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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    54 Junho 2020  
 
 
NOTÍCIAS DO DEPARTAMENTO

INQUIETAÇÕES EM TEMPOS DE PANDEMIA


Grupo Espaço de Trabalho



Iniciamos o ano com a agenda dos encontros do semestre completa. Inquietações e inquietos a postos para mais uma jornada de escutas, trocas e percepções variadas. A pandemia já havia sido anunciada e as medidas, em outras partes do planeta, tomadas.

Em meados de março, às vésperas de nosso primeiro encontro, a suspensão das aulas e o isolamento social são decretados, interrompendo nossos cotidianos e exigindo de todos rearranjos de diferentes ordens. Tentamos assimilar a situação inédita, carregada de medo, de insegurança e de incerteza, confrontando-nos com inquietações de magnitude inusitada.

Reunimo-nos, neste clima de angústia, para nos escutarmos e para decidir o que fazer. Desânimo, tristeza, medo e desamparo foi o que encontramos entre nós, colegas responsáveis pela organização dos nossos encontros. Suspender? Paralisar por algum tempo? O que pudemos constatar foi a impossibilidade de prosseguir sem algum entendimento do que se passava. Era preciso compartilhar internamente o mal-estar daquele momento, fazer o nosso encontro das Inquietações.

Decidimos suspender o encontro seguinte, que se daria naquela semana. Era o que conseguíamos decidir. Foi preciso se perder um pouco mais e se desamparar nas turbulências cotidianas de nossas bolhas isoladas para que o compartilhamento nos fizesse falta e nossas redes fossem lembradas. Marcamos nova reunião interna para partilha dos efeitos daquele período e constatamos que precisávamos fazer circular a palavra, não só entre nós, mas entre nossos demais pares. Sem muitas delongas, sem saber ao certo como conduzir um Inquietações on-line, decidimos promover o encontro virtual em abril.

No entanto, nessa empreitada nos deparamos com várias questões, que eram também eco de inquietações de nosso novo cotidiano clínico: o desafio dos atendimentos on-line, o cansaço e a dificuldade de sustentação da escuta ao viver um desassossego também presente para os analisandos. Nos questionávamos sobre o lugar que então ocupávamos e o enquadre que seria possível, ou não, para a sustentação de nosso ofício. As inquietações se desdobravam à medida que formulávamos as questões. Estávamos também atravessados pela questão da saúde, da possibilidade de colapso hospitalar, da presença da morte pairando sobre todos e sobretudo sobre quem não tem pra onde correr. E como se não bastasse, vivendo tudo isso à mercê de um comando caótico e perverso, de uma orquestração tirânica que exige nossa atenção/tensão diária.

Bem, foi então diante do incerto que abrimos um novo e inusitado espaço, como possibilidade que nos restava de acesso aos demais. Foi uma surpresa encontrarmos tantos inquietos. Nossos encontros presenciais, que têm um clima de cozinha - média de 10 a 12 participantes - se transformaram em reuniões com mais de 40 colegas. Nossos convites se disseminaram por grupos e cursos, aproximando rostos conhecidos e desconhecidos que foram aos poucos se permitindo trazer a dúvida, a insegurança, mas também a criatividade e o encantamento de perceber a vida que insiste em buscar sentido diante do avesso e do disforme. A tecnologia então deixou de ser uma ameaça, tornando-se um recurso capaz de suspender por um momento as nossas bolhas confinadas, e mensagens engarrafadas puderam encontrar destinos cruzados. O eco de nossas inquietações revelou que aquela circulação havia cumprido um sentido e que algo dali precisava continuar.

A partir do primeiro encontro, decidimos manter nossa frequência mensal e convidar os colegas do GTEP que fazem o percurso pela psicanálise em outras localidades e que normalmente não conseguem participar desta e de outras atividades que nosso Departamento promove aqui em São Paulo. Sob o título de Feitiço do tempo: paralisia e elaboração, realizamos em maio nosso segundo encontro, no qual lançamos a questão das temporalidades nesta nova realidade imposta pelo confinamento. Neste encontro, que contou com colegas de Goiânia, São José do Rio Preto, Lorena e Maringá, entre outros, além dos habituais paulistanos, trocamos inquietações sobre como sustentar a escuta e a atenção flutuante neste contexto de pandemia e pandemônio.

Constatamos a premência da reconstrução do setting junto a cada paciente, transitando por práticas pouco habituais para muitos de nós e nos perguntando se o que fazíamos seria transgressão ou reconfiguração de nossos parâmetros de trabalho. Relatos vários ilustravam a singularidade da busca pela escuta, como o pedido de sessões gravadas na madrugada, enviadas à analista, que então enviava de volta suas intervenções. Daí nos deparamos com a importância do enquadre interno do analista, capaz de circular por práticas desconhecidas.

Nestes percursos, surge o desafio de lidar com silêncios e atravessamentos não previstos, seja no home office, seja no confinamento/isolamento social, ou mesmo na cena política, que invade as narrativas clínicas aproximando ou afastando analisandos e analistas,que então se identificam ou se opõem nos entendimentos sobre as diretrizes das políticas de saúde e de gestão pública dos poderes instituídos. Tanto na identificação por semelhança, quanto na oposição ideológica, desafios se colocam para a escuta clínica. Com a palavra circulando num mesmo espaço, mesmo que por diferentes localidades, falamos de tempos afins e diversos, alguns buscando respostas, outros arriscando hipóteses, mas todos construindo coletivamente possibilidades de um trabalho horizontal que se legitima na presença dos pares e no respeito estabelecido.

Estes encontros ressaltaram a importância da narrativa compartilhada como possibilidade de enfrentamento do traumático. Sobretudo quando este é uma experiência comum, como esta que vivemos, promovida pela ruptura abrupta com um modo de vida, e que nos deslocou das referências conhecidas. Seguiremos com nossos encontros virtuais enquanto não pudermos estar juntos presencialmente.

Grupo Espaço de Trabalho

Natalia Gola

Paulo Certain

Roberta Kehdy

Roberto Villaboim

Tiago Corbisiser Matheus




 
 
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