A emoção da chegada ao Centro de Convenções Ulysses Guimarães para participar de uma conferência nacional – este dispositivo tão importante da democracia – noticia a grandeza do momento: em que pese a maré contrariar o desejo coletivo de nadar, chegou-se a uma praia (cf. a análise feita no texto
Plenária Estadual de Saúde Mental Intersetorial – Etapa Estadual – São Paulo: A gestão autônoma das forças sociais pró Reforma Psiquiátrica disponível no site do Sedes
www.sedes.org.br). Foram 9 anos de muitas mudanças desde a última conferência – a III, em 2001, fundamental para a celebração das conquistas do movimento da luta anti-manicomial e do movimento pela reforma psiquiátrica no Brasil. Conferência histórica, ocorrida logo após a aprovação da tão batalhada lei da Reforma Psiquiátrica – a lei 10.216 -, houve então, naquele momento, a pactuação coletiva das diretrizes políticas da atenção em Saúde Mental para o novo século que se iniciava. Tais diretrizes, em seu processo de implantação, vêm mudando a cara não apenas dos serviços de atenção à Saúde Mental da população, mas também da própria percepção e do lugar social da loucura, tal como se pretendia com a bandeira da desinstitucionalização. Foi um salto histórico, que ainda podemos continuar celebrando. E para um salto histórico, há que se ter paciência também histórica com os processos de mudança ansiados e gestados coletivamente.
Ao longo desses 9 anos, muita coisa mudou, conforme dados apresentados pela Comissão Organizadora da IV CNSM-I no
Caderno Informativo da IV Conferência Nacional de Saúde Mental – Intersetorial. Saúde Mental: Direito e Compromisso de Todos – Consolidar Avanços e Enfrentar Desafios (27 de junho a 1º de julho – 2010, p. 5 e 6):
• “O acesso à atenção à Saúde Mental aumentou. Em 2002 havia 424 Centros de Atenção Psicossocial, que cobriam 21% da população (Parâmetro de 1 CAPS para cada 100.000 habitantes). Em Março de 2010, a cobertura alcançou 62% de cobertura assistencial, com 1502 serviços. • Os hospitais psiquiátricos ficaram menores, 16.000 leitos foram fechados. Através do PNASH/ Psiquiatria e o PRH (Programa de Reestruturação da Assistência Psiquiátrica) o perfil dos hospitais psiquiátricos mudou. Em 2009 quase 46% dos leitos em hospitais psiquiátricos estavam situados em hospitais de pequeno porte – em 2002, apenas 24% dos leitos estavam nesses hospitais. O ano de 2009 fecha com 35.426 leitos. • Ações de saúde mental na atenção básica foram implantadas. Dos 5.800 trabalhadores dos NASF cadastrados em 2009, 30% são profissionais de saúde mental. • O problema do álcool e das outras drogas passou a ser enfrentado no campo da saúde pública. • Pessoas com longo histórico de internação foram desinstitucionalizadas. O Programa de Volta para Casa fechou 2009 com 3445 beneficiários, que recebem uma bolsa mensal de R$ 320,00. 550 Residências Terapêuticas estão em funcionamento no país. • Os recursos empregados nas ações extra-hospitalares ultrapassaram o investimento nas ações hospitalares. Desde 2006 os gastos federais com ações, serviços e programas comunitários são maiores que os gastos hospitalares. No ano de 2008, 65,5% dos recursos federais para a saúde mental foram gastos com ações extra-hospitalares.” Dentre todos esses avanços, talvez um dos mais significativos seja o próprio desejo de mudança, persistente, insistente, que animou todo o processo de realização das conferências – em âmbito municipal, regional, estadual e nacional.(3) E do desejo de mudança faz-se movimento, e também faz-se povo, mas também faz-se tribos e também faz-se alianças, mas também faz-se embates e também faz-se debates, mas também criam-se identidades fechadas, que também engendram disputas de poder.
E um pouco disso tudo foi possível experimentar nos cinco intensos dias da IV Conferência Nacional de Saúde Mental – Intersetorial.
Mas olhemos mais de perto.
