NOEMI MORITZ KON [1]
Por mais de 15 anos tive o privilégio de me encontrar mensalmente com Luiz Alfredo Garcia-Roza.
Naqueles sábados à tarde, um grupo afetivo e instigado se reunia em torno de um grande mestre. Um professor ímpar, exemplar em seu preparo e comunicação, um homem caloroso, charmoso, empático e muito, muito sabido.
Ele nos acolhia e nos conduzia pelos meandros da metapsicologia freudiana, desfiando os fios de sua trama fechada, nos convocando para uma leitura atenta e aplicada do texto freudiano que acreditava compor, como repetiu tantas vezes, o campo mais complexo dentre as assim chamadas ciências humanas.
Conduziu-nos também pela história da filosofia ocidental, da Grécia antiga aos pensadores contemporâneos, dando-nos oportunidade de conhecer algo da obra de tantos filósofos, concatenando essa construção histórica com a criação do pensamento psicanalítico em seu contexto.
Mas não era apenas o trabalho intelectual que nos ligava a Luiz Alfredo Garcia-Roza.
Talvez a lembrança mais significativa daquelas tardes de sábado seja a sua alegria ao pensar, ao transmitir seu conhecimento, e ao pensar no coletivo. Essa alegria era atravessada por uma liberdade criativa como professor, por uma postura cativante e agregadora, convidativa, de profunda generosidade e respeito conosco e com seus autores preferidos. Essa mesma alegria se corporificava numa presença amiga, amiga dos conceitos que compartilhava generosamente conosco, amiga de seus alunos. Uma amizade que se alastrou também por entre os integrantes daquele grupo e que nos liga até hoje em relações valorosas e que guardam a marca do grande mestre.
E isso é muito. Transmitir como herança a alegria, a amizade, o respeito e a confiança na capacidade criativa do outro é algo que talvez poucos nos legam. E essa sua capacidade parecia ter a ver com uma experiência de profunda intimidade consigo mesmo, uma desenvoltura com as próprias capacidades criativas e uma abertura e curiosidade para com aquilo que pode advir do encontro com o outro.
Para mim, isso é a própria psicanálise, essa capacidade inventiva compartilhada de brincar e que convoca a nossa pessoalidade como oportunidade de criação conjunta.
Por tudo isso, sou infinitamente grata àqueles nossos encontros de sábado à tarde, dos quais saía cansada e, ao mesmo tempo, tão rejuvenescida.
Pois os grandes mestres nos encorajam a aproveitar o prazer oriundo de nossa curiosidade, nos estimulam a nos aprofundar em nossas grandes interrogações e afiançam, assim, a nossa capacidade de contribuir para a construção coletiva do conhecimento.
Luiz Alfredo Garcia-Roza morreu no último 16 de abril, no Rio de Janeiro, aos 84 anos, depois de meses internado após sofrer um acidente vascular cerebral. Formado em filosofia e psicologia, professor emérito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), onde lecionou por 35 anos e criou o Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica, deixa uma obra consistente como um desbravador e comentador da obra freudiana. Seus livros, Acaso e repetição em psicanálise,Freud e o inconsciente,Palavra e verdade na filosofia grega e na psicanálise,O mal radical em Freud e os três volumes de Introdução à metapsicologia freudiana ocupam posição central nos estudos psicanalíticos no Brasil e fazem parte do caminho formativo de quase todos nós.
Esse amigo dos conceitos e dos grandes pensadores, como Espinosa, filósofo que deu nome ao protagonista dos romances policiais que passou a escrever, deu uma guinada corajosa em sua vida. Assumiu um desejo antigo e, seduzido por seu prazer pela literatura, adotou e deu corpo a uma nova carreira, dando vida a uma nova criação, agora ficcional, fruto de um movimento livre de elaboração e reinvenção de si. O silêncio da chuva, seu primeiro livro policial, publicado em 1996, que recebeu os prêmios Nestlé e Jabuti, abriu uma série de 12 romances, e foi adaptado para o cinema, assim como dois de seus outros romances, Achados e perdidos e Berenice procura.
Uma nova carreira tão bem sucedida quanto a primeira.
Fui assaltada, ao me por a escrever essa breve homenagem, ao mesmo tempo que pela lembrança daqueles sábados de tarde, de um filme que devo ter assistido em meus primeiros anos. A quase obviedade da associação não deve diminuir o poder da presença Sidney Poitier em ação.Ao mestre com carinho, de 1967, se vinculou num raio com Sociedade dos poetas mortos, de 1990 (estou ficando mesmo velha) e à figura de Robin Williams. Dois personagens magistrais que se ligam então a outros tantos mestres respeitosos e inspiradores que tive a imensa sorte de ter em minha vida e que estão sempre ao meu lado, me acompanhando em meu caminho.
Luiz Alfredo Garcia-Roza figura num lugar de destaque entre eles.
[1] Psicanalista. Membro do Departamento de Psicanálise e professora no curso Clínica Psicanalítica: Conflito e Sintoma do Instituto Sedes Sapientiae.