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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    43 Setembro 2017  
 
 
NOTÍCIAS DO DEPARTAMENTO

LAPLANCHE REDESCOBERTO 2?


MARIA DO CARMO VIDIGAL MEYER DITTMAR (LILA)[1]


No Boletim 38, Heidi Tabacof (2016) escreveu “Laplanche redescoberto”,[2] onde conta da redescoberta de Traduzir,[3] vídeo em que Jean Laplanche debate com Haroldo de Campos. As cenas foram tomadas em 1993, quando Laplanche esteve no Brasil a convite do Departamento de Psicanálise, e vinham a público agora, mais de 20 anos depois de editadas. Heidi também anunciava o número de Percurso sobre a obra do autor, que naquele momento estava em elaboração.

Nove meses após a publicação do número duplo de Percurso sobre a obra de Jean Laplanche e diante do bem-vindo convite do Boletim para que nós, integrantes do Conselho Editorial da revista, contássemos sobre sua elaboração, parece-me interessante fazer soarem perguntas sobre como esse número foi recebido pelos leitores e sobre a presença de Laplanche entre nós hoje. Daí a interrogação no título.

Coube-me escrever um pouco sobre esse número, e o farei de um ponto de vista pessoal.

Divido este texto em duas partes. Primeiro, retomo brevemente os motivos que nos levaram a propor o número e como transcorreu o debate que se seguiu à publicação da revista, ocorrido dia 8 de abril de 2017. Depois, discuto uma questão que se apresentou nesse debate, agora à luz do recente evento Psicanálise Contemporânea - A geração pós-Lacan e a clínica do negativo, que lhe dá maior repercussão e a relança. É importante fazê-la circular entre nós.

Percurso 56/57
Os motivos da publicação de um número em homenagem a Jean Laplanche são apresentados no editorial da revista. Entre eles, ao lado da importância de seu pensamento, tratava-se de recuperar marcas de uma história vivida no Departamento e dar oportunidade para sua atualização. Além disso, quando resolvemos fazer esse número, vivíamos uma lacuna muito grande de publicações em português da obra de Laplanche: quase 20 anos! O objetivo era, então, apresentar o pensamento final do autor e as questões deixadas abertas a partir de psicanalistas que seguiam trabalhando seu pensamento. Na ocasião, fizemos uma chamada para que membros do Departamento contribuíssem com artigos e também convidamos psicanalistas que sabíamos ocupados com o pensamento de Laplanche já havia muito tempo. Curiosamente, a chamada à apresentação de trabalhos não trouxe tantas contribuições quanto imaginávamos a princípio e, durante a preparação da publicação, foi se delineando para mim a pergunta sobre quanto o autor vinha sendo trabalhado entre nós. A pergunta “por que Laplanche?” pareceu ganhar relevância e, creio que não à toa, foi o título da seção Debate, que elegeu como eixo principal a questão do gênero.

No debate que sucedeu a publicação, tivemos o prazer de contar com a presença de alguns dos autores convidados, Paulo Carvalho Ribeiro, Maria Tereza de Melo Carvalho e Luiz Carlos Tarelho, aos quais foi proposto apresentar um comentário sobre a revista. A partir desse disparador transcorreu uma conversa muito interessante, num clima produtivo e de participação de todos os presentes – autores, membros e muitos dos que participaram da produção da própria revista (produtoras do vídeo, grupo que entrevistou Christophe Dejours, Conselho Editorial e de Resenhas, seções Debate e Debate Clínico).

Lembro-me da sensação interna de uma circulação intensa e acelerada de ideias: a questão dos gêneros, o estatuto do complexo de Édipo e da castração no pensamento do autor, o mito-simbólico, a identificação primária, a proposta de uma nova tópica psíquica e questões relativas à clínica, entre outras. Um aspecto interessante trazido pelos convidados foi o comentário que fizeram sobre as jornadas bianuais sobre o autor, agora conhecidas, mas das quais até a publicação da revista não se falava entre nós: na visão dos três convidados, Laplanche era um autor que convocava ao debate e que desejava que ideias antagônicas viessem a público.

Destaco ainda a possibilidade que tivemos de conversar sobre o debate clínico em presença do analista que apresentou o caso clínico, Paulo Ribeiro, e de uma das debatedoras, Lucía Fuks, o que nem sempre é possível.

Entre tantos temas, em determinado momento, possivelmente convocada por uma discussão em torno do texto de Renato Mezan, “Green, leitor de Laplanche”, me vi animada a situar a diferença de inspiração entre os dois autores e dizer: se eles brigaram, problema deles, cabe a nós trabalhar com o que nos deixaram. Na ocasião, ressaltei que são pensamentos que absolutamente não se recobrem: ambos são preciosos.