DOS AVANÇOS São inegáveis os avanços sociais de uma política pública universal, como o SUS, quando assumida por uma política de governo e transformada em política de Estado. No âmbito mais específico da Saúde Mental como um dos programas de saúde do SUS, estes avanços saltam aos olhos em uma conferência como essa quando nos damos conta que mais de 1000 pessoas presentes à conferência, oriundas de norte a sul do país, falam mais ou menos a mesma língua gestada em todos estes anos de luta, ainda que com sotaques diferentes. Como se ampliou o contingente de atores sociais engajados no processo de produção de cuidado e atenção ao sofrimento psíquico! E que efeitos curiosos de mobilização social os movimentos da luta anti-manicomial e da reforma psiquiátrica brasileira produziram no sócius: contágio potente que faz ampliar as redes quentes gerando novos movimentos, em outros âmbitos, germes espalhados em outras lutas minoritárias como a luta pelos direitos das crianças e adolescentes, pelos direitos dos jovens infratores, pela questão da população carcerária, pelas questões da população de pessoas com deficiências e outras, enfim, contágio que faz parte da produção dos vários clamores contra as instituições totais e sua lógica excludente e segregadora.
“Mas, se ergues da justiça a clava forte, verás que um filho teu não foge à luta, nem teme, quem tem adora, a própria morte, ó pátria amada...”, verso forte, dentre outros do hino nacional brasileiro, entoado por mais de 1000 pessoas no salão nobre na abertura da Conferência, ato que a todos irmana e transforma um mundaréu de gente em povo, mas que também legitima que todos e cada um lutem pelas bandeiras que entendam melhor servir à causa do povo brasileiro. (4)
DOS DESAFIOS E foi um tanto dos efeitos dessa diversidade de posições e “causas”, diversidade produtora de embates e tensões próprios da chamada sociedade plural, que acabou por tingir os trabalhos da Conferência. Mas a conquista de se ter no mesmo espaço de conferência nacional atores com diferentes posições, partidários de diferentes políticas de atenção, infelizmente não foi potencializada com discussões que evidenciassem e colocassem em relevo as divergências para que pudessem ser melhor elaboradas e votadas no coletivo.
E aqui chegamos a uma primeira consideração crítica quanto ao formato(5) desta Conferência, escolhido pela Comissão Organizadora: com muito mais do que 1000 propostas, oriundas de todos os cantos do país, previu-se muito pouco tempo de debate das mesmas nos grupos e coletivos, optando-se por um formato de congresso com grandes painéis e uma enorme quantidade de painéis específicos, onde a palavra obviamente estava assegurada aos painelistas. Tal modo de funcionamento acabou por transformar o que poderia vir a ser um coletivo em platéia. E na verdade, nem mesmo a todos os painelistas a palavra pôde ser assegurada, já que no dia do jogo do Brasil não se realizaram vários painéis, tendo em vista a opção dos grupos de trabalho de priorizar o momento da discussão, dada a exigüidade do tempo do debate. De qualquer forma, construiu-se uma agenda de Conferência em que todos os horários estavam amarrados a uma atividade pré-determinada, uma agenda onde não se construiu efetivamente dispositivos para um amplo debate da imensidade de propostas, às vezes conflitantes, desconhecidas pela grande maioria dos presentes, propostas estas das quais se deveria efetivamente extrair as diretrizes políticas da atenção em Saúde mental pelos próximos quatro anos, pelo menos.
Certamente, a maioria dos painéis foi extremamente interessante, com diferentes abordagens dos inúmeros temas propostos para o debate nessa conferência – número também excessivo para um debate que se quer de qualidade. Mas não é essa a questão. A questão é: qual a função de uma conferência e de uma conferência nacional? E foi justamente a partir da fala de um dos painelistas – Dr. Marco Antonio Teixeira, membro do Ministério Público do Paraná – que o que parecia evidente tornou-se politicamente central: as conferências, tal como o próprio termo expressa, servem, em primeiro lugar, para
conferir,
cobrar. Ora, se a última conferência, a de 2001, foi tão fundamental na construção das diretrizes da política nacional de saúde mental, esta conferência, a de 2010, deveria justamente verificar se as deliberações votadas em 2001 foram cumpridas; se o foram, como foram e caso não, quais as sanções e medidas cabíveis, dentre elas, quais as punições para o gestor que não cumpre com as diretrizes acordadas em conferência. Por exemplo, a partir dessas diretrizes, uma cidade como São Paulo pode ou não pode inaugurar com toda a pompa e cobertura ampla da mídia uma unidade de atendimento “especializado” – leia-se eminentemente psiquiátrica e medicamentosa - em “doenças mentais”, tal como a AME Psiquiatria (vejam a “sutileza” significante!) recém inaugurada na V. Maria, com uma política de atenção completamente contrária àquela preconizada pela Conferência de 2001? Ou, como outro exemplo, também em São Paulo, rotular jovens infratores com o funesto “diagnóstico” de transtorno de personalidade anti-social – o TPAS – como forma de justificar seu enclausuramento perpétuo em uma