de consumo lhe conferem. Isto gera uma extraordinária expansão do imaginário: o mundo transformou-se em um conjunto infindável de mercadorias sujeitas a apropriação, criando a expectativa ilusória que tudo está disponível para a plena satisfação.
"O consumo, assim compreendido, é primordialmente consumo de signos. Ocorre uma proliferação de signos que se transportam aos bens de consumo cotidianos, tais como, felicidade, sucesso, prazer, exotismo, belezas e fantasias, remetendo ao que podemos chamar de mundo dos sonhos, sendo cada vez mais difícil decifrar seu uso original ou funcional."
Paralelamente a isto, a crescente cientifização e tecnologização da vida cotidiana prometem a garantia de uma felicidade plena, sem fraturas. O sujeito se agarra a promessa da ciência, que supõe alcançar a verdade sobre o humano. Pode-se dizer que, o que ordena o laço social contemporâneo é a ciência.
Esta crise de sentido, tanto ético quanto existencial, que define o mundo a parti do que já foi, condenando o entendimento de nossa época a partir do sufixo pós, não deve ser tributada a melancolia de uma revolução que não veio. A não existência de valores universais pode fazer nossa degradação, mas também carrega em si novas possibilidades. Esta configuração lança o desafio da construção de uma ética, que tem em conta os progressos técno-científicos. Não uma ética homogeneizante, mas aberta à diferença. E esta é uma possibilidade que a psicanálise traz, ampliando este debate.
O Outro: terra estrangeira?
"Pode a existência do outro como tal colocar-me em perigo?...Pode,
sob uma condição: a de que nos recessos mais profundos da fortaleza
egocêntrica de alguém uma voz repita suave, mas incansavelmente,
que nossas paredes são feitas de plástico, e nossa acrópole
de papel machê." (Cornélio Castoriadis)
Como
foi dito anteriormente não é possível estabelecer, historicamente,
um ato inaugural que indique o início da pós-modernidade. Contata-se,
apenas, que a ausência de crenças que caracteriza a cultura contemporânea
é dramática, e a desumanização faz parte do cotidiano.
A tentativa que resta, portanto, é procurar delinear o que foi expulso
do projeto moderno.
São inúmeros os movimentos sócio-culturais que vão
denunciando a exclusão da singularidade do sujeito no projeto moderno.
Pode-se citar desde a literatura, as artes plásticas, o cinema, até
os campos sangrentos das guerras, do terrorismo, da xenofobia e da intolerância.
Todos esses movimentos sepultaram definitivamente a concepção
de que a razão científica desembocaria em uma humanidade emancipada.
Tal razão, baseada no discurso científico, supostamente emancipatória,
é justamente o que se volta contra o sujeito que deveria realizar.
Hanna
Arendt , em "Eichmann em Jerusalém", nos oferece um retrato
precioso daquilo que retorna pela porta dos fundos: ao relatar o julgamento
de um funcionário nazista, responsável pela deportação
e, posteriormente extermínio de milhares de judeus, algo inesperado
se descortina. O que se esperava encontrar neste tribunal era um psicopata
sem escrúpulos, um assassino cruel e insano, e o homem que surge é
não mais que um funcionário mediano, que cumpre ordens. E, no
cumprimento de tais ordens, alegou sempre no decorrer do julgamento que se
considerava "inocente no sentido da acusação". E,
quanto a sua consciência, "ele se lembrava perfeitamente que só
ficava com a consciência pesada quando não fazia aquilo que lhe
ordenavam - embarcar milhões de homens, mulheres e crianças
para a morte, com grande aplicação e o mais meticuloso cuidado."
Se a hegemonia da razão e o discurso científico se outorgam
o poder de exorcizar a "besta selvagem", confinando-a à margem
da vida civilizada, a partir da reflexão sobre este julgamento podemos
antever a existência da "besta" no homem, em cada homem. E
a descoberta do inconsciente pode ser considerada o corolário dessa
descoberta do Outro em si.
A grande descoberta de Freud é de que o homem é impelido por algo que lhe é estranho. Segundo Caterina Koltai:
"É no interior de si mesmo, em seu aparelho psíquico, que o homem vive com inquietação seu sofrimento que lhe é estrangeiro. A psicanálise põe em jogo de modo específico a complexidade das relações com o Outro, a ponto de podermos afirmar que não há relação psicanalítica se não for aí percebida a presença/ausência do Outro enquanto Outro, do estrangeiro enquanto estrangeiro. Estrangeiro em si mesmo, essa pode ser uma denominação para delimitar a posição do neurótico, do psicótico ou do perverso, na medida em que cada um deles, em sua posição, se encontra em exílio relativamente a seu estatuto de sujeito."
A partir da conceituação de que há uma determinação, inconsciente, que impõe ao sujeito não ser mais "o senhor em sua própria casa", admite-se a existência de um lugar, no interior de cada um, povoado por imagens, paixões e contradições. Este sujeito não corresponde ao ideal da supremacia do racional: é um sujeito sim, dotado de razão, mas cuja razão vacila em seu cerne.
"Este sujeito não é nem o autômato dos psicólogos nem um indivíduo cérebro-espinhal dos fisiologistas, nem tampouco o sonâmbulo dos hipnotizadores nem o animal étnico dos teóricos da raça e da hereditariedade. É um ser falante, capaz de analisar a significação de seus sonhos, em vez de encará-los como vestígios de uma memória genética. Sem, dúvida, ele recebe seus limites de uma determinação fisiológica, química ou biológica, mas também de um inconsciente concebido em termos de universalidade e singularidade" (Elisabeth Roudinesco).
Neste sentido, Eichmann denuncia a presença desse paradoxo no sujeito: não se trata de uma criatura sem qualquer traço de humanidade, mas sim de um sujeito cuja normalidade denunciava a própria loucura. Seu juramento de fidelidade a um sistema que fez dele um instrumento servil de um crime horroroso é a expressão de como o culto da normalidade, levado ao extremo, é o que mais se aproxima da loucura. O nazismo fez uso da ciência e da razão, supostamente inseridas na mias completa normalidade, a favor do genocídio. O que se presenciou, assim, como aponta Roudinesco , foi uma inversão da norma sem precedentes, na qual a própria inversão tornou-se norma.
É sob esse aspecto, de que nada se aproxima mais loucura que o culto
extremado da normalidade, que a conceituação freudiana rompe
com os saberes oficiais, extraindo sua força do conhecimento de fenômenos
até então relegados à marginalidade: os sonhos, os chistes,
os atos falhos. O sujeito freudiano se constitui no encontro traumático
com o abismo do Outro que deseja, o que, como Laplanche (1992) aponta, como
um inconsciente entendido como um estranho em mim mesmo.
O primeiro momento da teorização freudiana por excelência
se caracteriza pelo abandono da teoria da sedução enquanto acontecimento
traumático calcado na materialidade dos fatos, abrindo campo para que
a realidade psíquica seja afirmada como algo que já encerra
em si sua própria determinação. Ou seja, a formulação
da realidade do núcleo inconsciente que determina o sujeito. Há
neste campo grande atividade psíquica, que pode associar, criar e interpretar.
Enquanto que, em sua formulações anteriores, Freud postula que
a força do psiquismo decorreria da articulação de determinações
factuais, a transformação que se opera é na própria
formulação do inconsciente, que em si já é suficiente
para conferir realidade ao psiquismo.
A partir de 1920, com a conceitualização da pulsão de morte, evidencia-se o eterno descompasso entre a demanda pulsional e o campo simbólico, definido a essência do mal- estar na civilização.
A constituição do campo psicanalítico
O postulado básico da tradição neuropatológica
do século XIX era de que os sintomas neuróticos tinham sua origem
em lesões anatômicas específicas. Nesse sentido, acreditava-se
que a lógica que organizava manifestações clínicas
nervosas era anatômica.
A
histeria surge como uma patologia que subverte este postulado: os sintomas
corporais da doença não obedeciam a esta lógica anatômica,
pois não possuíam a mesma regularidade esperada entre um sintoma
e uma lesão anatômica específica. Freud introduz a noção
de que a manifestação clínica da histeria é diferente
da manifestação clínica de ordem anatômica e formaliza
essa diferença.
A partir de Freud, a desordenação corporal da histeria é
compreendida como símbolo de algo não realizado, e seus sintomas
devem ser compreendidos dentro do campo da representação e não
no campo da anatomia. O sintoma histérico se produz a partir de outra
ordem corporal, na imagem do corpo.
Essa
diferença será formalizada a partir da formulação
de uma teoria que busca explicar os mecanismos psíquicos implicados
na constituição do sintoma, abrindo um espaço clínico
inédito.
Partindo da concepção de que há um encadeamento praticamente
linear entre a excitação que o organismo sofre e a reação,
Freud vê o sintoma histérico como algo que bloqueia este percurso,
resultante de um crescimento de excitação.
Em um primeiro momento da teoria este crescimento da excitação é atribuído a um acontecimento traumático real na vida do sujeito. Como o sujeito não reage afetivamente de pronto frente a esta situação, a lembrança do acontecimento permanece ativa na sua vida psíquica, formando um "corpo estranho" que fica destacado do processo associativo de recordações da consciência. Pode-se dizer que um afeto não suficientemente ab-reagido encontra no sintoma uma representação para poder se expressar.
