Psicanálise e Psicofármacos
Esio dos Reis Filho
Especialista
em Psiquiatria pela AMB
Psicanalista pelo Instituto Sedes Sapientiae
Professor do Departamento Formação em Psicanálise, do
Instituto Sedes Sapientiae
Professor do Instituto de Psiquiatria e Psicoterapia da Infância e Adolescência
(IPPIA)
O objetivo deste texto é, em um primeiro momento, relatar uma experiência que tenho vivenciado em minha prática clínica nestes últimos tempos e que tenho percebido ser comum a vários colegas, a partir de discussões e trocas de idéias nos grupos profissionais de que tenho participado. A seguir, embasando-me em certos autores, procuro encontrar alguns caminhos teóricos que me permitam uma tentativa de compreensão, dentre várias outras feitas por muitos colegas, das razões pelas quais tais fatos estão ocorrendo em nossa atividade clínica.
Há
cerca de 34 anos, iniciei minha prática clínica como médico
psiquiatra, dentro dos pressupostos teóricos da então chamada
psiquiatria dinâmica, trabalhando tanto em consultório como
em instituições.
Aos poucos, a partir da minha própria experiência como analisando,
fui me voltando para a psicanálise, até que iniciei, há
20 anos, no Instituto Sedes Sapientiae, minha formação como
psicanalista, que continua até hoje.
Tal história profissional me levou a uma situação particular
na qual me dedico à psiquiatria clínica, seja medicando, internando,
enfim, atendendo pacientes como médico psiquiatra; além disso,
atuo como psicanalista e atendo pacientes em psicanálise ou em psicoterapia
psicanalítica.
A partir dessa dupla inserção profissional, ocorre o seguinte:
como estou ligado a vários grupos de psicanalistas, seja ministrando
aulas ou participando de grupos de estudos, acabo recebendo encaminhamentos
de colegas para que seus analisandos sejam avaliados e/ou acompanhados do
ponto de vista psiquiátrico, na maior parte das vezes, implicando
a retirada, alteração ou prescrição de psicofármacos.
Tais encaminhamentos sempre ocorreram de uma forma mais ou menos rotineira.
Quando me referi, no início desse texto, à experiência
que eu estava vivenciando nesses últimos anos e que eu queria reportar,
tratava-se exatamente do grande aumento na freqüência desses
encaminhamentos, dessas solicitações por parte dos colegas
psicanalistas, que seus analisandos fossem avaliados psiquiatricamente e,
se necessário, medicados.
Psicofarmacologia e pós-modernidade
Nesta nossa época, que se convencionou chamar de pós-modernidade, assistimos a um avassalador e, por vezes, desnorteante progresso da tecnologia nos mais variados ramos de atividades humanas. Obviamente, isto tem ocorrido também na industria farmacêutica, em especial para o que nos interessa neste texto, com os psicofármacos. Desde 1950, quando o primeiro neuroléptico começou a ser utilizado, a cada dia e numa velocidade cada vez mais impressionante, novas drogas são lançadas no mercado. A psiquiatria conta com um vasto e crescente arsenal medicamentoso, cada vez mais preciso e efetivo em seus objetivos de remoção de sintomas, cada vez com menos efeitos colaterais desagradáveis. Já há alguns anos, com a introdução da fluoxetina, como antidepressivo, passamos a contar com as assim chamadas "pílulas da felicidade", que vão se sucedendo num vórtice estonteante de novas, novíssimas gerações. Neste mundo globalizado e com o incrível progresso e abrangência da propaganda através de uma mídia que alcança um número cada vez maior de pessoas, elas passaram a creditar que se tornou obsoleto e fora de moda sentir-se angustiado ou enfrentar algum sofrimento.
Se atentarmos para variados exemplos da mídia apenas nestes últimos dias, veremos coisas como:
- revista Veja, de 5/5/04 com uma reportagem de capa sobre TOC terminando assim: "Ninguém está mais condenado a viver refém da própria mente", (p. 139.)
- revista Veja de 12/5/04: "Uma nova droga congestiona ainda mais o concorrido mercado mundial de antidepressivos: a duloxetina (Cymbalta). Um comprimido do remédio por dia seria suficiente para melhorar sintomas como ansiedade, pessimismo, sentimentos de culpa, pensamentos suicidas e choro fácil" (p. 65).
- revista Época, de 10/5/04 em reportagem de capa: "Os herdeiros do Prozac: depois de um ano, 89% dos pacientes apresentaram alguma resposta à duloxetina e 82% ficaram livres de todos os sintomas da depressão" (p. 78). "Os médicos estão receitando antidepressivos para tratar ansiedade, obesidade e dores em geral" (p. 81).