unidade especialmente criada para tais jovens indesejáveis, pode ou não pode? Ou ainda, como se fazer pesquisa em Saúde Mental? Pode ou não pode um tipo de instituição como o Instituto Nacional de Psiquiatria do Desenvolvimento, que, a título de prevenir precocemente possíveis transtornos mentais, vêm, entre outras ações, fazendo “capacitação” de professores, de norte a sul do país, para que estes ajudem a diagnosticar precocemente a partir de sinais como agitação, tamborilar de dedos, efusividade excessiva, ou seja, várias manifestações que poderiam fazer parte de qualquer infância “normal” ou que, eventualmente, poderiam indicar problemas da criança na própria escola, na família, etc., e que passam a ser avaliadas pelo crivo psiquiátrico-moralizante-judicial, instrumentando o olhar do professor, cujo olhar de educador passa a ceder lugar ao olhar de aprendiz de especialista. Os exemplos são muitos. Mas a questão permanece: se diretrizes políticas de ação e atenção à Saúde Mental foram construídas e acordadas coletivamente em regime de Conferência, como fazer frente àquele tipo de atenção, formação e pesquisa que ferem frontalmente as diretrizes acordadas? Qual seria a instância responsável por fiscalizar, coibir, punir aquelas práticas contrárias às práticas propostas pelas diretrizes políticas de Saúde Mental e por fazer valer orçamento e dispositivos que permitissem efetivar tais diretrizes?
E, se o papel das conferências é também o de
deliberar pelas diretrizes políticas de Saúde Mental para o próximo período, simultaneamente ao de
cobrar dos atores políticos que ocupam cargos executivos, legislativos e judiciários, o compromisso de planejar os orçamentos nos três níveis de governo – municipal, estadual e federal -, de forma a garantir a implantação de tais políticas deliberadas em conferência e de fiscalizar seu cumprimento, quais os dispositivos coletivos de cobrança que foram construídos na IV Conferência? A mensagem do Dr. Teixeira era clara, com a qual concordamos: fizemos menos do que, por direito, poderíamos ter feito. E certamente, para garantir esse direito, nós, participantes da IV Conferência Nacional de Saúde Mental Intersetorial, teríamos que ter conseguido nos fazer um coletivo organizado, mais autônomo – em relação ao formato dado – e mais propositivo. E não foi o que ocorreu.
O que ocorreu? E aqui vão tentativas de puxar alguns fios que possam tornar mais visíveis e dizíveis os componentes das tramas tramadas nessa conferência.
E o primeiro fio é esse mesmo que o parágrafo anterior sugere: havia algo de paranóico no ar, uma desconfiança sempre alerta, como se fosse generalizada a suspeita de algo tramado, do qual necessariamente se estava alijado.
Um ar paranóico que fazia emergências diversas, tais como: protestos por parte de diferentes atores quanto ao caráter ministerial da conferência, em detrimento da participação popular, protestos que, se tinham pertinência, foram repetidas vezes feitos como ataques e não como reivindicação de construção de outro formato; por outro lado, a confirmar a acusação, a aparição “estelar” do Ministro Temporão nos tempos finais da conferência, contrastante com as participações produtivas e discretas dos Ministros Paulo Vanucchi – da Secretaria Especial dos Direitos Humanos – e Paul Singer – da Secretaria da Economia Solidária; uma sempre presente rivalidade entre usuários e profissionais, os primeiros fazendo inúmeras acusações aos segundos, rivalidade que, em ato, demonstrou ser produzida pela percepção da pertinência desses atores a diferentes classes sociais, diferença tão explorada pelos atores da organização da conferência municipal paulistana – principalmente sindicato e conselho municipal de saúde - de forma a acirrar uma “luta de classes”; rivalidade entre atores com vínculos trabalhistas diferentes - vínculo público e vínculo com organizações sociais – como se fosse o regime de contratação o vetor determinante das posições políticas no campo da Saúde Mental, em um claro equívoco de leitura micro e macropolítica; um certo tom de desvalorização dos espaços coletivos de debate, que passava pela improvisação de atores para a execução de importantes tarefas de suporte tais como digitar as propostas reformuladas nos grupos de discussão, coordenar mesas, etc.; fora os
n grupúsculos e grupelhos de distintas filiações, pertinências e interesses diversos que não necessariamente estavam a serviço de fazer andar o processamento e o andamento das boas propostas; acusações e ataques diretos ou instrumentando a “platéia” para fazê-lo entre partidários da RENILA (Rede Nacional Internúcleos da Luta Anti-Manicomial) – racha do movimento da luta anti-manicomial - e partidários do MNLAM (Movimento Nacional da Luta Anti-manicomial). Estas foram algumas expressões dos tensionamentos presentes na conferência, sem espaço público para serem nomeados e processados. De qualquer forma, lamentamos que os espaços vivos de resistência das práticas de atenção e cuidado em Saúde Mental, que podem acontecer tanto em um grupelho como em seu suposto rival, ou que podem não acontecer nem em um, nem em outro, ficaram secundarizadas pela lógica das disputas territorialistas, privatistas, narcísicas.