O conjunto das representações forma uma trama, e se em algum momento o afeto fica estrangulado, cria um impedimento nessa trama. Como conseqüência, a representação e seu afeto correspondente ficam separados, este afeto se desencontra de sua representação. Este afeto irá buscar outra via de expressão, dando origem ao sintoma. Uma lembrança correspondente a um afeto não ab-reagido satisfatoriamente não estabelece nexo aparente com a rede associativa da consciência, dando origem ao sintoma: uma tentativa impossível de resposta à agressão imposta pelo trauma.
Esta
nova representação, o sintoma, guarda algum nexo lógico
com a representação apartada, nexo esse desconhecido pela consciência.
A representação apartada está presente no sintoma, as
lembranças continuam ativas de forma distorcida, daí dizer-se
que o sintoma é um símbolo mnêmico.
Para Freud o traumático é um processo no qual ocorrem, no mínimo,
duas experiências. Uma experiência traumática antiga na
vida do sujeito será revivida em outra experiência posterior,
sem um nexo aparente entre as duas. É enquanto lembrança que
a experiência se tornará traumática, e o sintoma é
a maneira através da qual o sujeito coloca em um ato um nexo simbólico
perdido. Portanto, o traumático é uma combinação
de duas representações: algo que se cria pela resignificação,
por meio da qual uma representação será eleita o símbolo
da outra.
Esta conceituação do traumático como um processo tem como postulado a teoria da sedução. A sexualidade é que tem um efeito traumático na vida de um sujeito: a criança é vítima de algum tipo de sedução, alguma investida sexual de um adulto. Como o sujeito, enquanto criança, desconhece o caráter sexual desta experiência, ele a considera inócua. Na puberdade esta primeira experiência será invocada por ocasião de outra experiência, sem que haja nexo aparente entre as duas. Este novo acontecimento, segundo Laplanche, "não necessariamente sexual, evoca por traços associativos a recordação do primeiro" . A etiologia da histeria estaria ligada, assim, a uma experiência prévia de sedução, que é resignificada por outra experiência a partir da puberdade, quando passa a ter significação que não possuía em sua origem.
Através da hipnose e posteriormente da sugestão, Freud inaugura uma via catártica que possibilita a expressão dessas lembranças patogênicas. Uma vez que as lembranças apartadas da consciência forem recuperadas e o afeto a elas associado for despertado em sua intensidade original plena, ocorrerá uma elaboração psíquica e o sintoma desaparecerá. É imprescindível que todo o colorido afetivo da lembrança seja reavivado para que afeto possa encontrar a sua representação, sendo dessa maneira expresso verbalmente. É preciso que um complexo formado pela lembrança, pelo afeto e pela palavra ocorra. A catarse seria alcançada à medida que o sujeito liberasse a lembrança apartada e restabelecesse o nexo simbólico entre ela e o afeto correspondente.
Ao
abandonar as técnicas da hipnose e da sugestão, Freud se depara
com o fenômeno clínico da resistência: a proximidade da
lembrança desperta emoções desagradáveis como
vergonha, auto-censura e dor psíquica. Nesse sentido, não se
trata da impossibilidade de fazer uma confissão difícil, mas
sim de estar diante de uma situação de conflito, traumatizante
por sua insolubilidade.
Dessa forma, o agressor não é algo externo, mas sim da ordem
de um pensamento, sensação, interesse, situação
que coloca o sujeito diante de uma situação de conflito da qual
vai querer se defender. A defesa esforça-se para manter fora da consciência
uma idéia que ameaça a integridade do ego.
A
defesa patológica é desencadeada a partir de uma excitação
de origem interna, que provoca desprazer. Quando o ego é noticiado,
é tarde, pois essa irrupção que vem de dentro o supera.
A situação traumática é provocada a partir do
sujeito, e o sintoma é a expressão simbólica de um conflito.
O sintoma neurótico assume o caráter de um compromisso entre
duas forças antagônicas: a sexualidade e uma instância
recalcadora relativa à moral consciente.
O recalque é reconhecido por seu destino, por intermédio de seus efeitos, entre eles o sintoma. Através desse processo, a representação que provoca desprazer e ameaça o ego é mantida à distância. A representação é enfraquecida no processo do recalcamento, uma vez que a sua carga é retirada, ficando fora do comércio associativo da consciência. O recalcamento produz uma dissociação entre o afeto e a representação à qual este pertence. O afeto não é recalcado, e pode ser deslocado para outra representação.
A ação do recalcamento se dá a partir de um crescimento de excitação que nasce no mundo interno, crescimento esse que gera desprazer. Uma representação incompatível com o ego é recalcada, seu afeto correspondente se liga a outra representação disponível na consciência, formando o sintoma. O recalque conta com um conflito, uma contra-carga. Este é o chamado recalque secundário.
Além disso, há uma atração exercida por representações inconscientes. Freud postula a existência do recalque originário, uma construção de ordem mítica que fala da fixação entre o corpo e o psiquismo. Uma fixação irá marcar o corpo com a representação, subvertendo a biologia. Neste sentido, é o recalque originário que estrutura um sujeito na cultura, imerso nas representações, criando a possibilidade de acesso à linguagem.
Portanto, o recalque secundário conta com uma contra-carga e com a atração da representação fixada.
As representações recalcadas não são destruídas e aparecem de maneira disfarçada na consciência. Esta representação recalcada retorna, deformada, sob a forma de sintoma. A manifestação clínica é símbolo de algo que não foi realizado, quando há, segundo Laplanche, "o recalque de uma determinada recordação e, em seu lugar, surge um sintoma, concebido efetivamente com o símbolo da recordação recalcada".
A teoria do trauma e da sedução foi definitivamente abandonada por Freud a partir de uma carta escrita a Fliess em 1897. Nela Freud descarta a teoria da sedução enquanto acontecimento real e postula que o traumático se inscreve no registro da fantasia. Ao abandonar a hipótese do trauma como algo acontecido, Freud propõe uma outra leitura da sexualidade humana, regulada pela busca do prazer e não apenas visando a reprodução da espécie. Segundo Joel Birman, "pelas fantasias, o sujeito teria uma atividade sexual desde sempre, que não se sobreporia ao imperativo de reprodução da vida, de maneira tal que esses dois imperativos existiriam como séries relativamente autônomas na subjetividade".
Esta ruptura constitui um novo espaço clínico, o da psicanálise propriamente dita, conferindo estatuto de verdade ao campo da representação. Freud afirma a existência de outra ordem corporal que não a biológica: a de um corpo representado.
A sexualidade se coloca como via para a investigação da passagem do registro corporal para o psíquico. É a sexualidade que confere uma articulação entre os planos biológico e representado, uma vez que se define como busca de prazer e evitamento do desprazer. Dessa maneira, não se caracteriza como um instinto e não se localiza no plano do corpo biológico.
O
corpo erógeno é um mapa construído sobre o corpo biológico.
O que nasce é um corpo, não um sujeito, que tem em si as possibilidades
de se tornar humano. A transformação deste corpo biológico
em um corpo erógeno vai depender do outro, que vai facilitar ou dificultar
a humanização.
O estado de desamparo de um recém-nascido se caracteriza por sua incapacidade
de uma ação específica para a satisfação
de uma necessidade; ele depende do outro para satisfazê-la. O grito
terá que ser decifrado, é uma descarga à espera de sentido.
Quando a mãe o entende (seja como fome, sede, frio etc.) há
uma nominação, a mãe vai nomear o que esse corpo recebe,
fundando experiências de prazer e desprazer.
Este corpo vivo, impactado pelo estímulo, tem a possibilidade de produzir signos que, com a ajuda do outro, se rearranjam para formar as representações. Portanto, a nomeação, a fala, constitui a matéria-prima da experiência psicanalítica.
Em 1900, com a publicação de "A interpretação dos sonhos" , Freud formaliza a maneira pela qual uma representação inconsciente se expressa no campo da consciência. Ao procurar um sentido para o sonho verifica que seus conteúdos se relacionam com a questão do desejo, no qual ele se realiza de maneira alucinatória.
O relato do sonho revela seu conteúdo manifesto, que está disfarçado pelo trabalho da censura. Esses conteúdos só podem aparecer na consciência sob uma forma disfarçada. Para tanto, o sonho reduz a quantidade da representações que nele aparece, burlando a censura. Enquanto formação do inconsciente, o sonho traz em si um conjunto de redes associativas; cada um dos elementos do sonho tem uma cadeia associativa. O trabalho do sonho é transformar idéias latentes em seu conteúdo manifesto.
"A interpretação dos sonhos é a via real que leva ao conhecimento das atividades da mente" , diz Freud. Essa questão abre um novo caminho para o estudo dos sintomas neuróticos.
Os mecanismos fundamentais de expressão das representações inconscientes são a condensação e o deslocamento.
Na
condensação uma figura ou idéia condensa várias
representações inconscientes diferentes, fazendo do conteúdo
manifesto do sonho uma tradução resumida. No deslocamento, os
valores das representações latentes são transferidos
para outras representações pertencentes ao manifesto.
Portanto, o exame do trabalho do sonho possibilita entender de qual maneira
as representações que estavam apartadas da cadeia associativa
retornam à consciência. O campo das representações
assume o estatuto de algo que é universal na psique, e não apenas
no campo da patologia.
O sonho, assim como os chistes e o ato falho, são levados ao mesmo
estatuto do sintoma, uma vez que neles a censura é burlada para que
o recalcado retorne distorcido ao comércio associativo da consciência.
