Por Coletivo Experiência Escuta
Resposta ao artigo de Marcelo Coelho publicado na Folha de São Paulo em 09/02/2021.
Vinicius de Moraes dizia que estamos sentados sobre um barril de pólvora. Um alerta feito há décadas, mas que não perdeu sua atualidade. Hoje boa parte da nossa vida pública é marcada por tensões explosivas que produzem cancelamentos, exclusões, polarizações, distorções da realidade e sofrimento. A mentira e o cinismo viraram armas nas mãos dos mal intencionados, dos ressentidos egoístas e dos psicopatas. Os efeitos dessa cultura de ódio estão aí para quem quiser ver: ataques às instituições democráticas, à ciência, a certos grupos, identidades ou pessoas, apenas para começar a longa lista de mazelas que se agravam ainda mais no meio de uma pandemia.
Na última quarta-feira, um articulista da Folha de S.Paulo atacou de forma vil uma categoria profissional, adicionando um pouco mais de pólvora neste barril já tão saturado. Essa estratégia, de eleger um grupo como depositário de todo o mal-estar da sociedade não é gratuita. Ela serve para confundir e não contribui em absolutamente nada na busca das soluções coletivas que precisamos encontrar neste momento de extrema dificuldade. É um desserviço e, em um contexto de polarização e violência, é muito perigoso fazer ataques impróprios.
Pois foi o que este articulista, que não merece ter o nome lembrado aqui, fez ao atribuir às psicólogas e aos psicólogos o ato de furar a fila da vacinação. Neste caso, vale lembrar que furar fila é muito diferente do que está realmente acontecendo. Mas há, de fato, um mal-estar nisso tudo, assim como existe muita injustiça nos critérios que definem quais grupos são prioritários. Sobre isto, a psicologia nunca se furtou ao debate. Prova disso é a recomendação dos Conselhos de Psicologia de que apenas os profissionais da linha de frente sejam vacinados. Acontece que não são os psicólogos que definem os critérios de quem deve ou não tomar a vacina neste momento.
Aliás, quem define esses critérios? Se há um mal-estar, ele deve ser direcionado à falta de um debate nacional, amplo, técnico e transparente sobre os critérios. Se há um mal-estar, devemos lembrar das agressões sofridas pelos profissionais de saúde, sobretudo no início da pandemia. Se há um mal-estar, ele deveria ser direcionado contra quem teve a chance de comprar milhões de doses de vacina, mas escolheu não comprar. Se há um mal-estar, ele deve ser direcionado contra quem vem sistematicamente atrasando o Programa Nacional de Imunizações, ou contra quem divulgou e incentivou o uso de medicamentos ineficazes, ou contra quem incentivou aglomerações e o não uso de máscaras. Se existe mal-estar, ele deve se voltar contra o político negacionista que dizia ser contra a vacina, mas que – este sim – furou a fila para garantir a sua dose; ou contra o funcionário público número um do país que, em meio a uma pandemia, coloca o seu cartão de vacinação sob sigilo por cem anos. Isso sim causa um mal-estar e uma série de desconfianças desnecessárias.
Existem pessoas que devem ser responsabilizadas pelo nosso sofrimento e pela sensação de injustiça que toda a população brasileira sente neste momento em que faltam vacinas e sobram privilégios.
As psicólogas e os psicólogos são solidários a toda indignação que essa situação vem causando, e vêm cumprindo com os seus deveres, seja acolhendo a nossa população em sofrimento, seja obedecendo aos critérios estabelecidos por sabe-se lá quem para a vacinação.
É preciso botar os pingos nos “is” e não abaixar a cabeça quando um preâmbulo qualquer, apressado e leviano, busca um bode expiatório para defletir a verdadeira discussão que é responsabilizar os verdadeiros culpados pela nossa prostração moral e miséria civilizatória. O texto infeliz é explosivo porque tenta eleger um novo inimigo, a bola da vez, aumentando ainda mais a polarização e esgarçando ainda mais o tecido social. E em se tratando de mal-estares, saber que tudo isso veio de um sociólogo é espantoso. Parafraseando aquela coluna, quem é craque na interpretação do social sempre pode levar os outros a indevidas – e (in)convenientes – conclusões.