Outra questão central que, se teve pouco destaque no conjunto geral das propostas e dos debates, foi, por outro lado, motor de discussões e disputas mais localizadas gerando mal-estar generalizado: a questão do papel dos CAPSs na rede de atenção. Para uns – profissionais, grupos, movimentos – ele é central; para outros, ele é um articulador sem centralidade, já que “rede não tem centro” (na fala de uma participante). E aí mais uma vez a vertente paranóica triunfa: “A atenção básica quer tomar para si a Saúde Mental!” foi um tipo de fala ouvida, com algumas variações pelos corredores dos painéis, dos grupos de discussão e das plenárias.
Ainda mais um analisador merece ser destacadamente nomeado para nos ajudar a pensar no que estamos produzindo como movimento que se quer libertário. Parte fundamental do movimento da luta anti-manicomial e do movimento da reforma psiquiátrica no Brasil foi a luta pelo resgate da cidadania das pessoas com os chamados “transtornos graves e persistentes” e todo o movimento da reabilitação psicossocial se fez justamente nessa direção. O movimento legítimo de resgate da condição de cidadão refere-se a pessoas que, por sua condição subjetiva, foram alijadas dos direitos básicos de cidadania. E de fato, a desospitalização, as ações afirmativas de inserção social, em geral orquestradas nos CAPSs, as residências terapêuticas, as cooperativas de trabalho foram construindo outras possibilidades e outra dignidade para essas pessoas. Ora, pelos variados acontecimentos ao longo da conferência, acontecimentos envolvendo usuários como protagonistas, talvez esteja na hora de se perguntar como vem se produzindo também uma nova “identidade” – a identidade de usuário ou de “dono” de um CID, produção que tem como efeitos tanto a pessoa “se orgulhar” por seu CID (cf. fala de uma pessoa na Conferência), como ir se criando um lugar quase sagrado para os chamados usuários, como se estes não pudessem ser contrariados em suas posições como qualquer outro cidadão em um processo de disputa supostamente democrático. Assim é que vimos ocorrer várias situações, inclusive nos grupos de discussão, em que propostas flagrantemente contrárias às lutas pela não psicologização e psiquiatrização dos conflitos, por exemplo, acabarem sendo ganhas porque sua bandeira era empunhada por alguém que se dizia usuário e que, via de regra, contava uma situação pessoal para a qual dava como saída a proposta em pauta – “se tivesse psicólogo em escola, eu teria sido diagnosticada precocemente”- na contramão justamente da intersetorialidade que tanto se almeja. É claro que em uma situação como uma Conferência Nacional – momento exato para que se possa dar expressão pública a posições forjadas em cenários diversos, momento em que se quer justamente “batalhar” pela aprovação das propostas em que se aposta – a vontade de falar e expor posições e ideias aumenta proporcionalmente ao investimento que nelas se faz. Mas o que vimos acontecer inúmeras vezes ao longo da Conferência não foram apenas episódios de defesa intensa de posições, embora estes também tenham ocorrido, mas sim um uso frequente do microfone por usuários que tomavam a cena ora para berrar novamente o discurso da exclusão – para uma platéia que justamente está lá para defender e criar novas formas de inclusão – ora para um uso catártico da exposição, o que dava à Conferência uma tonalidade constante de transbordamento que, este sim, não era incluído.