A partir dessa formulação, a palavra sintoma passa a ser indício da existência do inconsciente. O sintoma neurótico é uma formação substitutiva que causa desconforto, pois quebra a continuidade egóica.
Tanto o sintoma neurótico como o sonho, o ato falho e o chiste põem em jogo os mesmos mecanismos: são deformações que têm marcas que permitem um caminho da associação para as representações que habitam o inconsciente .Segundo Laplanche, "nos sintomas neuróticos encontram-se as representações recalcadas que 'falam' deformadas pelos mecanismos de condensação e deslocamento".
O
inconsciente é o psíquico verdadeiramente real, é representação
por essência. É o fundamento estrutural do aparelho psíquico,
um aparelho representacional pelo qual circula energia. A consciência
tem como parte integrante os órgãos da percepção,
que conferem qualidade a essa energia. Este modelo funda a psicanálise
e a diferencia definitivamente da medicina clínica.
Ao conferir um sentido ao sintoma neurótico, Freud articula a psicanálise
e a linguagem. O sintoma neurótico é uma verdade que foi impedida
de ser dita de outra forma. Segundo Joel Birman, "o sintoma é
uma palavra aparentemente sem sentido."
Na articulação da primeira tópica freudiana a gramática do aparelho psíquico obedece às leis dos processos primário e secundário. O processo primário é o princípio da não contradição, da inexistência da negação, e nesse processo a relação da carga com a representação é livre. O processo secundário é regido pelo princípio da realidade, o que implica um adiamento da satisfação, e nele a relação da carga com a representação é ligada; conseqüentemente, é neste processo que há a apreensão de um significado.
Os
conteúdos do inconsciente são regidos pelo processo primário,
são representações de coisa, cujo acesso à consciência
se dá a partir de um rearranjo destas representações
em outro sistema, o pré-consciente. Os conteúdos do pré-consciente
são regidos pelo processo secundário, são aqueles cujo
acesso à consciência é permitido, sem que estes necessariamente
estejam presentes na consciência de pronto. Descritivamente os dois
sistemas são iguais, diferindo qualitativamente.
Entre os sistemas inconsciente e pré-consciente há a palavra,
o que significa dizer que no pré-consciente há um rearranjo
das representações inconscientes na palavra. É pela via
do reconhecimento posto em palavras que o inconsciente aparece.
Neste rearranjo das representações sempre ocorrem perdas, pois há o recalque entre um sistema e outro. Isto implica que algo nunca será recuperado, só inferido. Daí dizer que a psicanálise é reconstrutiva.
Nesta passagem das representações inconscientes para o pré-consciente é a linguagem que confere uma forma ao sintoma neurótico, ou seja, faz uma ponte que dá suporte ao sintoma neurótico.
Para a psicanálise, portanto, o sintoma deve ser escutado como algo que carrega uma verdade a ser revelada. "A nova clínica não pretende corrigir anomalias e subtrair sintomas, mas conferir para a experiência da loucura um lugar no universo da palavra e do sentido, restituindo seu estatuto de verdade"
A questão econômica
A questão do aspecto econômico, quantitativo, do funcionamento
mental é inicialmente discutida no "Projeto para uma psicologia
científica" . Neste trabalho Freud fala em uma tendência
à inércia e de um impacto dos estímulos endógenos.
No texto ele trabalha com a hipótese de que o sistema nervoso, ao receber
um estímulo, é capaz de dissipá-lo visando manter um
estado de repouso. Os estímulos endógenos (fome, sede etc.)
transgridem esta situação, obrigando o organismo a armazenar
um nível mínimo de energia no sentido de dissipar estes estímulos
que vêm de dentro. Esta possibilidade da inércia foi afastada
na construção da primeira tópica, uma vez que a possibilidade
de haver uma descarga total inviabilizaria a vida. O princípio da constância,
isto é, a capacidade de armazenamento de energia, surge como uma exigência
que se interpõe à descarga total.
Dentro desta perspectiva, era necessário estabelecer o ponto de articulação entre os registros biológico e da representação. Esta articulação se dá pela sexualidade: ela é a via que possibilita a investigação da passagem destes registros, uma vez que se define como busca de prazer e evitamento do desprazer. Dadas as especificidades da sexualidade no ser humano ela é única, dentre as funções biológicas, cuja descarga no organismo se articula através de uma representação psíquica.
Em "Três ensaios sobre a teoria da sexualidade" (1905), Freud define a sexualidade humana como distinta da de outros seres vivos. Isto porque no âmbito da sexualidade humana não há um objeto pré-determinado para que se alcance a satisfação, diferente da dos outros seres vivos, que obedece a um instinto e tem um objeto pré-determinado na busca de satisfação. Portanto, a escolha de um objeto no campo da sexualidade humana não está atrelada a um instinto mas inserida na constituição subjetiva.
Freud
estabelece o conceito de pulsão, rompendo com um saber baseado no instinto
- que enquanto função herdada se coloca a serviço da
perpetuação da espécie.
Há uma função vital em jogo - podemos tomar a fome do
bebê como exemplo para este modelo - que é a nutrição.
Esta função gera um efeito marginal, o prazer oral. A partir
daí instaura-se uma tendência a reativar este prazer. Neste sentido,
a sexualidade infantil se caracteriza por ser uma perversão de uma
função vital.
Esta perversão da função vital se formaliza a partir da concepção de apoio, que supõe que a satisfação da necessidade causa um prazer que acaba por transcender o puro e simples apaziguamento de uma tensão orgânica: é deste a mais que derivam as pulsões sexuais. Dentro dessa perspectiva, a articulação entre os registros biológico e representacional se dá pela via da sexualidade. Ela é, assim, a via que possibilita a investigação da passagem destes registros, definindo-se como busca de prazer e evitamento do desprazer. A sexualidade remete, portanto, a uma ordem não adaptativa, que subverte a ordem biológica, e coloca em evidência algo que é da ordem da representação.
Inserida neste quadro, a pulsão se define como sendo o representante psíquico de forças endossomáticas. Caracteriza-se por ser uma força contínua, uma exigência do trabalho de simbolização constante para o aparelho psíquico, e se localiza na fronteira entre o psiquismo e o corpo.
O que se evidencia é a busca, que a teoria psicanalítica empreendeu, para solucionar a relação entre os registros somático e psíquico, a partir da formulação de um "espaço virtual" entre essas duas ordens: o conceito de pulsão é descrito como "conceito limite" entre ambas. Neste sentido, um conceito que busca definir a mediação responsável pela regulação soma/psique.
A pulsão se insere nesta articulação entre a ordem biológica e a representacional, e é regulada pela oposição prazer-desprazer. A pulsão corresponde à inscrição de forças endossomáticas no campo das representações, e é reconhecida por seus representantes. Ou seja, a pulsão se apresenta como uma força que exige trabalho do aparelho psíquico para que seja representada, para que ocorra uma passagem das excitações corporais para o universo representacional. Esta força, enfim, deve ser de alguma maneira organizada em representações.
Ainda no texto "Três ensaios sobre a teoria da sexualidade" , Freud articula as manifestações dinâmicas da pulsão na vida psíquica a partir do conceito de libido. Inicialmente a libido se coloca fragmentada em um conjunto de várias zonas erógenas e, a partir de sua experiência com os objetos, será unificada na fase genital da organização libidinal.
Há um período em que a sexualidade infantil é anárquica, com características perversas e polimorfas. É a organização pré-genital da libido, que é auto-erótica no início e vai se organizando em zonas privilegiadas na busca de prazer, até adquirir uma organização total em torno dos genitais. Trata-se, portanto, de uma organização sexual anárquica, ligada a zonas erógenas que são fontes de várias pulsões parciais.
A partir da constatação de que esta organização pré-genital é esquecida, ou seja, há uma amnésia infantil, evidencia-se a existência de uma defesa contra esta sexualidade perversa e polimorfa. Esta sexualidade é perversa e polimorfa porque é incestuosa, e o recalque vai incidir sobre o representante ideativo e o afeto correspondente aos pais. Dessa maneira, vão se construindo diques para que se realize a educação e a socialização da criança. Isto pressupõe que o ego utiliza energias contra o impulso sexual, construindo barreiras e utilizando estas energias como contra-catexia ao impulso sexual da infância.
Em 1910 , em um artigo sobre os distúrbios psicogênicos da visão, Freud formaliza esta noção postulando que energias do ego funcionam como uma contra-catexia ao impulso sexual da infância, articulando o conceito de pulsões de auto-conservação. Freud formula que as pulsões sexuais, na busca de objetos para atingir sua finalidade, o prazer, entram em conflito com o ego, instância deslibidinizada, que realiza o recalque das pulsões sexuais. Ou seja, as pulsões de auto-conservação se contrapõe a sexualidade no conflito psíquico.
Desta maneira, teoriza o primeiro dualismo pulsional: a pulsão sexual, cujo objetivo é a satisfação, e as pulsões do ego, que colocam sua energia a serviço do ego. O conflito psíquico se dá a partir de diferentes sistemas, pois as pulsões sexuais e as do ego se inserem de maneira diferente no plano tópico. A oposição entre impulsos sexuais e impulsos do ego enfatiza o aspecto dinâmico do funcionamento do aparelho psíquico. A questão quantitativa, o ponto de vista econômico destas articulações, permanece à parte.