Naquele momento, ressoava em mim uma questão que se havia formulado no decorrer da preparação da revista: o que aconteceu com a transferência com o pensamento de Laplanche no campo da psicanálise? A meu ver, pensamento potencialmente includente, que ajuda a organizar o campo psicanalítico, cada vez mais diverso e plural, e, nesse sentido, enseja diálogo: concorde-se com ele ou não, ele ajuda a debater com maior clareza. Então, me perguntava: se aquele era um pensamento que teve grande penetração entre nós, ordenador, potencialmente includente para o campo como um todo e que havia deixado abertas pistas e tantas questões para desenvolvimentos futuros, por que teria sumido do mapa das publicações?

Algumas hipóteses se apresentavam. Em primeiro lugar, embora eu enxergue em sua obra uma possibilidade organizadora e, consequentemente, ele me inspire um pensamento que contribui para trabalhar a diversidade do campo, em sua produção, ele não privilegia incluir e abarcar a produção de diferentes autores. Pelo contrário, ele não constrói um pensamento que vai ampliando e incorporando. Sua direção é oposta: constrói um que visa os elementos mínimos, os quais defende com unhas e dentes. Nesse sentido, sua obra é certamente ambiciosa: busca os fundamentos e deseja que, a partir deles, seja possível reordenar o campo. No entanto, não se propõe a abarcar tudo, mas, ao contrário, deixa abertas e possibilita enunciar muitas questões. Além disso, Laplanche definitivamente não contempla diretamente a clínica. Não encontramos nem uma só menção a um atendimento clínico realizado por ele – o que o situa mesmo à contracorrente. Jacques André nos dá uma pista, ao escrever que Laplanche afirma que sua inspiração veio da filosofia – como o vemos dizer em sua rápida aparição no documentário de Agnès Varda, Les glaneurs et la glaneuse[4] , de 2000: Laplanche diz que, além de vinicultor, “é também psicanalista, um teórico da análise, um filósofo da análise”.[5] No entanto, eminentemente denso e metapsicológico, seu pensamento fazia referência à clínica e me despertava interrogações clínicas. E foi a questão da situação analítica que, entre tantas outras, acabei por privilegiar no artigo que escrevi para a revista, no qual busquei delimitar o que ele havia dito e indicar algumas direções que me interessavam seguir desenvolvendo. No decorrer de minha pesquisa, descobri que Laplanche considerava a teoria da sedução “uma tentativa de compreender a prática psicanalítica”,[6] dando a ver uma articulação entre uma e outra ainda mais intrínseca do que aquela que eu já conhecia.

Assim, me pareceu interessante formular a pergunta sobre o lugar do pensamento de Jean Laplanche entre nós, com a vantagem de que, como já disse, após aquele debate, seguiu-se o evento Psicanálise contemporânea – A geração pós-Lacan e a clínica do negativo, que, de certa forma, deu continuidade ao debate sobre a revista.

Contracorrente e rio africano
Falar de Laplanche, Green e Lacan, mas também de Klein, Bion, Ogden e Winnicott, entre tantos outros autores interessantíssimos, convoca nossa cena primária, como bem disse Mezan no dia do evento, usando um termo de grande repercussão em nossas “mentes psicanalíticas” e que ajuda a pensar sobre o esforço de pensamento necessário para dar lugar à contribuição de diferentes autores.

Ao lado do esforço teórico, há o esforço de construir a história, entre fragmentos do real, fantasias e significações possíveis, o que sempre aponta complexidades. Cito de memória, mas creio que sigo próxima ao que Mezan disse: esses autores “copulam em nossas cabeças de forma nem sempre pacífica” – o que é uma forma divertida de dizer que transformar essas intensidades complexas numa novela familiar narrável é uma tarefa e tanto –, e, entre as versões singulares, somos convocados a um esforço coletivo para que a novela não cristalize lugares que obliterem o pensamento teórico. Em “honra” a Laplanche, podemos dizer que muitos restos enigmáticos seguem pulsando, exigindo novas traduções – o que poderia ser dito em diferentes “línguas” psicanalíticas.