A situação anterior, tomada como mais um analisador, nos leva a outra indagação: o que se fez de discussão sobre a CLÍNICA da Reforma Psiquiátrica? Será que os usuários, tantos, desbordantes, têm sido escutados em um registro de escuta clínica sensível, aquela que pode acolher, operar e construir sentido para as mais variadas formas de expressão humanas? Por que a ausência tão gritante de propostas e/ou de discussão sobre a clínica que se faz e que se pretende fazer nos novos paradigmas de Saúde Mental? E se é certo que a revolução “basagliana” associada com a revolução “foucaultiana” evidenciaram as relações de poder que reduziram a loucura à doença mental, tornando-a prerrogativa da especialidade médica criada a partir desta mesma redução, como então se verifica, em plena Conferência de Saúde Mental, um destaque especial dado à medicação psiquiátrica e, como decorrência, a manutenção do poder psiquiátrico tão duramente criticado pelo próprio movimento? É claro que é fundamental que as pessoas que efetivamente precisam de medicação psiquiátrica possam se beneficiar de seu uso adequado e de uma prescrição e acompanhamentos bem feitos pelos profissionais psiquiatras. Mas entendemos que isto é uma parte de um projeto de reinserção psicossocial, que também precisa ele mesmo ter efeitos terapêuticos sobre o extremo sofrimento a que estas pessoas estão submetidas. E como construir tal projeto sem discuti-lo, processá-lo clinicamente? Assim como não é possível separar tal discussão clínica da discussão política sobre uma sociedade excludente e seus excluídos.
Ainda um aspecto a ser considerado como desafio: o campo da Saúde Mental, apesar dos esforços de muitos, continua sendo identificado com o campo da atenção às pessoas com os chamados “transtornos graves e persistentes”, como se toda uma significativa parcela da população que sofre com diferentes “quadros” de ansiedade, de depressão, de impossibilidades de várias ordens, assim como o exército de crianças e adolescentes que vem sendo recorrentemente diagnosticados e medicados como disléxicos, hiperativos, ou, um dos mais graves e moralizantes diagnósticos, com “transtorno de conduta”, não fizessem parte do campo da Saúde Mental. E quem mais destacou a pouca importância dada a estas questões veio, ao que nos parece, justamente a partir da chamada intersetorialidade. Ainda que profissional psi, e talvez por isso mesmo a sensibilidade para estas questões, Carmen de Oliveira, da Secretaria Especial de Direitos Humanos, nomeou com todas as palavras os vários segmentos de crianças e adolescentes que têm o direito e a necessidade da atenção em saúde mental de forma intersetorial: não só os usuários de crack, álcool e outras drogas, como aqueles expostos às diferentes manifestações de violência, aqueles sem família e sem referência, aqueles cuja infração muitas vezes já é um pedido de socorro, aqueles alijados do circuito escolar por serem considerados incapacitados por diferentes diagnósticos
psi e tantos outros. Chamar a Atenção básica para cuidar de toda essa ampla gama de problemas não nos parece suficiente, haja vista que a própria Atenção Básica, ao menos na cidade de São Paulo, está muito fragmentada e desarticulada de redes, até pela lógica médica que tomou de assalto a saúde paulistana via “oessização” (OSs) da Saúde. Neste vácuo da política oficial entende-se a já mencionada invenção do governo Serra, supostamente parte da rede pública de atenção: a AME-Psiquiatria da V. Maria, Ambulatório de Psiquiatria, pretende justamente atender esses e outros casos, inclusive aqueles considerados graves, mostrando-se uma reedição piorada dos antigos ambulatórios de Saúde Mental porque reduz ainda mais as questões do sofrimento psíquico a problemas neuro-químicos. E é isso. Se nós não temos propostas claras, efetivas e eficientes para a atenção
universal (todos e qualquer um) que necessitem, os Srs. Drs. da Academia paulistana, que fazem oposição sistemática à política nacional de Saúde Mental, em nome da Ciência e dos pacientes, acabam conseguindo criar dispositivos e implementar práticas que passam a ser a referência “oficial” do que seria a atenção em Saúde mental, referência tanto para a população como para as agências formadoras, alimentando um círculo vicioso infernal produtor de mais alienação.
Como último, mas não menos importante ponto a ser considerado como desafio: a intersetorialidade mostrou-se, mais uma vez, um fato e não apenas algo desejável. Então, por que não pensar para a próxima Conferência de Saúde Mental a composição de uma comissão organizadora composta, desde seus primórdios, por membros dos diferentes Ministérios – Saúde, Educação, Cultura, Trabalho e Geração de Renda, Direitos Humanos, Assistência e Desenvolvimento Social e outros? Talvez só assim possamos pensar em dispositivos, ações, desenhos institucionais e práticas que efetivamente considerem a vida plena como direito de todos.
Maria Angela Santa Cruz
SP, Setembro/2010