O conceito de narcisismo e a abertura para a formulação do conceito
de pulsão de morte
Com a introdução do conceito de narcisismo, em 1914 , a distinção
entre pulsões sexuais e pulsões do ego vai se obscurecendo.
O narcisismo supõe que o ego é também investido libidinalmente,
o que se opõe a concepção do ego como instância
deslibidinizada, responsável pelo recalque das pulsões sexuais.
O ego é tido, a partir deste momento, como o "grande reservatório
da libido", a partir do qual a libido é investida nos objetos
e também pode refluir deles para o ego.
Em suas elaborações iniciais, Freud coloca que a libido se encontra fragmentada em um conjunto disperso de zonas erógenas, as pulsões parciais se satisfazem de forma independente umas das outras, ao nível de cada zona erógena. Isto caracteriza a sexualidade dita infantil. Na sexualidade adulta este conjunto disperso seria unificado mediante o objeto, na fase genital de desenvolvimento libidinal.
O conceito de narcisismo impõe, necessariamente, uma reformulação na teoria pulsional. Se antes a libido, fragmentada em um conjunto disperso de zonas erógenas, encontrava no objeto sua possibilidade de integração - a partir da assunção da fase genital de organização libidinal - o que vai se delineando é que esta integração se dá a partir da estruturação do ego. Ou seja, uma vez investido como objeto de satisfação, o ego se coloca como a instância unificadora das pulsões fragmentadas. Segundo Freud:
"... uma unidade comparável ao ego não pode existir no indivíduo desde o começo; o ego tem que ser desenvolvido. Os instintos auto-eróticos, contudo, ali se encontram desde o início, sendo, portanto, necessário que algo seja adicionado ao auto-erotismo - uma nova ação psíquica - a fim de provocar o narcisismo."
O conceito de narcisismo surge, pela primeira vez, como uma tentativa de explicar escolhas de objetos homossexuais; entendendo o homossexualismo como um tipo de escolha narcísica de objeto. No estudo sobre Leonardo da Vinci , o homossexualismo é entendido desta maneira, pois há uma fixação à figura da mãe que não permite que Leonardo se separe dela, o menino não aceita perder este vínculo libidinal com a figura da mãe; diante desta ameaça de perda, reproduz com outros meninos o amor que sua mãe nutria por ele, meninos que ele ama como sua mãe o amou. Escolhe jovens parceiros, duplos de si-mesmo. Trata-se de um amor narcisista, uma vez que ama o lugar que ele ocupou.
A
distinção entre o narcisismo e o auto-erotismo vai se estabelecer
mais claramente no caso Schreber : o narcisismo se impõe como conceito
que vai se articular na história libidinal do sujeito, situado entre
o auto-erotismo e a escolha objetal e permitindo a primeira unificação
das pulsões auto-eróticas fragmentadas. O delírio persecutório
de Schreber evidencia a brutal violência da "retirada da libido
dos objetos e sua introversão no eu" (Freud). O corpo é
experienciado por Schreber como coisa invadida pelas pulsões parciais,
mortificado no registro auto-erótico.
Em Totem e Tabu , o conceito de narcisismo passa a ser compreendido como uma
estrutura permanente e não mais uma fase evolutiva passageira. Segundo
Laplanche, "o narcisismo já não surge como uma fase evolutiva,
mas como uma estase da libido que nenhum investimento objetal permite ultrapassar
completamente".
Assim, o narcisismo se articula na estruturação do ego, uma vez que este passa a ser investido libidinalmente, como objeto de satisfação. Por meio da estruturação do narcisismo, a imagem do sujeito se coloca como objeto privilegiado de investimento libidinal e, desta maneira, - mediante o ego investido libidinalmente - é realizada a unificação das pulsões parciais.
A constituição do ego, portanto, se dá através de uma auto-imagem totalizante, auto-imagem que unifica o corpo fragmentado do momento auto-erótico. Esta imagem de si mesmo se constitui mediante uma imagem vinda do Outro. Em outras palavras, a criança estrutura seu ego através da relação com as figuras parentais, que participam da instauração do narcisismo. Segundo Laplanche, "podemos ainda pensar que tal unidade é precipitada por uma determinada imagem que o indivíduo adquire de si mesmo segundo o modelo do Outro, e que é precisamente o ego. O narcisismo seria a captação amorosa do indivíduo por esta imagem".
O narcisismo se articula antes da escolha do objeto, precede as escolhas objetais. É anterior ao Complexo de Édipo - antes de escolher pai e mãe, o sujeito escolhe a si mesmo -, mas isto do ponto de vista da criança. A notícia da existência de um ego, um eu, vem a partir do Outro, pois é ele quem produz a experiência de satisfação. As figuras parentais libidinizam e constróem o ego, uma vez que seus filhos são produtos de seu próprio narcisismo. O ego se esboça enquanto uma criação do investimento libidinal dos pais; o narcisismo implica a relação do sujeito com sua imagem, na qual é fundamental a relação com o Outro.
A articulação deste conceito questiona o conflito psíquico como oposição entre pulsões sexuais e pulsões do ego, auto-conservadoras. Com o aparecimento do conceito de narcisismo, o ego passa a ser objeto de investimento libidinal e, portanto, o conflito psíquico não opõe duas pulsões de natureza diferente. O essencial da trama conflitiva passa a se estabelecer na oposição entre a libido do ego (narcisista) e a libido objetal. O que marca o conflito não é o desejo se opondo a sua proibição, mas sim o conflito entre o investimento do eu em oposição ao investimento no outro. Aqui corre-se o risco de se estar diante de uma monismo pulsional: não se trata de energias de natureza diferente, uma energia neutra se opondo à sexualidade. O conflito pensado desta maneira recai sobre uma força unitária e de natureza sexual, a libido.
A primeira teoria pulsional vive um impasse, que só será superado com a segunda teoria pulsional: o conflito psíquico aparecerá entre a pulsão de vida e a pulsão de morte. Com a introdução do conceito de pulsão de morte, o dualismo pulsional assume um novo estatuto: as pulsões sexuais e de auto-conservação são agrupadas e definidas como pulsões de vida e se opõem às pulsões de morte. Este novo reagrupamento supõe a pulsão de vida como aquela que visa a ligação e a introdução de novas tensões, e a pulsão de morte como aquela que, perseguindo objetivos contrários, visa o desligamento, a anulação das tensões.
Neste sentido, a existência de uma força que pressiona e exige trabalho do aparelho psíquico vai cada vez mais se evidenciando. Em "Os impulsos e suas vicissitudes" , Freud enfatiza a questão da pulsão enquanto força, uma pressão (Drang) que busca descarga e é sempre ativa na mente. O aparelho psíquico se interpõe entre a pulsão e a realidade, e a força da pulsão demanda um trabalho de simbolização deste. O aparelho psíquico aparece como algo que impede o escoamento total da energia.
A partir deste impasses vai-se delineando um campo para que o conceito de pulsão de morte seja desenvolvido.
Os impasses na clínica: a neurose traumática e a compulsão
à repetição
Freud vai articular seus conceitos sobre a pulsão definitivamente a
partir dos impasses que encontra na clínica.
A partir de questões levantadas pela neurose traumática e seus sonhos - que repetem a situação traumática - e a compulsão à repetição no processo analítico, que impede que o paciente possa recordar, Freud vai delineando o campo para a articulação da existência de uma energia no aparelho psíquico que é livre, que não possui uma representação.
Em seu texto "Além do Princípio do Prazer" (1920) , Freud, discorrendo sobre fenômenos que observa, as já citadas neuroses traumáticas e seus sonhos enigmáticos e a compulsão à repetição, e também as características dos jogos infantis, postula que, de fato, há na mente uma compulsão à repetição que parece não estar subordinada ao princípio do prazer.
Estes fenômenos o levam a assumir que existe algo, um resíduo inexplicável, "inexplicável o bastante para justificar a hipótese de uma compulsão à repetição, algo que parece mais primitivo, mais elementar e mais pulsional do que o princípio do prazer".(1920).
A repetição de situações passadas da história do sujeito, - tanto no contexto analítico, como fora dele - indicam um movimento que não pode ser reduzido à busca de prazer e evitamento do desprazer, únicas formas de regulação econômica do funcionamento mental até então vigente. Paradoxalmente, apesar de geradoras de tensão mental, essas situações eram buscadas e repetidas incansavelmente. Ou seja, Freud constata que, no percurso do sujeito, ocorre a repetição de situações traumáticas que marcaram este percurso e que, seguramente, estão "além do princípio do prazer".
O que vai se evidenciando, assim, é a temática do excesso pulsional, irredutível ao processo de simbolização. Uma vez que o aparelho psíquico não encontra condições para dominar completamente o afluxo de energia, serão mobilizados recursos para que isto se realize de maneira retrospectiva - seja pela rememoração quase alucinatória do evento, seja pela repetição nos sonhos - na tentativa de ligar (Bindung) este afluxo energético e, dessa maneira, dominá-lo.
Segundo Garcia-Rosa:
"...o
que há, inicialmente, é uma superfície corporal sobre
a qual o diferencial prazer-desprazer se fará com absoluta independência
de qualquer princípio organizador. Assim, não é o princípio
do prazer que funda o prazer, mas, ao contrário, é o prazer
que se erigirá em princípio. A passagem do prazer entendido
como processo psicológico para o prazer entendido como princípio
se dará em função da ligação (Bindung),
isto é, por uma contenção ao livre escoamento das excitações,
transformando o estado de pura dispersão em estado de integração
(energia livre - energia ligada)".
