Rubia Delorenzo [1]
Tinha saído com amigos.
Voltando, desço do táxi na esquina de uma rua conhecida.
Minha casa era nesta rua, onde morei na adolescência.
Desço na esquina porque o lugar está em obras. O ventre perfurado por britadeiras e as bordas do asfalto encharcadas pela chuva, formaram um lamaçal que me impede de andar e de alcançar o edifício.
Começo, então, a escalar uma montanha de terra úmida que desliza como nas encostas de Petrópolis. Tive medo de cair, escorregar sem alcançar qualquer apoio, quando vi, defronte ao prédio, uma manada de búfalos inflamáveis.
Que diferença a atmosfera de meu sonho daquela que aparece na TV, na propaganda do agronegócio.
Agro é tech.
Agro é pop.
Agro é tudo.
Tá na Globo.
Os búfalos da propaganda são dóceis. Nas imagens, outros animais pacíficos, belos e caros espécimes de exposição, também sugerem candura: porcos de cor rosa, cavalos vigorosos, galinhas estufadas de hormônio bom.
Pastos fartos, prados verdes, parece que estamos no céu.
Não há fome, não há falta, não há dor.
Em meu sonho, era inquietante o deslocamento dos animais destemperados que se enervavam com qualquer ruído e com o trepidar produzido por aquelas máquinas de demolição.
A movimentação dos bichos, pesada e sem ordem, obrigou-me àquela escalada no morro de lama mole, até que achei um nicho, onde me acomodei. Vi do alto o ventre exposto da avenida e, nas entranhas do solo arrebentado, cabos de eletricidade e tubos de gás, antes invisíveis, dividiam agora, com ratos e outros animais pestilentos os caminhos abertos por essas veias urbanas que correm sob o asfalto.
Evisceração.
É urgente acordar.
Sair do pesadelo.
Sair da poeira tóxica produzida pelo pisotear febril da manada.
Escapar do forte cheiro de fumaça, do odor ocre de sangue.
Como lamento saber que os búfalos são animais de vida longa, seu índice de mortalidade é muito baixo.
Abro os olhos.
Acordo com a sensação de fim de mundo. Mau presságio.
Desligo o celular. Interrompo a obsessão por notícias.
Quero trocá-la por uma conversa amiga, cordial, gramatical.
Perdeu-se a riqueza da língua, hoje degradada, arruinada.
Afasia num mundo violento demais.
Nem fala, nem escrita, nem sinais.
Signos tornam-se dejetos sórdidos engasgando as gargantas escatológicas do poder.
Sem compostura, palavras pastosas, restos, sobras de linguagem, são imundície na boca de ruminante do búfalo que as masca.
No entanto, das línguas rudes e desfiguradas que não transigem, há que escutar as palavras cruas, ditas por vidas nuas sobre o inóspito território da vida exterminada. Da vida reduzida a um corpo que é nada.
Feias e brutas são próprias para narrar, testemunhar histórias de horror. Rebeldes, provocam com a aspereza de seus sons um impacto que perturba. Aqui a língua impõe sua medula. Palavras gritam os abusos, o sem saída, a nudez de corpos e corpos matáveis.
Qual é a boca mais suja, a mais obscena?
A do bate boca indecente, o cala a boca instituído, ou o abre a boca que transgride, que choca a moral dos abastados? Qual é a boca mais imunda?
Recomeço a pensar no sonho dos búfalos.
Surgem, então, do fundo de um mar de reminiscências, os fragmentos da história de um búfalo, contada pela boca de Clarice Lispector. Narrativa forte, de final enigmático, produz extraordinário espanto no leitor.
Uma mulher machucada de amor fora buscar no Zoológico o ensinamento do ódio. Imaginava aprender a odiar com os animais ferozes.
Sofria quando sentia amor, compaixão pelos bichos. Contrariada com essa onda de afeto, queria apenas odiar.
Fez seu périplo pelo espaço aberto do parque, de jaula em jaula, procurando aquele que lhe desse de beber a “água negra” do ódio.
Não os leões que se amavam, não a etérea girafa, não o macaco já velho, não o elefante tão manso, nem o camelo em trapos.
Continuava incansável a buscar seu par para o ódio.
Em dado momento, avista as barras do cercado do búfalo e dele se aproxima.
De costas, sem sombra de excitação nos nervos, o búfalo sente a presença.
É o que basta para voltar-se e - com seus olhos miúdos e injetados - entorpecê-la da superfície às entranhas. Aguardava assomar-se dentro dela a força de uma torrente pegajosa e escura.
Quando, enfim, está pronta de ódio, calmo e frio ele a encara. Sem pressa, o animal a mira com olhar assassino. Fagocitada pela veneração inflamada ao ódio, rende a ele homenagens. E neste final sem fim, ela, em vertigem, começa a se derreter, escorregar, engolida, fascinada.
“... antes do corpo baquear macio a mulher viu o céu inteiro e um búfalo.”
Nota:
Em 1937, Paul Klee, antecipando o horror do Holocausto, pressagiou que não sobraria nada de humano no pós-guerra.
Começou, então, a pintar com desespero suas telas tão tocantes, repletas de letras, de números, ideogramas, hieróglifos, cheias de todos os maravilhosos signos da linguagem, num grande esforço para inscrever, na sua arte, o que temia que se apagasse para sempre: a linguagem, abrigo do humano.
Março de 2020
[1] Psicanalista. Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, colaboradora deste Boletim.