RUBIA DELORENZO [i]
Para Cristina
Escrevo para uma criança meiga e positiva, raras qualidades no mundo de hoje. Escrevo para Alice.
Com muito respeito, ela estuda os planetas. Desenhou todos eles com suas mãos pequenas e determinadas. Pintou suas cores distintas, seus paramentos. Mapeou sua crosta, as superfícies lisas e as ásperas com relevos profundos, erodidas pelo vento. Explicou seus deslocamentos singulares, rápidos ou vagarosos, como o do lento Saturno e o do Mercúrio veloz.
A tesoura de ponta redonda recorta os círculos na cartolina dura. Desenha também o sol com sua luz de glitter dourado, e é esse círculo bem talhado que puxa o fio dos outros discos, na alegoria de sua via láctea.
Contou, interessada, curiosidades sobre o nome desses astros. Na pia de batismo dos planetas, foram os deuses seus padrinhos, escolhidos por seus traços, sua índole, seu modo de viver. Falou do temperamento de Vênus, da febre ardente que o queima, de seu brilho intenso e perturbador, tal qual sua madrinha vibrante, filha da Terra e do Céu. Falou, ainda, de Marte, da cor de sangue que exibe, de seu parentesco com o Deus romano da guerra, também fabricante de armas.
A menina gosta da imensidão do universo, de sua escuridão misteriosa e da luz faiscante das estrelas.
Tem uma predileção pelos assuntos da natureza. Gosta das árvores, das borboletas, das figuras dos mares e dos animais das florestas. Gosta demais da sereia híbrida, de seu corpo de moça, de seu rabo de peixe. E, entre os gigantes da savana, é da preferência da menina o elefante de exceção com grandes orelhas que flutuam leves, fazendo esquecer seu peso de chumbo. Nossa! Que grande ousadia! Que vertigem... Ele voa, levita... como ela própria no espaço aéreo do circo, trocando a terra pelo ar. Ela se encanta, também, com a girafa pescoçuda que a vigia, preocupada com seus saltos arriscados entre as barras do trapézio.
Quando crescer, vai amar Guimarães Rosa, o sertão tão grande quanto o firmamento, as tempestades tão poderosas que, com a força da ventania, levam para dentro das águas as próprias margens do rio. E a onça pintada, a macacada, as aves exóticas, o assum preto. Vai chorar com esse canto de dor. Vai se enfeitiçar com o molejo de fêmea do andar sedutor da onça, vai se sentir parte da terra, dos oceanos, do céu magnífico. Continuará a olhar fascinada esses planetas que conheceu na infância e vai chamá-los devagarinho, para lhe fazer companhia - um a um - por seus nomes divinos: Mercúrio, Vênus, Terra, Marte, Júpiter, Saturno, Urano e Netuno.
Seu amor pelo movimento deste mundo inquieto, vibra com a terra que gira, o sol que se deita e se levanta, as estrelas que se movem na noite escura, o dia e a noite que se alternam.
Ama o balanço das ondas no mar e a agitação da areia nas dunas do deserto. E se espanta com o ronco furioso do vulcão que, soltando fogo pelas ventas, adverte que lavas vão rolar. Está cativa do milagre dos brotos que nascem na estação da primavera e das árvores que crescem fazendo rendado em suas copas.
Ama o burburinho das matas, a revoada dos pássaros, os pulos ágeis dos bichos que saltam por entre os galhos e se penduram e se agacham, se escondem, assuntando os inesperados, súbitos perigos da floresta.
Esta paixão flui dentro dela, arrebatada pelo extraordinário movimento do mundo.
Julho - 2019
[i] Psicanalista. Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.