Existe, portanto, uma atividade de ligação (Bindung) da excitação
que é originária, primordial. Antes que se possa operar qualquer
tipo de defesa, a primeira tarefa do aparelho psíquico é vincular
a excitação pulsional. Para que a vigência do princípio
do prazer se realize, o aparelho psíquico deve funcionar no sentido
de ligar a energia livre; ou, segundo Garcia-Rosa , "mais precisamente,
o aparelho psíquico enquanto "aparelho" é o efeito
desta ligação, posto que anteriormente a ela não podemos
falar em nada que se assemelhe a um aparelho, a uma organização,
a um sistema fechado."
A
compulsão à repetição se define, assim, como um
atributo inerente a própria pulsão, o que revela seu caráter
mais arcaico e primitivo: uma tentativa constante de repetir um estado originário
par ligar e dominar aquilo que excede. Isto abre campo para uma reordenação
conceitual, uma vez que a existência de um transbordamento energético
supõe uma maneira de ordenação do aparelho psíquico
que ultrapassa o registro da representação, evidenciando, assim,
os limites da primeiras formulações freudianas.
Segunda tópica
Os impasses levantados evidenciam que há uma tendência na pulsão
a restaurar um estado anterior, um estágio inicial, onde não
há tensões e conflitos. Freud irá utilizar a biologia
dos seres orgânicos para explicar esta tendência no funcionamento
da mente: a tendência do orgânico em se transformar novamente
no inorgânico. Esta tendência procura restaurar uma estado anterior
de coisas, do zero. Entre este orgânico inicial e o final está
a vida, uma tentativa de adiar este processo ao máximo.
Ou seja, a vida se afasta de alguma maneira desta tendência a restaurar um estágio inicial, e tenta retornar, já que o inorgânico é anterior ao orgânico. O objetivo é retornar ao inanimado, o objetivo de toda a vida é a morte. A pulsão procura uma descarga que provoque o escoamento total de energia, atingindo assim a morte.
O que se torna necessário é um novo reagrupamento das pulsões: não se trata de uma oposição entre pulsões de auto-consevação (do ego) e pulsões sexuais, mas sim de pulsões de vida (que agrupam ambas as citadas) e pulsões de morte. A pulsão de vida visa a manutenção da vida e a ligação; a pulsão de morte, ao contrário, visa o desligamento, a anulação das tensões. Se a tendência a extinguir este estado de tensão não é atingido é porque, desde o início, a ligação está também ativa na mente. Ao sofrer o recalque primário e ser submetida ao simbólico, a pulsão se constitui como pulsão sexual.
Neste sentido, a pulsão de morte se define como invisível e silenciosa; pulsão em estado bruto, pura quantidade. O caráter sexual da pulsão se configura pela articulação entre a pulsão e um objeto que instaure o diferencial prazer-desprazer. Ou seja, é a partir do investimento em um objeto que a pulsão assume seu caráter de pulsão sexual, constituindo-se por contraposição a pulsão de morte enquanto energia pura, dispersa. A inscrição da pulsão, através de seus representantes-representações - uma vez que o que pertence ao registro psíquico são suas representações e não a pulsão em si - na realidade psíquica se dá a partir de constituição da pulsão como pulsão sexual. O que demonstra claramente a afirmação de Freud, de que a pulsão de morte é a pulsão por excelência. Em torno da pulsão de morte são erigidos os fantasmas, os mitos, as religiões, as ilusões. Há uma condição de desamparo estrutural no sujeito freudiano, desamparo frente a esta força invasora que é a pulsão.
A condição da falta
O conceito de pulsão de morte, uma força silenciosa porque sem
representação no campo psíquico, marca a eterna desarmonia
entre os registos pulsionais e simbólicos. Isto se traduz em postular
a existência de um conflito estrutural, e não conjuntural, entre
os registros da pulsão e suas possíveis representações.
Um conflito, neste sentido, jamais ultrapassado, no qual o sujeito está
irredutivelmente lançado em sua condição originária
de desamparo.
Nesse sentido, a ordenação das pulsões em seus representantes-representações depende estreitamente do outro: é ele quem acolhe esta força e, através de operações interpretativas, permite sua inscrição simbólica.
Nos
desenvolvimentos teóricos freudianos vemos que o destino desta força
pulsional vai se articulando a conceitos tais como repressão primária
e narcisismo, desembocando no drama edipiano como condição para
que o sujeito ocupe um lugar na ordem social, ou seja, para a entrada do sujeito
no mundo simbólico. É importante ressaltar que o que perpassa
estas condições é sempre uma renúncia, pois só
a partir disto é possível que o sujeito se defina em sua condição
desejante.
No romance familiar a maneira como a atribuição fálica
irá se operar, na cena edipiana, irá traçar os caminhos
pelos quais irão se organizaras estruturas psíquicas. A constatação
da diferença entre os sexos, o significante da falta no Outro, a assunção
da castração, vão esboçar esta passagem. O reconhecimento
da alteridade supõe a realidade da existência do outro; a genitalidade
se traduz, dessa maneira, na tolerância da alteridade radical do outro.
A renúncia a onipotência narcísica, imposta pele prova da castração, é condição para que o sujeito ocupe um lugar na ordem social. Um sujeito definido enquanto sujeito desejante, pois a angústia de castração se destaca como marca fundamental da incompletude humana. O pacto edípico pressupõe que haja uma renúncia em nome de ocupar um lugar na ordem social, na condição de sujeito desejante.
A
especificidade da angústia de castração está estreitamente
ligada à fase fálica e ao destino do pênis; este entendido
como um suporte, que se encontra na realidade anatômica, para o falo.
O falo é portador de um valor simbólico, é aquele que
marca o corpo por sua ausência ou presença.
A experiência clínica e a observação das teorias
sexuais infantis irão delinear, para Freud, a questão da angústia
de castração em seu sentido mais visceral: esta angústia
está ligada a uma desestruturação possível, pois
a percepção da diferença entre os sexos constitui uma
ameaça para a integridade narcísica. Neste sentido, resta ao
sujeito reconhecer sua condição desejante, de falta.
O pacto edípico carrega, em si, a imposição de uma renúncia em nome da ordem simbólica. A mediação que se interpõe entre a figura materna e a criança é representada pela figura do pai, enquanto objeto de desejo materno. A mãe não possui o falo, a criança não é o falo, a mãe encontra-se também em posição desejante, pois algo lhe falta. O sujeito é, então, lançado em uma cadeia geracional que o transcende, uma vez que existe um desejo que o antecede, ele não é objeto que justifica o desejo de seus pais, mas sim um elo desta cadeia simbólica.
Em
Totem e Tabu Freud formula uma hipótese histórica, mítica,
para discorrer sobre a transcendência fundadora do pai morto. O pai
forte, onipotente, detentor do gozo ilimitado, é assassinado e devorado
pelos filhos. Uma vez morto e devorado produz-se um lugar vazio, nem por isso
menos poderoso. O remorso e, consequentemente a renúncia que tal crime
suscita dá origem ao Totem, símbolo da obediência adiada
ao pai, e funda a primeira religião da humanidade.
O sacrifício ao Totem carrega os tabus de não matar o pai e
não cometer o incesto, os crimes de Édipo. Desta extraordinária
metáfora da construção do psiquismo, destaca-se que a
renúncia é a possibilidade de alcançar a condição
civilizatória, é o que dá origem a cultura. Ou seja,
a organização do campo social se dá na interdição
do incesto.
"A proibição do incesto é menos uma regra que proíbe casar-se com a mãe, irmã ou filha. É a regra que obriga a dar a outrem a mãe, a irmã ou a filha. É a regra do Dom por excelência. É realmente este aspecto , freqüentemente demasiado desconhecido, que permite compreender o caráter dela." (Claude Lévi-Strauss) .
Neste sentido, a figura do pai se interpõe entre o corpo da mãe e da criança, e isto tendo em conta sua incidência como pai simbólico, retirando da mãe o campo ilusório ancorado na dialética do ser e do ter o falo, introduzindo o sujeito na ordem simbólica, definindo suas relações com as interdições e possibilidades que regulam a ordem humana.
Ainda em Totem e Tabu, verifica-se a tentativa de elucidar que a infância humana reproduz, ontogenéticamente, o filogenético. Isto obedece a tentativa, sempre presente na teoria freudiana, da passagem do livre afluxo energético à vinculação. Ou seja, a passagem de um sistema funcionando hipoteticamente segundo os processos primários, para um funcionamento segundo os processos secundários. O que evidencia, assim, o papel do funcionamento primário como constituinte e estruturante.
"A necessidade de afirmar o originário, tanto sob a forma do "mito individual" quanto do mito histórico ou pré-histórico, constata-se com facilidade como uma das direções fundadoras do pensamento freudiano. E definir o mito biológico do surgimento da forma viva a partir do energético é, sem dúvida, projetar na mesma dimensão, aquém de nosso alcance, o acontecimento individual que faz com que, no centro daquilo que não sem esforço imaginamos como processo primário, se coagule o primeiro núcleo para a subjetivação."
Função materna
Freud descreve o narcisismo primário como um momento mítico
no qual o sujeito se sente perfeito e completo. O bebê não tem
a percepção de que a mãe é um ser independente
e separado dele, o que corresponde a um sentimento de onipotência absoluta.