- entrevista na Folha de São Paulo de 3/5/04 com o neurocientista António Damásio, do Depto de Neurologia da Universidade de Iowa, EUA, onde ele diz que "estados de espírito como tristeza, orgulho, empatia e amor são manifestações de um mecanismo biológico responsável pelo equilíbrio geral do organismo (a homeostase)".
- artigo da Folha de São Paulo, de 10/4/04, onde lemos que: "USP e Unifesp usam radiação em cirurgia de tratamento de transtorno obsessivo-compulsivo; técnica vem dos EUA".
- Psicorreio de 13/5/04: Encontro de Neuro-Psicanálise, em maio/2004, em S. Paulo, com a presença do criador desta entidade híbrida entre Neurociência e Psicanálise, o americano Dr. Mark Solms.
Parafraseando
Caetano Veloso: "Cada um sabe a dor e a delícia de ser o que
é". Nos dias de hoje, ninguém mais quer saber da dor
inerente a ser o que se é. A mídia não pára
de gritar, o tempo todo, no ouvido de todo mundo, que a dor "já
era", podemos viver apenas as delícias de sermos o que somos,
desde que devidamente "turbinados", pelas cada dia mais fantásticas,
"pílulas da felicidade"!
Quem há de resistir à doçura de tal "canto das
sereias"? Não há mastro, por melhor que estejamos nele
amarrados, que dê conta de nos impedir de mergulhar, sofregamente,
nessa busca mágica, química, mecânica de satisfação,
bem-estar e felicidade.
A quase totalidade de nossos analisandos ou pacientes em psicoterapia psicanalítica,
cedo ou tarde, acaba deitando-se no divã e dizendo: "O Sr. leu
sobre a droga X ou Y em tal ou qual jornal ou revista? O que o Sr. acha
dela?"
Sim, são pacientes mergulhados nesta nossa cultura pós-moderna,
já chamada de "sociedade do espetáculo" (Debord,
G. - 1997) ou de "cultura do narcisismo" (Lash, C. - 1979). É
perfeitamente compreensível e esperado que eles tenham esse funcionamento.
Para que pensarmos demais, mergulharmos em questões sofridas, próprias
da vida dos mortais comuns, se podemos contar, como os habitantes do Olimpo,
com a mágica de gotículas do néctar dos deuses que,
sob a forma de "pílulas da felicidade", porão a
nosso serviço sua química extremamente aperfeiçoada,
permitindo-nos, na maioria das vezes, driblar tristezas e sofrimentos que,
eventualmente, se coloquem em nosso caminho?
Psicanálise e pós-modernidade
Podemos perceber o quanto a psicanálise está na contra-corrente
desse panorama tecnológico atual. Não que a psicanálise
desconsidere a utilidade dos psicofármacos que, em muitos casos,
chegam a desempenhar um papel heróico no tratamento de certos pacientes.
Joel Birman afirma que foi necessário Freud deixar a cocaína
para que pudesse inventar a psicanálise.
A questão é que, em seu âmago, ela visaria não
apenas supressão do sintoma, mas sim um aprofundamento, um mergulho
na angústia, no sofrimento do paciente, através do que analista
e paciente poderiam ter uma melhor compreensão do papel que tal sintoma
está desempenhando na organização psíquica desse
paciente.
.
"Com a angústia estamos no cerne das significações patológicas. Sob todos os mecanismos de proteção que singularizam a doença, revela-se a angústia e cada tipo de doença define uma maneira específica de reagir a ela [...]. Pode-se, então, dizer, de certo modo, que é através da angústia que a evolução psicológica transforma-se em história individual; de fato, é a angústia que unindo o passado e o presente situa-os um em relação ao outro e confere-lhes uma comunidade de sentido; [...]" [FOUCAULT, M., Doença Mental e Psicologia, p. 50, Edições Tempo Brasileiro, 1975].
Isto é, numa escuta psicanalítica, o sintoma não é um corpo estranho que atrapalha, que deve ser eliminado, mas sim um elemento precioso, entre outros, para possibilitar que o paciente compreenda a si mesmo, conheça-se melhor, em outras palavras, tome posse de si como um ser desejante, que se responsabilize pelo seu desejo, seja para sua felicidade ou seu sofrimento, independente do diagnóstico psicopatológico que venha ou não a receber.