Fernando Urribarri foi muito feliz ao dar relevo a um momento da história da psicanálise em que havia um “movimento coletivo”, que constituiu uma “trama geracional horizontal e crítica”, dando origem a produções que conversavam em grande proximidade umas com as outras, num movimento que, ao mesmo tempo, criou uma “nova matriz teórico-clínica” e diferentes metapsicologias. André Green destaca-se como um autor que “pensou com” (veja-se o título de seu último livro, de 2013).[7] Entendo que a exposição de Urribarri possibilita pensar no caráter paradoxal da presença de Jean Laplanche: ele queria debate, ao mesmo tempo em que, ao criar colóquios Jean Laplanche com esse objetivo, se afastou de seus contemporâneos. Ao nomear “Contracorrente” um artigo seu numa obra conjunta, Laplanche parece estar imerso nesse paradoxo. Diz ele:

[...] em relação a sua época, o próprio Freud estava à contracorrente. Contra a sua vontade, mais de uma vez, ele foi levado pela “corrente”. Assim, ir à contracorrente é tentar reencontrar a exigência primeira e constante que tanto afligiu Freud, em oposição a certos aspectos de sua obra, por mim algumas vezes chamados de “descaminhos”. Essa exigência – que, de modo mais ou menos latente, continua a mover os analistas – precisa ser resgatada, precisa tornar-se viva na teoria e na prática: o que faz sempre presente a necessidade de “novos fundamentos”.[8]

Assim parece-me situar-se Laplanche: com Freud e com todos parcialmente e sem concessões, e essencialmente à contracorrente, em direção a uma exigência primeira que estaria sempre a nos escorrer pelas mãos.

Segundo Urribarri, Laplanche referiu-se criticamente a Green como rio africano. A imagem parece estar num dos artigos de Laplanche, mas não consegui encontrar a referência. De todo modo, como não contrapor a direção do pensamento dos dois autores? Um nadando à contracorrente em direção às fontes para renová-las,[9] e outro se alargando como um rio africano. Sorte nossa. Ganhamos todos, pois um rio volumoso existe a partir de sua origem e do recebimento contínuo da água de muitos outros rios.

Recentemente, em 4 e 5 de agosto, houve em Buenos Aires um colóquio em homenagem a Silvia Bleichmar, transcorridos 10 anos de sua morte. Foi um encontro produtivo, emocionado e emocionante, promovido por seu marido, Carlos Schenquerman, e seus filhos, em especial Marina Calvo. Título do colóquio: Poniendo a tabajar Silvia Bleichmar – una puesta en común. A ideia é que volte a haver novos encontros, e a proposta é fazer trabalhar Silvia Bleichmar. Podemos dizer que Bleichmar foi também um rio africano, no bom sentido. No momento em que nos encontramos, muito do que podemos avançar como campo depende do quanto poderemos sustentar as tensões entre diferentes metapsicologias, no sentido de fazê-las trabalharem com rigor diante da experiência clínica e da realidade. No que se refere a Bleichmar, essa era uma de suas características marcantes, dando origem a um pensamento criativo e singular que não a impedia de reconhecer a importância de Laplanche e de dialogar com ele.

Que nós também possamos pensar com Laplanche, com Green e Bleichmar, entre tantos outros, e, fundamentalmente, entre nós. Que o esforço coletivo nos ajude a ultrapassar as cenas primárias e não nos remeta incansavelmente a elas exatamente naqueles momentos em que mais nos empenhamos em pensar.

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[1] Psicanalista, membro dos Departamentos de Psicanálise e Psicanálise com Crianças do Instituto Sedes Sapientiae, coordenadora e professora do curso Psicanálise com Crianças. Integra Conselho Editorial da revista Percurso.
[2] Tabacof, H. Laplanche redescoberto. Boletim Online, São Paulo: Instituto Sedes Sapientiae, n. 38, jun. 2016. Disponível em: http://www.sedes.org.br/Departamentos/Psicanalise/index.php?apg=b_ visor&pub=38&ordem=9. Acesso em: 28 ago. 2017.
[3] Traduzir: conversa com Laplanche e Haroldo de Campos [vídeo]. Percurso – Revista de Psicanálise, São Paulo: Instituto Sedes Sapientiae, v. 29, n. 56/57, jun./dez 2016. Disponível em: . Acesso em: 28 ago. 2017.
[4] https://www.dailymotion.com/video/xcyr4b
[5] Editorial. Percurso – Revista de Psicanálise, São Paulo: Instituto Sedes Sapientiae, v. 29, n. 56/57, p. 12, 2016.
[6] Laplanche, J. Breve tratado del inconsciente. In: ______. Entre seducción e inspiración: el hombre. Buenos Aires: Amorrortu, 2001[1993], p. 92.
[7] Green, A. Penser la psychanalyse avec Bion, Lacan, Winnicott, Laplanche, Aulagunier, Anzieu, Rosolato. Paris: Les Éditions d’Ithaque, 2013.
[8] Laplanche, J. Contracorrente. In: Green, A. (Org.). Psicanálise Contemporânea: Revista Francesa de Psicanálise – Número especial, 2001. Rio de Janeiro: Imago/São Paulo: SBPSP, 2003, p.357.
[9] Laplanche, J. Novos fundamentos para a psicanálise. São Paulo: Martins Fontes, 1992, p. 3.




 
 
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