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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    43 Setembro 2017  
 
 
ESCRITOS

ENTRE O QUE FOI E O QUE FICOU


TIDE SETUBAL[1]


Da lavanderia sobreviveram duas camisolas iguaizinhas, uma azul e outra vermelha, que meus pais tinham trazido de viagem; um shorts amarelo com um babado, que eu adorava usar com uma camiseta que tinha uma estampa de ABC colorido; e um bichinho de pelúcia incrivelmente sortudo, que eu tinha esquecido fora do quarto na noite anterior.

Perderam-se uma coleção de bonecas acompanhada de roupinhas que eu trocava e retrocava, dia sim e o outro também, brincando de encontrar as mais diferentes meninas-mulheres; todos os jogos abarrotados na estante de madeira, Lig 4, Jogo da Vida e também o jogo de memória da turma da Mônica em que já faltava a peça do coelhinho azul; os amados bichinhos de pelúcia que dormiam na minha cama e o preferido Molenguinha, um cachorrinho bege, macio feito nuvem, que me fazia companhia nas noites perigosas.

Entre o que foi e o que ficou, uma menina grande de cinco anos.

Quando cheguei da escola, em vez de encontrar o almoço quentinho, encontrei um desagradável alvoroço. Adultos desconhecidos e agitados corriam pela casa com cara de preocupação, subiam as escadas de madeira para os quartos segurando um objeto pesado e vermelho que eu nunca tinha visto antes, invadindo o aconchego do meu dia-a-dia. Um cheiro de comida queimada bagunçava meu apetite.

Minha mãe, assim que percebeu que eu tinha chegado e permanecia quieta, ao lado do portão verde da entrada da casa, com olhar de pergunta, tentando decifrar algo daquele reboliço, tomou-me em seus braços. Junto com um cheiro de abrigo veio um abraço tão apertado que nem parecia que ela havia me levado à escola naquela manhã.

“Mãe, o que está acontecendo aqui?”

“Querida, hoje o almoço vai ser em outro lugar...”

Ela se agitou ainda mais com a minha pergunta. Eu já não sabia se deveria me preocupar em centímetros ou em metros. Comecei a chorar de soluços. Será que aqueles homens estranhos correndo pela casa vestidos de vermelho-super-herói, usando um chapéu amarelo descombinado, estavam lá para me salvar?

As minhas lágrimas se refletiram no rosto da minha mãe. Éramos duas. Envolvi-me num segundo abraço que, naquele momento, era eu quem o queria bem apertado. Estava com dor de barriga. Ela aproveitou para perguntar, com voz mansa, se eu queria ir dormir na casa da minha prima Carolina, com quem tinha afiada cumplicidade. Fui fugida de tanta pressa em querer abreviar aquele mal estar.

No dia seguinte, quando minha mãe foi me buscar, eu não queria ir embora. Era sempre difícil interromper as brincadeiras que eu construía com essa minha prima, elas se esparramavam na nossa imaginação. Por que eu não poderia morar com a minha prima para nunca mais precisar me despedir dela?

Mesmo emburrada, não tive escolha. No caminho, por várias vezes, estive a ponto de perguntar se aqueles homens estranhos ainda estariam lá em casa ou insistir em saber o que tinha acontecido. Não perguntei. Através do espelhinho retrovisor, via um olhar triste da minha mãe. Voltei a habitar o medo. Ele me emudecia.

Entrando em casa logo senti aquele cheiro de almoço queimado do dia anterior. Desencontrada nos sentimentos, olhei de novo para a minha mãe e retomei a minha inquietude: ela estava com uma respiração ofegante. De repente, a pergunta que até ali eu gastava uma energia enorme para não fazer, pulou da minha boca.

“Seu quarto pegou fogo”, respondeu minha mãe, “ainda não sabemos como isso aconteceu.”

Engoli todas as palavras. Meu quarto pegou fogo? Um quarto pega fogo? O que era um quarto que pegou fogo? Senti um vulcão de lágrimas saltarem dos meus olhos.

Anos mais tarde, admirada, ainda me lembro daquele dia que estava fadado ao esquecimento, assim como uma coleção de outros dias que - enfileirados pela repetição banal e rotineira ou, simplesmente, pelo fato de que eu tinha apenas cinco anos - estavam destinados ao apagamento da memória sem deixar rastros. No entanto, o fogo furou a sua disposição ao anonimato e pequenos fragmentos atrofiados ainda insistem na lembrança.

Frente a frente com um quarto devorado pelo preto-carvão, minha mãe reagiu dizendo que a gente sairia para comprar roupas e brinquedos novos. Senti um trechinho de alegria, adorava presentes! Mas a lembrança do que compramos, não tenho mais. Ficou somente a difusa dor da perda dos meus amigos mais íntimos, contracenando com a nitidez do que sobreviveu pelo acaso de estar fora do quarto. Apesar do acúmulo de susto, a materialidade desses objetos reminiscentes. O que não se queimou, ficou como faíscas de memória viva.

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[1] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, integrante da equipe editorial deste Boletim e do grupo O feminino e o imaginário cultural contemporâneo.




 
 
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