"Todos os estudos sociológicos mostram igualmente que a sociedade depressiva tende a romper a essência da vida humana. Entre o medo da desordem e a valorização de uma competitividade baseada unicamente no sucesso material, muitos são os sujeitos que preferem entregar-se voluntariamente a substâncias químicas a falar de seus sofrimentos íntimos. [...] Se o limiar de tolerância dos pacientes baixou e se seu desejo de liberdade diminuiu, o mesmo acontece com os médicos que receitam ansiolíticos e antidepressivos. Uma pesquisa recente, publicada pelo jornal Le Monde, mostra que inúmeros clínicos franceses, sobretudo os que cuidam de emergências, não estão em melhores condições que seus pacientes. Inquietos, insatisfeitos, atormentados pelos laboratórios e impotentes para curar, ou, pelo menos, para escutar uma dor psíquica que os transcende cotidianamente, parecem não ter outra solução senão atender à demanda maciça de psicotrópicos. Quem se atreveria a culpá-los?" [ROUDINESCO, E., Por que a Psicanálise?, Jorge Zahar Ed., 2000, p. 30]
Os psicanalistas e a pós-modernidade
Ocorre que não apenas os pacientes e os médicos são
produtos dessa cultura, os psicanalistas também. Estes também
ouvem o mesmo "canto da sereia" e afinal, apesar de sermos postos
no lugar do sujeito-suposto-saber, realmente somos mortais comuns, sabemos
muito pouco e por vezes, estamos muito atrapalhados com nossas próprias
dores e sofrimentos.
O que quero chegar a evidenciar é que todos nós, pacientes,
psicanalistas, médicos e psiquiatras, somos produtos do mesmo caldo
cultural da pós-modernidade. Estamos todos igualmente impregnados
pelos valores pós-modernos. Talvez por isso, enquanto escrevo, percebo
que ora uso a terceira pessoa do plural (eles), ora a primeira pessoa do
plural (nós), pois desde este ponto de vista, somos todos iguais,
isto é, o "canto da sereia" acima referido é tão
tentador para o paciente como para o psicanalista.
Dentro desse panorama, podemos arriscar pensar como é difícil
para a dupla analisando-analista realmente se jogar para valer na situação
analítica propriamente dita, com todas as suas incertezas, falta
de garantias, intenso nível de sofrimento tanto de um como de outro
dos participantes da dupla. Freud se refere ao analista como alguém
que se propõe a lidar com os demônios da alma humana e que
deverá pagar o preço dessa ousadia.
Citando ROUDINESCO novamente (pág. 35):"A psicanálise parece ser ainda mais atacada hoje em dia por haver conquistado o mundo através da singularidade de uma experiência subjetiva que coloca o inconsciente, a morte e a sexualidade no cerne da alma humana".
Levando em conta o "espírito da época", fica mais fácil entendermos como, tanto para o paciente quanto para o analista, a tentação de um encaminhamento para o psiquiatra passa a se impor a cada momento em que essa dupla se depara com tais situações difíceis e sofridas a serem enfrentadas, "ao vivo e em cores", no calor do embate transferencial que deverá estar em curso se a análise realmente estiver ocorrendo.
Continuando com ROUDINESCO (pág. 41):
"Em lugar das paixões, a calmaria, em lugar do desejo, a ausência de desejo, em lugar do sujeito, o nada, e em lugar da história, o fim da história".
A grande dificuldade dessa colocação toda é conseguirmos avaliar qual seria a pertinência desses encaminhamentos serem ou não feitos pelos psicanalistas, uma vez que realmente dispomos, hoje em dia, de drogas extremamente eficientes e úteis. Isto é, a que altura dos acontecimentos tais encaminhamentos deixariam de ser resistência da dupla à análise e se constituiriam não numa atuação (acting out), seja do paciente ou do próprio psicanalista, mas sim numa ação necessária e útil para o prosseguimento da análise.
Uma possibilidade de compreensão
"Os gregos não possuiam um termo único para exprimir o que queremos dizer com a palavra vida. Serviam-se de dois termos, semântica e morfologicamente distintos, ainda que reportáveis a um étimo comum: zoé, que exprimia o simples fato de viver comum a todos os seres vivos (animais, homens ou deuses) e bíos, que indicava a forma ou a maneira de viver própria de um indivíduo ou de um grupo." (AGAMBEN, G., Homo Sacer, p. 9, Ed. UFMG, 2002)
Isto
é, os gregos e romanos, na época clássica, diferenciavam
a simples vida natural ou vida nua (zoé) de uma vida qualificada,
um modo particular de vida (bíos). Foi Aristóteles, em sua
Política, quem explicitou claramente essa diferenciação.