O narcisismo se articula antes da escolha do objeto. O casulo narcísico supõe uma relação fusional mãe-bebê, na qual o bebê é identificado ao falo. O sujeito se esboça enquanto uma criação do investimento libidinal materno, ele é objeto de desejo da mãe.
Do ponto de vista da mãe, isto se torna possível, pois tanto a sexualidade masculina como a feminina se articulam a partir da questão fálica, ancorada na dialética do ser e do ter. Nesse sentido, em suas equivalências simbólicas estabelecidas entre os diferentes objetos parciais (fezes, pênis, bebê), a maternidade favorece um protótipo de que a mulher pode ao mesmo tempo ser e ter o falo.
Essa posição confere à função materna o estatuto do grande Outro, definido por Lacan como um Outro absoluto, tesouro dos significantes. A figura materna, enquanto função, encarna o Outro na medida em que toma o bebê como um falo, o que impõe como única possibilidade para o bebê se posicionar como objeto de desejo materno.
Em seu texto Sobre o Narcisismo: uma introdução, Freud coloca que o narcisismo infantil dos pais é projetado em seus filhos, os quais os pais consideram dotados de toda perfeição (Sua Majestade o Bebê). Isto traz como conseqüência a necessidade de o sujeito fixar um ideal em si mesmo. O seja, a economia do narcisismo primário constitui o sujeito como um eu ideal, avesso a alteridade e à diferenciação sexual.
A origem do eu ideal está, dessa forma, referida á imagem corporal, uma vez que o sujeito está inserido no ideal de onipotência narcísica.
Lacan
propõe que esta relação é formulada como uma relação
especular. A fase do espelho designa um momento na história do sujeito
no qual ele irá formar uma imagem antecipada do próprio corpo.
A vivência do despedaçamento do momento auto-erótico,
vivido sob a égide das pulsões parciais, é superada por
uma imagem unificadora do corpo, através de um processo de identificação
ao Outro.
A vivência de um corpo despedaçado encontra no Outro a unidade
que lhe falta. É no Outro e através do Outro que a criança
irá se reconhecer, e esta imagem se constitui como esboço do
ego. A unidade do ego, nesta perspectiva, sempre escapa ao sujeito, uma vez
que lhe é devolvida por esta imagem. Ao buscar a realidade de si o
que o sujeito encontra é a imagem do Outro, com a qual se identifica,
e desta maneira se aliena na ilusão da totalidade. Esse ego especular,
portanto, é estruturante do sujeito, porém falseador de sua
identidade.
Esta relação dual imaginária só encontra saída no campo simbólico. O desejo alienado só poderá se libertar caso o Outro deixe de ser o suporte desse desejo. E isso tem lugar no registro simbólico, na linguagem, na medida em que haja um reconhecimento recíproco da condição da falta, o que tem como conseqüência uma troca simbólica.
"Para que verdadeiramente haja uma diferença que não seja a separação em espelho, a repetição da separação do mesmo, é preciso que haja relação com a função que faz a diferença" (Serge Leclaire).
A primeira limitação a esse narcisismo absoluto se dá pelo discurso materno, uma vez que este aponte seu desejo para outro lugar. A mediação que se interpõe entre a figura materna e criança é representada pela figura do pai, enquanto objeto de desejo materno. A mãe não possui o falo, a criança não é o falo, a mãe encontra-se também em posição desejante, pois algo lhe falta. A mãe suficientemente boa descrita por Winnicott não é nem faz o falo, mas sim, em sua posição desejante, aponta o caminho em direção àquilo que faz diferença.
Função paterna
Foi alicerçado em sua experiência clínica, verdadeira
fonte de sua pesquisa, que Freud constatou que era da interdição
do incesto que depende o acesso do ser humano à ordem simbólica,
desembocando no nascimento da subjetividade.
Neste sentido, em seu texto Totem e Tabu , evidencia-se, mais do que uma narrativa mítica, um esforço de formalização do funcionamento psíquico, calcada na transcendência do pai morto. Nele Freud formula uma hipótese histórica que deve ser compreendida como uma extraordinária metáfora da construção do psiquismo.
O pai, macho forte que possuía todas as mulheres, e também protegia a horda, é assassinado e devorado pelos filhos. Uma vez morto e devorado este pai se torna mais poderoso, devido ao remorso que este crime suscita. É este remorso que dá origem ao totem, uma obediência adiada ao pai, e que funda a primeira religião da humanidade. O remorso torna esses filhos obedientes, e estabelece um novo contrato com o pai: o sacrifício ao totem carrega os tabus de não matar o pai e não cometer o incesto, os crimes de Édipo.
Dessa
maneira, as investigações dos efeitos do drama edipiano culminam
nesta metáfora da origem da Lei e do Interdito. A figura que aí
se vê esboçada, o pai da horda assassinado e devorado pelos filhos,
terá, no campo psicanalítico, o estatuto metafórico daquilo
que inaugura a cultura e da civilização. É sob sua égide
que irão se operar as condições do sujeito nos laços
sociais.
A identificação com o pai como símbolo, como totem, encena
o luto do objeto de desejos incestuosos e hostis; há uma renúncia
a uma relação pulsional ambivalente, o que eqüivale a dizer
que o ideal substitui o objeto de ambivalência.
"De fato, ao fim da celebração canibalesca, o homem que possuía todas as mulheres não aparece mais como o tirano a ser eliminado. O arrependimento e a culpa que acompanham o luto instauram o defunto em um lugar único, no qual se deverá daí por diante assegurar um culto. Este culto terá por meta edificar simbolicamente o homem que possuía todas as mulheres como um deus a ser amado e em relação ao qual todos nutrirão uma dívida sem fim. Por esta razão, apenas, o morto se torna "mais poderoso do que jamais fora em vida"". (Joël Dor)
O assassinato do pai, a culpa que este crime suscita e a conseqüente construção que o representa, correspondem a uma resolução simbólica da subjetivação. É justamente a partir desta questão que Lacan introduz o conceito de Nome-do-Pai, identificando, assim, o pai morto a instância simbólica do pai.
Neste
sentido, a metáfora paterna se interpõe entre o corpo da mãe
e da criança, esta entendida como função que sustenta
o Outro, retirando desta o campo ilusório ancorado na dialética
do ser e ter o falo. É isto que permite que o sujeito se introduza
na ordem simbólica, definindo suas relações com as interdições
e possibilidades que regulam a ordem humana.
O ideal do eu como possibilidade de historização.
No
texto "Sobre o narcisismo: uma introdução" , Freud
se pergunta sobre o destino da libido do ego. A partir da observação
dos adultos, constata que o narcisismo infantil parece ter-se apagado: "deve-se
supor que toda ela (libido do ego) se converteu em catexias objetais?".
Essa questão encontra resposta na medida em que ele irá postular
uma conseqüência estrutural do narcisismo: o narcisismo cria uma
fratura, divide o ego em um ego ideal e um ideal de ego.
O narcisismo infantil dos pais, como foi visto, é projetado em seus
filhos, os quais os pais consideram dotados de toda perfeição.
Isto traz como conseqüência a necessidade do sujeito fixar um ideal
em si mesmo. Este narcisismo projetado dos pais gera o que Freud denominou
ideal do ego, herdeiro do narcisismo infantil.
Pode-se
dizer que o narcisismo se opera em dois momentos:
(i) na origem do ego ideal, que se refere à imagem corporal. É
onde ocorre a coincidência do ego com o ideal de onipotência narcísica.
(ii)
na origem do ideal do ego, momento em que o sujeito irá se colocar
tal qual gosta de ser visto pelo outro; a maneira do sujeito se comportar
deve corresponder a uma expectativa que vem do outro. É algo que limita
a onipotência narcísica e instaura a perspectiva de um "vir-a-ser".
A projeção de ideal a ser alcançado funciona como um
substituto do narcisismo da infância.
O ideal irá aparecer então em algum ponto onde o ego se identifica,
criando uma ferida na onipotência narcísica. Piera Aulagnier
coloca que:
"Eis porque este encontro, que num flash único realiza o anseio narcísico mais puro, assinalando paralelamente seu veredito, provoca uma fratura que persistirá como pano de fundo de todas as recolagens sucessivas. Realiza-o posto que desejante e desejado se acham face a face, fundidos em um mesmo espaço óptico podem crer numa identidade e se alienam numa fascinação recíproca; assinala seu veredito e seu declínio - o que nos prova a agressividade mortífera que pode repentinamente submergir aquele que olha - posto que esse "visto", esse "eu é isso", revelam tudo o que "eu" não é: separado da mãe, diferente do seio, limitado por seus tegumentos, ele não é essa boca suposta causa da existência do seio e portanto da mãe, ele não é a infinidade de possibilidades. Quaisquer que sejam os ouropéis com os quais poderá adornar a imagem, correrá sempre o risco de ouvir novamente enunciar-se um "você não é mais que isso", esse único corpo, esse único sexo, esse único possível."
A passagem entre esta identificação pré-genital - na qual a criança crê na existência de um objeto que lhe garanta uma troca sem perda - para a identificação edípica é dada pela castração, assinalando um ponto de ruptura entre o ego ideal e o ideal do ego. Esta prova imposta ao sujeito "o introduz na história, na historicidade, no tempo como prova do real, é o Complexo de Édipo, momento também da prova da castração do Outro (parental) e, conseqüentemente, da diferença dos sexos." (Jean Florence).
