ILANA SAFRO BERENSTEIN [1]
“Suas impressões sobre o congresso”, propôs a Cris no dia da partida.
Ruas estreitas, azulejos, doces de ovos nas vitrines. A vida é trágica, contextualizou um analista português.
Há as ilhas que já existiam, como as oceânicas, e as outras que são efeitos de traumatismos e choques. Era sobre as fragmentações psíquicas. Já nos pré-congressos de São Paulo e do Rio de Janeiro, no ano passado, essas e outras vozes falavam sobre elas assim, com o cuidado enfático e político de não as patologizar.
Tema polêmico, houve que se explicar, não se trata de positividade em torno do conceito. Originárias ou não, elas existem, o sujeito vive com elas e sobrevive a elas, ou talvez sobreviva justamente devido ao recurso de tê-las. Fragmentar-se não é desintegrar-se.
A expectativa de integração, o ideal da unidade e a busca persistente por ligações parecem ser um ideal herdado de valiosos e antigos modelos, ligados exclusivamente ao recalque, pela própria ideia da formação do inconsciente, da tópica freudiana, mas que hoje já não é modelo único.
Bacalhau, fado, bom vinho. Ferenczi foi atento aos nefastos efeitos das violências cometidas por adultos que traíram a confiança das crianças.
A violência física somada à violência da invalidação da sua percepção, a violência da não escuta.
A identificação com o agressor, a importância do testemunho. A criança, em formação, duvida de si mesma, e não só ela. A escravidão psicológica, os traumas sociais. O amor é tão importante quanto a comida.
Profunda contribuição para a clínica, um chamado para uma prática prioritariamente sensível, de comunicação autêntica, mais atenta à reflexividade e à sensorialidade do que à teoria. Uma ética que valida, que olha com respeito, inclui a interdisciplinaridade, é capaz de tolerar complexidades e incertezas. A atitude empática.
Janelas interessantes, igrejas majestosas, história. O pensamento ferencziano inspira pensar sobre as origens, inclui a dimensão biológica à psíquica.
Origem da vida, da humanidade, da linguagem, dos sintomas. O processo humano, do feto ao adulto. Os processos de simbolização, o poder da palavra, a concretude da palavra, como do gesto, palavra corpórea que tem o poder de afetar o outro.
Palavras obscenas tecendo intimidade, dando acesso estético ao inconsciente no trabalho da análise. A diferença entre interpretar sobre a criança e falar com a criança de cada analisando. Para além da palavra.
Ampliação dos modos de organização psíquica, positiva o que as pessoas são, aceita suas partes e contradições. Pedaços válidos e viáveis.
Colegas de vários lugares, que analisam em diferentes línguas, buscam “soltar as línguas” com outros, expressão ferencziana. Encontro afetivo que alimenta.
Castelo carnavalesco, colonização, nossas conexões. Se não acreditarmos na clivagem, veremos o sujeito em ruínas.
A dimensão vital da fragmentação. A clivagem nesse contexto traz a ideia da autotomia, que também existe em outras espécies. Amputar parte de si mesmo de forma a preservar o resto, uma autodestruição parcial que se realiza no sentido da vida. Defesa frente ao perigo, mais primária que o recalcamento.
Fala-se no trauma fora da representação, de apartar de si o que não é elaborável. A experiência impossível fica neutralizada por uma parte des-ligada do sujeito. A fragmentação como um trabalho criador.
A transmissão dessas marcas traumáticas entre gerações – segue o grande enigma.
Jantar na casa de amigos, afeto e sentido. Os brasileiros estão colonizando Portugal, chiste que insiste frente à crescente migração.
Amiga analista portuguesa não foi ao congresso, mas conta que tem analisado brasileiros. Ao final do caloroso jantar, presenteia-me com um livro de escritora brasileira, Noemi Jaffe, O que os cegos estão sonhando?.
Não imagino melhor leitura para significar o conteúdo do congresso. Filha (a própria Noemi) e neta (Leda) diante de uma pessoa que sofreu a guerra, D. Lili, sobrevivente de Auschwitz. A posição da filha frente ao trauma da mãe. Filha publica diário da mãe. Na sequência faz um trabalho incrível de implicação, elaboração, introjeção.
E o mais tocante de tudo, a filha tem um profundo respeito pela memória e pelo esquecimento da mãe. Por tudo o que não quer e por tudo o que não pode lembrar. Por tudo o que faz ela ser quem é, com seu jeito singular de viver a vida e pelos efeitos de sua história, muitas vezes evidentes na visão da filha.
Alemanha, Portugal, Brasil. É preciso esquecer, é preciso esquecer. (...) Quem lembra, teme. (...) O medo é passado e futuro.
Destemida e habilidosa com as palavras, a filha reflete lindamente sobre a memória da mãe:
Lembrar e esquecer são coisas muito parecidas. São processos mnemônicos seletivos, relacionados ao passado – imediato ou distante – carregados de invenção e realidade. (...) O que se esquece não é um volume oco, em oposição a um volume maciço de lembranças. O que se esquece pode ser uma massa totalmente preenchida, com imagens e palavras que não falam. Você faz perguntas e elas permanecem mudas. Recusam-se a abrir os olhos e também a serem vistas.
Não há como tornar a memória dela mais flexível, mole, fluida, fazer surgir factos novos. A memória dela é uma caixa preta que caiu no mar.
A retomada do enigma, o sofrimento inenarrável e a atitude da filha: Quem ouve a pedra, emudece. Caminha-se com ela mas não é possível transformá-la em mais nada.
Noemi investiga a palavra esquecer em diferentes idiomas e pondera que esquecer pode ser perdoar mas também pode ser jamais perdoar, é uma forma de lembrar ao contrário.
Sem essa morte da memória, a vítima não pode viver, ou só poderá viver da lembrança infinita da dor. Será então uma nova vítima; vítima da lembrança.
A autora expressa que seu escrito foi um apanhado de retalhos e divagações. Li um texto extremamente sensível com o traumático, que veio de uma experiência de intimidade, em uma escuta que acolhe o outro como é, com tato e respeito, reconhecendo inclusive quando testemunhar é aceitar certos silêncios.
Minhas impressões sobre o congresso também saíram assim, fragmentadas. Mas tudo parece se conectar a um olhar inspirado pelas ideias de Ferenczi sobre nós e nossos sofrimentos. Sobre como estar na clínica com alguém que sofre.
Obrigada Cris, Mayra, Felícia, Raquel, Noemi e tantos outros.
[1] Psicóloga e psicanalista, aspirante a membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, integrante do grupo de trabalho Sexta Clínica e do Grupo Brasileiro de Pesquisas Sándor Ferenczi.