ARNALDO ANTUNES
Clique aqui para assistir o vídeo: https://www.youtube.com/watch?v=eusBEkn2ABQ
isto não é um poema
só desabafo
que não pude não fazer e não pude fazer
de outra forma que não fosse
assim fatiando as frases
no espaço aqui
hoje eu vi aterrorizado
um artista assassinado
- Moa do Catendê, mestre de capoeira, autor do Badauê -
por conta de uma divergência política num bar da Bahia
depois corri o dedo sobre a tela e
vi e ouvi arrepiado Luiz Melodia
(também negro e compositor, também com o cabelo rastafari, como a vítima do post anterior)
cantando “no coração do Brasil”
e repetindo muitas vezes esse refrão
“no coração do Brasil” “no coração do Brasil”
que tento sentir pulsar ainda entre a luz de Luiz e a treva
desse buraco vazio que não pulsa mais no peito de Moa do Catendê
e não existe amor em “SP” ou “no coração do Brasil”
fraturado nesses dias brutos
de coturnos chucros
a chutar a cara de quem ama
arte
cultura
educação
liberdade de expressão
diversidade
cidadania
solidariedade
democracia
mas não se dá a mínima
o que importa é se subiu a bolsa
caiu o dólar
se todos vão prosseguir seguindo docilmente para o abismo
nessa insanidade coletiva em que o Brasil nega
qualquer Brasil possível
cega qualquer futuro possível
e o ódio o horror e o ódio
e nada que se diga faz sentido mais
para quê expor na cara desses caras a palavra explícita
(gravada em vídeo e repetida, repetida, repetida)
do seu “mito” dizendo
“eu apoio a tortura”
“eu defendo a ditadura”
“eu vou fechar o congresso”
“não servem nem para procriar”
“não te estupro porque você não merece”
“a gente vai varrer esses vagabundos daqui”
“o erro foi torturar e não matar”
“viadinho tem que apanhar”
etc etc etc etc etc
e tudo mais que repete incansavelmente
há anos ante câmeras e microfones
para quê mostrar de novo e de novo
o mesmo nojo
se é justamente por isso que o idolatram?
e sempre haverá os que vêm disfarçar dizendo:
“estamos entre dois extremos”
“sim, mas veja a Venezuela”
“é para acabar com a corrupção”
“nós queremos segurança” ou “não é bem assim...”
enquanto contatamos cada vez mais que sim,
é assim, é assim mesmo é assim que é
mas como li por aí:
“Como explicar a lei Rouanet para quem ainda não assimilou a lei Áurea?”
ou: como explicar a lei da gravidade para quem ainda crê que a terra é plana?
e querem defender sua ignorância com dentes e garras
querem matar atirar vingar a quem?
em nome de quem?
(pátria, família, propriedade, segurança?)
se nessa seara não há direitos nem respeito ensino ou dignidade
só horror e ódio, ódio e horror
as palavras perdem a clareza
os valores perdem o valor
a vida perde o valor
Marielle remorta remorrida rematada
por sua placa rompida rasgada desonrada
pelas mãos truculentas de brutamontes prepotentes
com suas camisetas estampadas com a face do coiso
que redemonstra sua monstruosidade
quando vende em seus próprios comícios
camisetas de outro ultra-monstro ustra
aquele que além de torturar levava crianças para verem suas mães torturadas
e esses mesmos abomináveis
que, diante de uma claque vergonhosa, se orgulham de terem
rasgado as placas com o nome Marielle Franco
estão sim agora
eleitos satisfeitos
mas não saciados de todo o sangue de inocentes
que há de correr só por serem diferentes
excitando em outros o desejo de exercer seu obscuro
poder de milícia polícia esquadrão da morte
e o anúncio da Rocinha metralhada como solução
a barbaridade finalmente institucionalizada como diversão
o Brasil finalmente sem coração
fora da ONU e dos acordos internacionais pelo meio-ambiente
sem controle de sensatez ou mentalidade
sem limite humanitário
“não vai ter ong!”
“não vai ter ativismo!”
