Psicanálise e Sociedade: A Psicanálise e sua Potência de Transformação Social – Alessandra Ruivo e Gisele Assuar

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Dia 03/09/2016, o Departamento Formação em Psicanálise, através de sua Comissão de Eventos, realizou mais um Psicanálise e Sociedade.
Neste evento buscou-se uma reflexão acerca da psicanálise para além de seu método de tratamento clínico no consultório. Acreditando na importância de transmitir o alcance da psicanálise “extramuros”; da psicanálise como extensão no âmbito social, tratamos de discutir as seguintes questões: Podemos pensar a psicanálise como um dispositivo de incidência política? Como a psicanálise pode atender à demanda que quem sofre violência social? Este evento marcou também sua consonância com a Carta de Princípios do Instituto Sedes Sapientiae, principalmente no que se refere as premissas: de responsabilidade na transformação qualitativa da realidade social, de formação continuada e de não repetição de meros saberes, deixando aberta a condição de liberdade de pensamento e expressão.
Contamos com a grata presença de Christian Dunker, psicanalista, professor titular de psicologia da USP e coordenador do LATESFIP/USP; Marta Cerruti, professora do curso Formação em Psicanálise do Depto. Formação em Psicanálise do ISS, doutora em Psicologia Clínica pela USP e Sandra Alencar, doutora em Psicologia Social pela PUC/SP, psicóloga e psicanalista pela Secretaria Municipal de São Paulo.
Compareceram ao auditório do Sedes mais de 150 pessoas, dentre elas, Miriam Debiex, professora do Instituto de Psicologia da USP e da Pós-graduação em psicologia clínica, coordenadora do Laboratório “Psicanalise e Sociedade” e do Projeto Veredas – Migração e Cultura; e Maria Cristina Ocariz, integrante do grupo unificado do Projeto Clínica do Testemunho do ISS, duas pessoas caríssimas aos movimentos de militância social.
Dunker, abriu os trabalhos da mesa discorrendo sobre os termos que deram nome ao título do evento: Psicanálise, Potência e Transformação Social. Apresentou a Psicanálise, criada por Freud, como um método de investigação, um procedimento de tradução daquilo que nos escapa pela via da consciência, marcando a existência de um inconsciente que divide radicalmente o sujeito, revelando-nos que o eu não é dono e Senhor em sua “própria casa”. Assim, podemos entender que a própria concepção do ser para a psicanálise se define pelo conflito.
Se para Freud, a psicanálise pode ser uma ferramenta para a crítica social, política e da ideologia, Lacan, em sua releitura, aprofunda essa ideia e nos mostra que ela é também uma ética definindo, assim, sua vinculação com a dimensão política: a psicanálise é um discurso entre outros discursos. É, portanto, no campo da palavra e do conflito que encontramos a ponte entre a psicanálise e a democracia.
A noção de Potência foi relacionada ao conceito de Vontade: schopenhaueriana e nietzschiana. Aludiu para a questão dialética da potência/impotência, culminando no desvelamento do desamparo. O analista, portanto, está às voltas com a gramática da lógica do reconhecimento do sofrimento. Neste ponto, chegamos a ideia de Dunker sobre Transformação; potência e transformação, dois conceitos interligados, em intersecção. O sofrimento seria um aporte para transformação social, destacando que dor não é sofrimento. Sofrimento implica nomeação visibilidade ou invisibilidade. Nomear o sofrimento transforma, daí a necessidade de reconhecimento. O consultório é um lugar de reconhecimento, mas não é o único. Podemos pensar a lógica do reconhecimento da psicanálise “extramuros”, pensar a possibilidade de militância com os ideais psicanalíticos.
Marta Cerruti nos apresentou um texto com uma forte crítica social em relação à discriminação dos jovens pobres e “pretos”, das periferias de São Paulo. Discorreu sobre os rappers, em especial sobre Mano Brown, o Pedro Paulo, que só pode sobreviver à violência de sua condição, marcada pelo descaso devido à falta de uma política social que respeite e dê voz a uma classe que sofre violências, vindas no plural mesmo: violência física da polícia, violência do preconceito da sociedade, violência do abandono das políticas públicas, violência pela perda da cidadania, ou melhor dizendo, violência perpetuada pela não condição de vir a ser um cidadão. Pedro Paulo seguiu vivo, mas somente por ter se tornado o rapper Mano Brow.
Tivemos a fala de encerramento com Sandra Alencar, que partilhou conosco sua comovente e marcante experiência com mães da periferia e suas dificuldades de poderem enterrar seus filhos assassinados pela violência policial que impera nessas regiões. Essa experiência virou Tese de seu doutorado “A experiência do luto em situação de violência entre duas mortes”. Sandra nos trouxe o caso de Flor, uma mãe que perdeu seu filho assassinado e não obteve auxilio algum das autoridades, encontrando entre eles a “naturalização” deste tipo de morte, como se fosse o destino cabido a todo jovem das periferias, que por viverem nesses locais já se pressupõe uma criminalização de seus atos. Flor estava impedida de fazer seu luto, estava, como Antígona, presa entre duas mortes: morte duplicada pela violência com a qual seu filho foi arrancado da vida, ficando sem lugar entre os vivos, e consequentemente sem o reconhecimento de sua cidadania perante as autoridades, ficando, também, sem lugar entre os mortos. A banalização dessa morte, considerada pelas autoridades locais com apenas mais uma morte, mata a condição de sujeito do filho de Flor. E porque não acrescentar, da própria Flor!
Flor vai procurar ajuda psicológica no atendimento público de sua região, pois não consegue chorar, sente-se sufocada, está tomada pela dor e encontra Sandra. Nesse trabalho, nasce a possiblidade da conformação virar transformação, da dor se transformar em sofrimento reconhecido. Não apenas um mero relato do fato, como tantas vezes é imposto a essas mães, criando um circuito repetitivo que só traz a perpetuação da vivência, sem a possibilidade de elaboração do luto. Luto, também um dispositivo político, singular e ao mesmo tempo universal, constitutivo do sujeito, que só é assim significado em relação ao seu laço social.
Com a enriquecedora e harmoniosa apresentação desses queridos convidados, saímos desse encontro com a sensação reforçada de que juntos, na esfera pública, também podemos alcançar nossas potências criativas, liberando um dispositivo de transformação da condição de “naturalização” dos fenômenos que nos cercam e nos afetam, impostos por uma política de dominação sobre as minorias, que excluídas da vivência da cidade, ficam excluídos de sua condição de cidadãos, mantendo uma continuada permanência das violências nas grandes cidades.
Alessandra Ruivo e Gisele Assuar
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