Onde o sujeito esperava encontrar a realização do pulsão, o que encontra é proibição do incesto: o abandono do objeto enquanto ego ideal, se tudo correr bem, é substituído por um projeto constituído a partir das identificações edípicas.
O efeito dessa interdição é colocar que o ideal da onipotência narcísica não pode se sustentar em algo que faria desse sujeito um excluído, um fora-da-lei. O ego passa, então, a se sustentar pelo anseio de se tornar outro, e este outro entendido como um projeto infindável.
Se neste período posterior ao Édipo o sujeito é capaz de abrir mão da crença de que ser é ter, que não será possuidor de toda perfeição, há "a instalação de um ideal do ego que introduz justamente uma dialetização entre o ego e seus ideais, de maneira a inserir uma fenda que rompe com a onipotência narcísica do sujeito. A experiência desta fenda marca a incisão da castração e solapa a plenitude passional do ego ideal" (Joel Birman).
Notas sobre o mal-estar
"A destruição do passado, ou melhor, os mecanismos sociais
que vinculam nossa experiência pessoal às das gerações
passadas é um dos fenômenos mais característicos e lúgubres
do final do século XX. Quase todos os jovens de hoje crescem numa espécie
de presente contínuo, sem qualquer relação orgânica
com o passado público da época em que vive." (Eric J. Hobsbawm).
Em uma tentativa, ainda que grosso modo, de recapitular algumas questões discutidas ao longo deste trabalho, destaca-se, como fundamental para a construção da ordem social, algo crucial: a dívida simbólica. Trata-se de uma fratura que desemboca, necessariamente, em um fantasma estruturante: seja a renúncia a satisfação pulsional, quando não encontra destino para este afluxo de energia que invade o psiquismo; seja nas modalidades da angústia de castração, expressos no medo da perda, do abandono; seja na ferida narcísica que se instaura e revela nossa condição humana diante do Outro.
A
condição humana é marcada, assim, estruturalmente por
uma assimetria, e a dívida simbólica que se estabelece com o
Outro tem como conseqüência a constituição do sujeito
como sujeito desejante. Neste sentido, a cultura comporta, em si, um mal-estar,
uma vez que é impossível conceber uma auto-regulação
natural, É isto que o conceito de pulsão de morte enuncia, de
forma radical: a defasagem, sempre presente, entre os registros pulsionais
e representacionais. A dívida simbólica é condição
crucial para que o sujeito se defina enquanto tal, pois sem a presença
do outro não se estabeleceria o circuito pulsional, uma vez que a força
tomaria o sentido da descarga.
Da impossibilidade de ser o falo do Outro, posição de gozo perdida,
da impossibilidade de ser objeto de gozo para o Outro, em um primeiro momento
encarnado na função materna, revela-se o eterno desamparo humano.
Ou seja, não se sustentar na posição de objeto capaz
de obturar a falta no Outro implica a instituição da condição
desejante.
"É alto o preço a pagar pela renúncia à onipotência e pela ruptura do casulo narcísico que envolvia o bebê num vínculo imediato e exclusivo com a sua mãe perfeita: a sombra da finitude e o aguilhão do desejo acompanharão, dali por diante, a criança e o adulto em que ela se transformar. Mas este sacrifício indispensável traz alguma compensação: é a única via de acesso a algo que, por pobre que seja a opinião que dele tenhamos, constitui o nosso bem mais precioso: a condição humana." (Renato Mezan).
As religiões, formações simbólicas das sociedades tradicionais, oferecem modos de pertinência, de amparo simbólico. Sua função, oferecer aos sujeitos uma série de práticas que garantissem um lugar no desejo do Outro, atenuava a condição de desamparo. Para o homem moderno, cuja responsabilidade por suas escolhas e condução do próprio destino é marca inexorável, resta o sentido trágico de sua condição: a impossibilidade radical de restaurar qualquer imagem onipotente, lançado à própria linguagem que é incapaz de revelar a verdade.
As
investigações e o rastreamento clínico do complexo de
Édipo culminaram na definição da origem da Lei e do Interdito,
revelando que da interdição do incesto dependeria o acesso humano
à ordem simbólica. O pai da horda primeva, devorado e assassinado
pelos filhos, assume, na teoria freudiana, o estatuto metafórico de
nó inaugural da cultura; o crime primordial engendra a Lei e implica
o sujeito na linguagem. É neste campo que se desvenda a face contemporânea
do desamparo: para sustentar o laço social tem-se que sustentar a Lei
sem o apoio de Deus. Segundo Maria Rita Kehl :
"Diante da perda de um referente transcendental é inútil,
para sustentar a Lei, um fundamento natural. Nada funda a Lei senão
sua própria enunciação."
E esta condição do sujeito, desde sempre desbaratado no campo pulsional, se articula desde a concepção do que vem a ser o aparelho psíquico. A condição para que este se constitua advém de uma função originária de ligação, que se opera enquanto evitação da dor e busca do prazer, da qual o cogito, como aponta Luiz Roberto Monzani , será o último resultado. Neste sentido, há uma inscrição pulsional, em um sentido mítico, que revela que o sujeito é resultado de um processo anônimo.
Ao longo do percurso biográfico de cada sujeito, o que se assiste é a eterna metaforização desta assimetria. A diferença sexual é o que irá se instituir como ponto de ancoragem, no mundo psíquico, para o reconhecimento de qualquer outra diferença, seja ela social, racial ou religiosa.
Como foi visto, a trágica história do último século, e o desenvolvimento crescente da tecnologia, com vista a garantir um suposto bem-estar, desembocam em uma degradação do laço social. Degradação que se apresenta sob a forma de radicalização do individualismo, fim das ilusões e uma miséria afetiva que, no cotidiano, torna-se um modo de viver. Ora, se a condição estrutural do desamparo humano perpassa toda a teorização freudiana; se o mal-estar é condição inerente ao processo civilizatório, cabe questionar como reatualizar este impasse na contemporaneidade. A instauração de um campo social regulado pela economia perversa, hipótese aqui levantada, é o que será examinado.
A perversão
"Nesse esboço de uma teoria psicanalítica sobre a diferença
entre os sexos, pode-se ao menos reconhecer que aquilo que se chama relação
com o falo se faz, pelo menos, por dois caminhos, por causa da anatomia. Mas
o conceito da diferença dos sexos necessita primeiro do reconhecimento
do falo como aquilo que faz a diferença, sem ser propriedade de ninguém.
Há, pois, pelo menos dois tempos antes de poder falar de sexo: primeiro,
reconhecer que uma função faz a diferença entre o sistema
das representações e a outra coisa (na teoria lacaniana, o real.
Na teoria das pulsões, o objeto da pulsão que não tem
imagem, só presença), e um segundo tempo, que é a determinação
da posição em relação ao que faz a diferença".
(Serge Leclaire)
A perversão marca um lugar no qual o sujeito evita, a qualquer preço, a experiência da castração e o reconhecimento da diferença sexual. A castração, como foi visto, impõe ao sujeito um outro olhar sobre a figura materna: ela é incompleta, não possui o falo, é desejante de outro. Isto, para o perverso, é algo da ordem do horror. O sujeito perverso não abre mão de sua relação narcísica com a mãe fálica.
O perverso busca ocupar permanentemente o registro do eu ideal e da onipotência narcísica, na medida em que a figura materna não é confrontada com a castração. Isto supõe um desafio a figura paterna, na tentativa de destituí-la de seu poder simbólico. Ou seja, na cena fantasmática perversa o sujeito ocupa o lugar do eu ideal, já que não se confronta com as questões da diferença, do desejo e da singularidade.
Neste sentido é importante destacar a perversão não apenas relacionada à concretude do ato sexual, mas também em sua relação com a lei. Lá onde a figura paterna é destituída de seu valor simbólico o perverso impõe sua própria lei, a lei de seu próprio desejo. Isto é, trata-se de um sujeito cuja lei não se impõe pela angústia da castração, mas sim pelo próprio desejo, pautado por aquilo que o faz gozar. Burla e desafia, portanto, a vivência edípica; recusa a castração e, conseqüentemente, a ausência como causa de desejo.
É em seu artigo "O Fetichismo" (1917) que Freud desenvolveu e fundamentou o funcionamento clínico perverso. O fetiche é o meio através do qual o sujeito irá recusar a experiência da castração e o reconhecimento da diferença sexual.
Não
se trata, para o perverso, de não perceber a castração.
Exatamente por ter a percepção é que a recusa, e o fetiche
tem como função impedir o reconhecimento da diferença
sexual do outro.
No artigo já mencionado, Freud irá postular que ocorre uma cisão
no ego o perverso percebe a castração, recusa esta percepção
e faz dela uma crença. Crença esta que, enquanto equivalência
simbólica, substitui a percepção da diferença
entre os sexos. O fetiche assume, portanto, estatuto de formação
de compromisso entre duas forças psíquicas conflitivas. Segundo
Freud:
" Na situação que estamos considerando,(fetichismo), pelo contrário, vemos que a percepção continuou e que uma ação muito enérgica foi empreendida para manter a rejeição. Não é verdade que, depois que a criança fez sua observação da mulher, tenha conservado inalterada sua crença de que as mulheres possuem um falo. Reteve esta crença, mas também a abandonou. No conflito entre o peso da percepção desagradável e a força de seu contradesejo, chegou-se a um compromisso, tal como só é possível sob o domínio das leis inconscientes do pensamento - os processos primários. Sim, em sua mente a mulher teve um pênis, a despeito de tudo, mas esse pênis não é mais o mesmo de antes. Outra coisa tomou seu lugar, foi indicada como seu substituto ... o horror da castração ergueu um monumento a si próprio na criação deste substituto ... Permanece um indício do triunfo sobre a ameaça de castração e uma proteção contra ela."
