Grupo de fomento à neurociência por Mateus Pinheiro de Souza

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Agradeço o convite do Emir para reunir um grupo de psicanalistas que use achados da neurociência como fomento para discussão. Devo dizer que, apesar do interesse no assunto, a princípio fiquei indeciso. Psicanálise e pesquisa experimental exercitam métodos tão diversos de aproximação dos seus objetos que tentar estabelecer entre elas uma ponte, embora estimulante, é tarefa que me suscita expectativas reservadas. Um dos problemas que surge de saída é o das diferentes linguagens, que transitam por níveis semânticos distintos. A psicanálise aprecia muito o trabalho mental feito com a intuição, com aquilo que não está mais ali ou ainda não está, e costuma ser muito sensível às ressonâncias da própria fala. O objeto da psicanálise é por princípio complexo, subjetivamente complexo – e tal complexidade por si só traumatiza (já que um dos temas é o trauma!). Nosso grupo, o dos ‘psis’, às vezes parece se defender deste tipo de trauma criando e usando clichês e jargões. O que não faz parte disto – encontrar um estilo genuíno e uma linguagem pulsante – é trabalho para a vida inteira e implica no desenvolvimento de modos menos assustados ou enrijecidos de lidar com a complexidade psíquica.

Por outro lado o objeto da neurociência também é infinitamente complexo. Mas parece tratar-se aqui de uma complexidade diferente, talvez porque objetivamente abordada – mesmo que exista um limite para esta objetividade. O pesquisador experimental testa a sua intuição com metodologias diferentes das usadas pelo psicanalista. Talvez em função disto, os produtos das disciplinas em questão geram estados de animo diferentes em quem entra em contato com elas, o que se torna evidente na linguagem: embora cada qual tenha o seu estilo, os pesquisadores experimentais parecem buscar o máximo da síntese e da objetividade, o que tende a gerar neles um dizer mais para racional e pragmático.

Meu contato com este tipo de pesquisa sempre foi só o do curioso, não tenho nenhuma patente – embora clinique como psiquiatra, portanto me servindo das descobertas a que tenho acesso nesta área. E se admiro a proeza que seus interlocutores conseguem de serem simples, também noto que, quando se trata de discutir o que descobrem, tal virtude eventualmente é alcançada às custas de pequenas ou grandes inclinações ao reducionismo.

O pensar psicanalítico, de modo quase que oposto, parece sempre querer se expandir. E dados os limites pouco precisos – muito embora esteja baseado em pressupostos que julgamos firmes (a começar pela existência de uma vida inconsciente) – não raro se mostra confuso ou contraditório. Um conhecimento de difícil manutenção, dá para dizer. Somos portadores naturais de uma carga grande de questionamento e de autoquestionamento. Não podemos e nem conseguiríamos nos livrar dessas características de nossa subjetividade que às vezes parecem defeitos, às vezes virtudes: ao reduzir menos, ao não pretender ser somente o que aparenta ser, o pensar psicanalítico assim que exposto já se abre para o a mais que lhe chega junto, para o demais, para o discurso e para o sonho vizinho, e assim por diante. O psicanalista é como que tragado pelo vórtice da complexidade, num movimento de curso errante (de dis-curso), numa tentativa de ocupar as lacunas que percebe e intui nesse seu próprio dizer.

A psicanalítica é fala incômoda em qualquer discussão que se pretenda mais racional. Sabemos que suportar este incômodo vale a pena pois, uma vez suportado, um efeito enriquecedor pode acontecer no pensamento, por deixar de se apoiar exclusivamente no raciocínio lógico, integrando em seu corpo o impacto emocional que a própria razão humana gera. Por outra, a dialética com a pesquisa experimental pode vir a nos reconciliar com um fato facilmente esquecível: nós psicanalistas construímos nossas teorias, já desde Freud, com base não apenas em nossas observações clínicas, mas também em simples conjecturas.
Assim, agradou-me a ideia de formar um pequeno grupo de discussão com sotaque psicanalítico tendo como estímulo a apresentação de achados experimentais. Convido-os a pensar junto comigo este estímulo não para que nos calemos diante do tom por vezes peremptório dos pesquisadores (o real, o inferno do real, do corpo e dos fatos nele observados com tecnologias cada vez mais infernais!) mas, justamente o contrário, para que ao nos informarmos e conversarmos sobre alguns dos conhecimentos científicos, ainda assim possamos usar nossa imaginação sobre as novas áreas de ignorância por eles revelada.

Dada a abrangência do tema, um problema que surge de imediato é a escolha e seleção de publicações a serem abordadas (a dispersão de informações também é outro trauma!). Gosto da ideia de podermos trabalhar com apresentações feitas em vídeos, embora também possamos lidar com texto escrito. Há uma infinidade de vídeos circulando pela rede (no youtube, nas ted talks, e afins) dos quais podemos facilmente nos servir, bem como outra enormidade de artigos em revistas científicas de fácil acesso. Como o eixo temático é o do acolhimento, sugeriria ao grupo que vier a se formar, para um primeiro encontro, ouvirmos alguns vídeos e entrevistas de Jack Panksepp, psicólogo e pesquisador da neurociência, desbravador da pesquisa experimental com a afetividade nos animais. Nenhum especificamente, o que ou os que cada um conseguir assistir. Decidiríamos junto a eleição de novos estímulos, datas e horários. Já imagino de antemão que não nos contentaremos com o pensar da neurociência – mas parece mesmo difícil ficarmos contentes. A data da primeira reunião é dia 9 de março, `as 10:40, no SEDES – favor perguntar pela sala na secretaria.

Vamos a tal encontro!
Mateus Pinheiro de Souza

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