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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    58 Abril 2021  
 
 
ESCRITOS

PARA MINHAS MENINAS, NO TEMPO INSÓLITO DA PESTE


Rubia Delorenzo[1]


Oficialmente há um ano declarou-se a pandemia.

A quarentena, hoje, faz aniversário.
Aniversário triste, desaniversário, estamos solitários. Sem bolo e brigadeiro, sem balões ou parabéns. Estamos de luto, não é?
Melancólicos pelas coisas que deixamos para trás.
Mas trouxemos a vida para dentro
da morte. Nos desenhos extraordinários, nas colagens cheias de cor e de formas, atalhos para o reencontro com as alegrias de antes, com a vida regalada de tanto sentir. Recriamos, então, do nosso jeito, com o prazer guardado em nosso corpo, O Campo, A Praia, O Carnaval, A Festa Junina, O Casamento, O Espaço Sideral.
Que longas tardes felizes aquelas, em que procurávamos nas gavetas aviamentos para compor a nossa arte: rendas, pérolas, lantejoulas, papéis metalizados, todos os outros tipos de papel: papel manteiga, papel de arroz, também o craft, para recortar os corpos morenos bronzeados pelo sol.
Escrevemos cartas para quem estava longe, esperando com saudades as notícias de além-mar. O tempo das cartas é um tempo outro, lento, distendido, tanto na feitura como no envio. Muito diferente do tempo das mensagens rápidas que enviamos por celular.
Pudemos nos deter nas sílabas que se juntam para compor palavras, pudemos juntar as palavras para compor histórias: a do gato preto, a da girafa barriguda e o nascimento do seu bebê e outras mais.
Aprender a ler e a escrever na nossa língua, aprender caracteres de línguas tão estranhas ao nosso alfabeto, transportou-nos para fora do país, atravessamos as portas fechadas. Fomos às praias da Andaluzia, descemos no porto de Málaga, abraçamos quem nos esperava.
Foi possível conhecer a Coreia do Sul, a pronúncia exótica de sua língua, o esforço desta aprendizagem, um tabuleiro de xadrez.
Também foi possível experimentar o truque da maquiagem. Mexer com a química das cores, misturá-las até encontrar o tom exato da pele.
Aplicar sobre ela delicadas figuras, cromos, borboletas translúcidas, torná-la superfície pictórica.
Pintar os olhos com sombras, esfumaçar suas pálpebras, fazê-los egípcios ou árabes, densos e misteriosos. Cuidar de hidratar todos os cantos da face, deixando emergir lentamente o rosto de porcelana.
Aí chegou o gatinho, na casa cheia de telas. A presença real do bichinho trouxe de volta o valor de um abraço, a oferta de um colo, a convivência pacífica, um amor desinteressado de um ser que passeia, sem medo, entre nós.
Nas noites em que estivemos juntas, apesar da exaustão do dia, da angústia dos tempos e do cansaço dos olhos, nessas noites de leitura e confidências, pudemos sonhar um futuro: ser artista, ser cantora, cientista, escritora.
Através da vida das “Mulheres Fantásticas” e da longa travessia de Ulysses, de volta a Ítaca, conhecemos o mundo dos outros, suas lutas, sua coragem e ousadia.
Por tudo isso que foi possível viver nos tempos duros da peste, agradeço muito às minhas meninas, pela companhia, pelo prazer, pela confiança em repartir.



Março 2021



[1] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, colaboradora deste Boletim.




 
 
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