“não vai ter mimimi!”
bradam cheios de si e de ódio
criminosos contra o crime opressores pela família amorais pela moral
apesar de todos os alertas da imprensa internacional
de esquerda, de centro, de direita
só não vê quem não quer
a tragédia anunciada
divulgada não como boato mas escancaradamente
enquanto empoderados pelo discurso de ódio de horror e ódio
seus eleitores já saem pelas ruas dando tiros e gritos
enxurradas de fakes
suásticas nazistas gravadas com canivete na pele da menina
que usava “ele não” estampado na blusa
e a promessa de violência desmedida se concretizando
antes mesmo de começar o segundo turno
e nem um centímetro de terra para os índios
e nem um pingo de direitos civis ou humanos
e a volta da censura e o ódio, o ódio, o horror e o ódio
para encerrar de vez o sonho de uma nação
que tem a chance de dar ao mundo
sua contribuição original
agora fadada a repetir o que de pior já houve na história
sem história agora sem Museu Nacional nem cultura nem educação
abolir filosofia e arte
em seu lugar:
moral e cívica
escola militar
religião
geografia dos lucros e dividendos
massacre das minorias
horror e ódio e ódio e horror
crescente permanente enquanto dure
pois ninguém larga o osso assim tão fácil
depois de um golpe que precisa parir outro golpe
ou autogolpe alimentado por todas as fakes e facas
contra as costas de artistas como Moa
mas na cabeça de quem apóia tudo se justifica:
o fascismo
a tortura dos presos
o sumário julgamento sem júri
autorização dada à polícia para matar
e o ódio aos pobres as blitzes ostensivas
a guerra declarada dos que aceitam assassinos para combater bandidos
se tudo está invertido mesmo pobre elegendo milionário,
pelo avesso e ao contrário
então se autoriza a sórdida barbárie dos fortes contra os fracos
algo está muito doente no Brasil no descoração do Brasil
que mente, se omite, agride, regride
para avançar sem freios em direção ao fascismo
seguindo a musica hipnótica do
ódio, horror e ódio
pregados em igrejas em nome de Deus e de Cristo
só desamor em nome de Cristo violência e brutalidade em nome de Cristo
armas e tortura e preconceito em nome de Cristo
de Deus e de Cristo
armar a população para metralhar os adversários
os diferentes os miseráveis os favelados
os do outro lado os que se manifestam ou contestam
ou pensam de outra forma
ou se vestem de outra cor ou têm outra cor
ou qualquer pretexto que se crie
para espalhar o ódio, o horror e o ódio
do machismo ao estupro
da mentira ao linchamento
do homicídio ao genocídio
(“tinha que ter matado pelo menos trinta mil!”)
já sem democracia palavra vazia
em boca de quem compactua (e não são poucos)
pensando ser possível
alguma forma de neutralidade nesse momento
como Pilatos lavando as mãos
a chamada mídia tenta fazer média
ao dizer que os dois lados são igualmente extremistas e perigosos
mas então onde estavam nos últimos três mandatos e meio
antes do pesadelo Temer?
estavam numa ditadura comunista e não sabiam?
na verdade todos sabem muito bem
que o extremismo vem de um só lado, que
quer se eleger para acabar com eleições
e que o grande perigo é mesmo esse jogo de equivalências que,
na verdade serve ao monstro
pois a omissão é missão impossível neste agora
impossível mascarar o sol
da ameaça hostil e explícita do nazismo crescente
com a peneira furada de um bom senso mediano hipócrita indiferente
que sempre vai dizer:
- sim, mas a Venezuela...
como se não tivéssemos ouvido exatamente isso em 64, quando diziam:
- sim, mas Cuba...
para justificar a ditadura militar que tanto elogiam hoje em dia
e que o atual presidente do nosso Supremo Tribunal Federal
decidiu que agora vai chamar de “movimento”
em vez de “golpe militar”
para adoçar um pouco a boca amarga do sangue impregnado
que não vai sumir assim mudando a nomenclatura
desnomeando a já tão dita “ditadura”
mas esse desequilíbrio ético que diz
preferir uma autocracia perfeita
a uma defeituosa democracia
esse erro que nenhum arrependimento será capaz de reparar
quando for tarde demais
ainda dá para evitar
ainda é tarde de menos para
conter o ódio, o horror e o ódio
ainda dá dd a d