O
que se evidencia, dessa maneira, é o fetiche como objeto que repõe
o pênis feminino imaginário e, concomitantemente, dá conta
de sua ausência. O gozo fetichista supõe a entrega ao campo imaginário
da não diferença entre os sexos. Esta fantasia o perverso busca
preservar a custa de truques e delimitações calculadas, calcados
em uma lei própria, em seu contato com o outro. "Não é
a condição da falta que é causa do desejo, mas sim uma
presença" (Jean Clavreul)
Piera Aulagnier , no texto "A perversão como estrutura",
fala de dois aspectos da castração simbólica. A assunção
da castração enquanto reconhecimento do desejo materno por outro,
o que implica reconhecer que qualquer objeto que se ofereça não
é o que o outro deseja; não há objeto real que possa
ocupar o lugar do falo, apenas o desejo mesmo. Este é um aspecto da
castração simbólica. O outro aspecto é que a diferença
se torna significativa do desejo. Em nome desta diferença entre os
sexos - que remete ao conceito da alteridade inalienável do outro -
se renuncia à onipotência de um desejo que aponta fazer do outro,
e de seu desejo, algo que viria a suturar este ponto de falta que define o
sujeito como sujeito desejante.
Este enfrentamento, para o perverso, é da ordem do horror. No lugar da diferença o perverso delineia o outro como fetiche, não o reconhece em sua alteridade, transforma o outro em objeto de sua cena fantasmática para garantir seu gozo. O perverso recusa a castração, desafia a lei ao se pautar apenas pela economia de seu próprio gozo, não se submetendo, dessa forma, a qualquer lei ou ideal que o transcenda.
Perversão e laços sociais: uma tentativa de articulação
Voltando agora o olhar para o campo social contemporâneo, o que se assiste é uma crescente exigência da glorificação do próprio eu. Seja pela lei de mercado, que demanda o gozo infinito, seja através da mídia, que oferece uma infinidade de aparatos para perpetuar esta exaltação sem limites do próprio eu.
O imaginário moderno cria um campo onde o sujeito se vê livre para realizar o que quiser, prega que o sofrimento é insustentável, em uma sociedade na qual tudo parece ser recuperável. Joel Birman coloca que trata-se de uma sociedade regulada sob a forma de uma estetização da existência. O indivíduo surge como o valor supremo da ideologia moderna.
Dessa
maneira, o que orienta o sujeito na contemporaneidade é a busca desesperada
do lugar preferencial do outro, cujo valor é matizado mediante a imagem
que produz no cenário social. Do ponto de vista psicanalítico,
pode-se articular esta busca como o anseio de se reproduzir no registo do
eu ideal e da onipotência narcísica. Pode-se enunciar que, nesta
cena fantasmática da contemporaneidade, o sujeito ocupa o lugar do
eu ideal e não se lança ao registo do ideal do eu.
É aqui que se pode vislumbrar uma possível articulação
entre a perversão e a ordem social. Se, nesta leitura da contemporaneidade,
a questão que orienta o sujeito é a busca desesperada de algo
que suture sua condição inerente de desamparo, o outro fica
reduzido a uma condição de um corpo a ser depredado e usufruído
pelo gozo perverso, visando a manutenção do registro do eu ideal.
Com isso, as noções éticas de diferença ficam
apagadas, e o crescente aumento da representação pela imagem
desvitaliza o sujeito da ação.
É cada vez maior a demanda de algo que suture o desamparo e o mal-estar. A psicofarmacologia sempre surge com uma nova droga que promete sanar todo sofrimento. A mídia bombardeia o sujeito incansavelmente com novos produtos que o farão brilhar e se destacar na cena social. Nesse sentido, o que direciona o sujeito é um não saber sobre suas condições fundamentais: exposto constantemente ao desamparo, e que, em sua diferença, reconhece a alteridade radical do outro. O sujeito narcísico tem o outro como mero fetiche, uma vez que este está somente a serviço de seu gozo, é apenas suporte para sua posição narcísica.
Na sociedade contemporânea o que se assiste é a recusa da condição da falta e do conflito enquanto questões constitutivas. Ou seja, o imperativo do gozo absoluto é respaldado por um mercado cujos ideais são de ordem utilitária, um mercado que gera a promessa, imaginária, que há algo possível e disponível para contornar a condição do desejo.
O sujeito da psicanálise é um ser falante, porque atingido por uma falta. O que foi visto ao longo do percurso deste trabalho é como o Pai, na posição simbólica sustenta, na interdição, a renúncia ao excesso pulsional. Se a função do Pai se desencarna da figura de Deus, e as descobertas da ciência geram a ilusão de que o interdito é circunstancial, o Pai não mais se sustenta na posição daquele que é capaz de interditar o excesso pulsional. O que eqüivale a dizer que, uma vez inibido de simbolizar e impor a palavra, não há o estabelecimento da Lei. É neste contexto, da anulação do campo simbólico, que a ordem perversa se engendra.
Isso não se traduz em colocar que, na contemporaneidade, somos todos perversos. O que é importante destacar, do discurso freudiano, é a existência de uma assimetria fundamental entre os registros pulsionais e representacionais, gerando um mal-estar que encontra, hoje, modalidades de satisfação e gozo, no campo social, de ordem perversa. A lógica perversa regula seu gozo através da anulação do campo simbólico enquanto produtor das diferenças, o corpo do outro se torna apenas um fetiche e isso encontra ressonância nos laços sociais contemporâneos.
Contardo Calligaris (1986) concebe a perversão como o próprio laço social, uma vez que no laço social perverso o sujeito encontra "uma maneira de reunir, no fantasma, a posição fálica do sujeito e a posição objetal.". O acento de sua reflexão não é a estrutura perversa do indivíduo, mas a entrada do sujeito em "formações ou montagens perversas". Abrir mão do prazer implicado na realização dos ideais não se traduz em repousar tranqüilamente no registro do eu ideal. Calligaris ressalta que um outro tipo de satisfação vem substituir a promessa dos ideais, a entrada na montagem perversa. E entrar em uma montagem perversa implica o abandono da singularidade em detrimento de perseguir, exclusivamente, o gozo do Outro.
A entrada na "máquina perversa", neste sentido, se constitui como sujeição ao Outro absoluto e sem fraturas. E aqui pode-se vislumbrar uma articulação possível com o conceito de banalidade do mal, equacionado por Hannah Arendt . Para a autora, a banalização do mal é a expressão radical da impossibilidade de utilizar a faculdade humana de pensamento. O sujeito, inserido nos ditames da burocracia, se submete a ordem imposta e se destitui de qualquer capacidade crítica. É assim que se expressa a malignidade: no lugar em que o absoluto se instala e tem a pretensão de produzir certezas.
Dessa forma, não se trata de buscar justificativas na destrutividade inerente ao psiquismo, pois esta concepção restringe demais a possibilidade de um campo de ação. Além do mais, corre-se o risco de a psicanálise também assumir um discurso perverso, obturando a condição desamparo em fórmulas explicativas e interpretações mirabolantes sobre a destrutividade. A psicanálise, na atualidade, necessariamente deve ter em conta que os sujeitos transitam, em suas modalidades de satisfação e gozo, numa relação dialética com os emblemas que a ordem política e social oferece.
Palavras finais
"Com o amor, como com a própria vida, é a mesma novela de novo: somente a morte é sem ambigüidade, e a fuga da ambivalência é a tentação de Thânatos." (Zygmunt Bauman)
O que resta, como questão, é se é possível que se estabeleça uma conduta ética sem que esta seja, necessariamente, submetida a desdobramentos fálicos. Se a função do Pai, como foi examinado, se torna mais abstrata e diluída no campo social contemporâneo, gera um cenário que desemboca, inevitavelmente, na degradação dos laços sociais.
Para a psicanálise é impossível estabelecer uma ética homogeneizante, que não leve em conta a condição subjetiva, pois trata-se, desde sempre, de um sujeito dividido, submetido a linguagem ante a falta de um objeto que garanta satisfação.
O que se destaca, desde a formação do psiquismo, é a busca de uma via substitutiva para a descarga, ancorada no encontro com o objeto, e no investimento sobre este que o sujeito é capaz de realizar. A palavra é sempre endereçada à alguém, e a interlocução revela a possibilidade de que o sujeito se constitua não em uma verdade absoluta, mas no diálogo.
Não se trata, com isso, de negar a violência do encontro com a diferença. A civilização se constitui a partir de um fantasma estruturante, o crime e a renúncia ao gozo da violência desembocam na cultura. Não há como não admitir, a partir das teorizações freudianas, que a violência não está no cerne do humano.
As
conseqüências éticas que o pensamento freudiano enuncia
residem na implicação do sujeito com seu desejo, o que supõe
a aceitação da falta e do conflito como constitutivos. E isto,
consequentemente, faz emergir as diferenças, o reconhecimento da singularidade
absoluta do semelhante. É assim que se torna possível vislumbrar
uma condição em que, a diversidade cultural se engendre e seja
reconhecida como universal, tornando-se um valor intrínseco da civilização.
Não a ética homogeneizante, mas a ética fundada nas diferenças.
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