A vida nua não valia a pena ser vivida, apenas a vida qualificada
teria sentido. Quando Sócrates foi impedido de continuar vivendo
sua vida qualificada, ensinando aos jovens, ele tomou sicuta.
Essa contraposição vida nua x vida qualificada é usada
por Agamben para aprofundar os clássicos estudos de Foucault sobre
as transformações de que o poder foi sendo objeto no decorrer
dos tempos.
Em suas teorizações, Foucault vai estudar a transformação
do "Estado territorial" em "Estado de população":
na época clássica, o poder do Soberano era baseado na extensão
territorial de seu Estado. Um dos elementos do limiar da Modernidade é
a entrada em cena da população, como a base do poder do Soberano,
a partir do séc. XVII.
"As disciplinas do corpo e as regulações da população constituem os dois pólos em torno dos quais se desenvolveu a organização do poder sobre a vida. [...] A velha potência da morte que simbolizava o poder soberano é agora, cuidadosamente, recoberta pela administração dos corpos e pela gestão calculista da vida. [...] Abre-se, assim, a era do bio-poder". [FOUCAULT, M., História da sexualidade 1: A vontade de saber, p. 131, Ed. Graal, 1988].
Houve
uma mudança drástica na importância política
dos indivíduos enquanto simples corpos viventes, uma "explosão,
portanto, de técnicas diversas e numerosas para obterem a sujeição
dos corpos e o controle das populações". (FOUCAULT, 1988).
Dessa forma, o bio-poder ou poder disciplinar vai iniciar uma série
de movimentos visando o cuidado e a proteção da vida da população.
Surgem, então, as práticas da higiene, da medicina, a assistência
social, a valorização da sexualidade, enfim, todo o desenvolvimento
tecnológico do mundo moderno, visando atingir aquele objetivo.
O que Agamben procura esclarecer é que todo esse esforço de
cuidar da vida dirige-se, na verdade, à vida nua. É ela que
deve ser desenvolvida, em detrimento da vida qualificada, para que a população
possa transformar-se em uma massa homogênea dócil, passível
de ser manobrada e disciplinada pelo bio-poder.
Assim, a vida qualificada vai sendo desvalorizada, à medida que as
estratégias políticas do bio-poder dirigem-se à massa
populacional, encarada como simples corpos viventes, que devem ser cuidados
e protegidos cada vez mais eficientemente.
Tal estado de coisas chega a um ápice na pós-modernidade:
As famílias devem atentar para o planejamento familiar e, em caso de esterilidade, temos inseminação artificial, fecundação in vitro, barriga de aluguel, doação de óvulos, etc; - se for desejado um filho só seu, sem participação de um parceiro, está disponível a clonagem; - as gestantes todas devem fazer acompanhamento pré-natal; - as crianças devem ser todas vacinadas com as mesmas vacinas; - as nutricionistas criam dietas-padrão para cada faixa etária; - os corpos deverão ser belos e saudáveis, seja através de cirurgias plásticas padronizadas, lipo-esculturas, botox, 200 gramas de silicone aqui, 300 acolá, etc., ou através de infindáveis horas de "malhação" nas academias de ginástica; -todos os tórax, cinturas, bíceps, nádegas, seios, etc., deverão ficar com as mesmas medidas, veiculadas pelas mesmas celebridades globais; - tais corpos uniformes deverão estar revestidos pelos mesmos jeans, aceitando-se pequenas variações como as exibidas por Gisele Bundchen e compradas na C&A; - todos deverão ter suas casas próprias, de preferência com 3 dormitórios, sendo uma suíte; - os carros de todos devem ser muito semelhantes, geralmente mini-vans cor prata, todos com um ano de garantia; - os filhos devem freqüentar escolas que ensinem as mesmas matérias para todos, quer gostem ou não e, no devido tempo, deverão encontrar um tema, obter os mesmos créditos e defender suas teses de mestrado e/ou doutorado; - ao menos uma vez por semana, todas as crianças deverão ir a uma das centenas de lojas do McDonalds espalhadas pelo planeta e comer os mesmos sanduíches de sempre; - por ocasião das eleições, todos deverão votar em Paulo Maluf, que rouba, mas faz; - aos domingos, todos deverão ir a algum templo de algum tipo de religião e ficar pedindo, em altos brados, com os membros superiores dirigidos para cima, que Jesus ou alguma outra entidade do gênero, os cure de suas doenças e sofrimentos; - todos os portadores de câncer deverão fazer suas respectivas quimioterapias, sofrendo até o fim com seus terríveis efeitos colaterais; - a partir dos 60 anos de idade, todos que necessitarem deverão fazer suas pontes de safena ou prostatectomias; - todas as famílias que tenham doentes terminais deverão interná-los em alguma UTI, para que lá possam morrer sem serem vistos em situação tão degradante e seus corpos deverão ser, de preferência, cremados, enquanto a família e amigos aspiram o perfume espargido pelo ambiente do crematório.
