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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    57 Novembro 2020  
 
 
ESCRITOS

MALÉVOLA


RUBIA DELORENZO[1]

Para Alice, nos seus 6 anos



Ao longe era só um ponto oscilante.
Quase não se notava o balanço do corpo.
Pouco a pouco algo se aproxima e começa a tomar forma. Vê-se um vulto escuro chegando.
Escuro e alado. Parece que tem chifres também. Chifres negros en dedans, semelhantes a perninhas de rã.
Num cálculo de mestre, pousa bem ao nosso lado o que pensávamos ser um pássaro esquisito, parente de corvo, mas imenso e veloz.
É uma figura estranha, bela, diferente dos humanos.
Quando chega e descansa suas grandes asas tão perto de nós, vemos, em detalhes, seu rosto impressionante: esculpido, bem trabalhado, as maçãs bem preenchidas, desbastadas para o alto, os olhos transparentes, a boca rubra, cheia de dentes.
É ela, a madrinha de Aurora, tida como má.
Só devagar percebemos esse engano.
Apelidada Malévola, filha de Saturno com Marte, deus da guerra sangrenta, sua sombra sugeria a imagem da bruxa, cheia de ódio e vingança.
Mas, afinal, quem não se revoltaria quando suas asas são roubadas durante o sono, à traição? Quem não se abateria com a perfídia de um amor desleal?
Sim, indignou-se, amotinou-se, rebelou-se, mas a causa era justa.
Foi guerreira, combatente, mas por seu temperamento explosivo, foi julgada emissária do Mal.
Depois de experimentar grande dor pela perda de suas asas, Malévola vivia triste, cabisbaixa, circunspecta, amparada somente por seu cetro, à deriva nas matas de Moors.
Estava sempre calada, à espreita entre as árvores, cuidando à distância da menina Aurora.

A garotinha ao meu lado, está muito excitada. Chegamos a sentir o esvoaçar do manto alado, o calor do corpo da feiticeira.
Nossos olhos 3D, nos misturam à densidade do ar, ao volume das florestas, à secura dos desertos, aos perigos dos porões do palácio real. As águas do rio batem em nossos ombros. As borboletas e as fadas, os pequenos seres e toda a fauna que voa, zumbem ao redor dos nossos ouvidos. Estamos lá, estamos dentro.

Depois de seu nascimento, Malévola sempre viveu isolada, criada por corvos, no seio das florestas.
Sua vocação para o feitiço superava a magia comum das fadas e, por isso, foi sempre arma útil contra os invasores dos domínios de Moors.
Seus longos dedos finos desprendiam discreta cintilância de cor verde, translúcida neblina, quando as mãos nervosas se agitavam ante exércitos de extermínio, perseguidores das criaturas pacíficas viventes em sua terra sem reis.
Quando reencontrou sua gente, esses entes mágicos, chifrudos e alados, organizou sua própria legião de soldados.
Porém, o ferro queima fadas e duendes. Como resistir aos ferimentos provocados por flechas, à poeira tóxica dos minérios, à alquimia que cria o pó rubro que envenena e pulveriza?
Foi luta dura. Muitos tombaram, queimados pela potência metálica das armas.
Ferida pela pontaria certeira de uma lança, Malévola se dissolve, se desmancha. Mas, protegida de Fênix, carregando em si o mesmo sangue da ave imortal, renasce das próprias cinzas, neutralizando com seu poder magnético, o Mal que planejava destruir, fazer desaparecer uma terra inteira, amiga da paz.
Com o reino pacificado, a bela dama lendária prometeu: “Voltarei para o batizado”, numa alusão feliz ao nascimento do filho de Aurora...

Março - 2020




[1] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, colaboradora deste Boletim.




 
 
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