Então,
isso tudo é a vida nua, por mais que esteja hierarquizada em diferentes
graus de coisas piores ou melhores. E tem muito, muito mais. A que distância
estamos da bíos, que seria a forma ou maneira de viver própria
de um indivíduo ou de um grupo!
Tal diferenciação entre vida nua e vida qualificada me pareceu
extremamente fértil em termos de estimulação do pensamento,
lançando, talvez, um pouco de luz sobre alguns fatos da atualidade,
muito intrigantes e que clamam por uma possibilidade de compreensão.
Estou me referindo, por exemplo, aos garotos que, repentinamente, metralham
colegas e professores em suas escolas, ou aos homens-bomba palestinos. Poderíamos
pensar que, "ao estourarem o outro ou ao se explodirem", esses
indivíduos estariam escapando aos horrrores da vida nua e recuperando,
de uma maneira tresloucada, obviamente, a sua vida qualificada no próprio
momento em que se explodem, pagando o preço da morte por essa recuperação.
Mas voltando à questão inicial deste texto, penso que poderíamos
acrescentar à caracterização (ou caricaturização)
da vida nua alguns itens:
-
todos deverão ter seus quadros clínicos de pânico ou
de depressão, em função do desamparo instalado após
a morte de Deus;
- todos deverão conseguir que algum médico, psiquiatra ou
não, lhes prescreva o antidepressivo de última geração;
- todos deverão acreditar que, após tomá-lo, sentir-se-ão
felizes, apesar de todos os pesares.
"Longe de construir seu ser a partir da consciência das determinações inconscientes que o perpassam à sua revelia, longe de ser uma individualidade biológica, longe de pretender-se um sujeito livre, desvinculado de suas raízes e de sua coletividade, ele se toma por senhor de um destino cuja significação se reduz a uma reivindicação normativa. [...] Cada paciente é tratado como um ser anônimo, pertencente a uma totalidade orgânica. Imerso numa massa em que todos são criados à imagem de um clone, ele vê ser-lhe receitada a mesma gama de medicamentos, seja qual for o seu sintoma". (ROUDINESCO, 2000).
Dentro
dessa compreensão, poderíamos pensar que a angústia
seria o resultado da perda da vida qualificada. Quem consegue driblar a
angústia conseqüente à perda dessa qualificação,
através da hierarquização da vida nua, de certa forma
se aliena, mas assim consegue ir vivendo...
Podemos, agora, fazer mais algumas considerações a respeito
da questão Psicanálise - Psicofármacos.
A psicanálise se constituiria numa resistência ao bio-poder
na medida em que, em sua essência, busca a singularidade do sujeito,
um estilo de existência particular de cada um, a constituição
ou recuperação de sua vida qualificada. A angústia
e a depressão, conseqüentes à falta de garantias e ao
desamparo (dentro da concepção freudiana do rochedo da castração
em Análise terminável e interminável, 1937), e, em
última instância, à pulsão de morte, que se constituiriam
em valores da vida qualificada, tornam-se indesejáveis no gerenciamento
político do bio-poder e deverão ser eliminados quimicamente,
através de medicamentos, ou de alguma outra forma, seja de procedimentos
de certa medicina paralela, ou religiosos, mágicos, místicos,
etc., etc.
Isso tudo posto, algumas questões se impõem:
- para onde iremos?
- será que a vida nua triunfará e nos transformaremos numa massa amorfa, porém dócil, disciplinada, manipulável, religiosa, drogada, robotizada?
- a química dos psicofármacos terá condições de atuar preservando a possibilidade de uma singularidade individual?
Estas e muitas outras questões permanecem no ar, provocando muita angústia nesta nossa era pós-moderna. Os panicados e os neuróticos que nos procuram que o digam!
Talvez nós mesmos pudéssemos dizê-lo. Ou talvez seja mais prudente nos calarmos, pois está na hora de irmos para a academia, fazer ginástica...
Bibliografia
AGAMBEN, G., Homo Sacer, Ed. UFMG, 2002.
FOUCAULT, M., Doença Mental e Psicologia, Edições Tempo Brasileiro, 1975.
FOUCAULT, M., História da sexualidade 1 : A vontade de saber, Ed. Graal, 1988.
ROUDINESCO, E., Por que a Psicanálise?, Jorge Zahar Ed.
Esio dos Reis Filho
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