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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    58 Abril 2021  
 
 
PSICANÁLISE EM PANDEMIA

VARANDAS TERAPÊUTICAS


DANIEL LIRIO[1]

Tornou-se lugar comum dizer que estamos vivendo tempos sombrios. Se antes denunciávamos o “esgarçamento do tecido social”, hoje procuramos fios aos quais nos atarmos em uma noite cega. No início da pandemia, em torno de fevereiro de 2020, estava claro que enfrentaríamos um monstro, mas não sabíamos quantas cabeças ele teria...

Ainda no crepúsculo, as imagens italianas de pessoas confraternizando alentava, esperançava; cada qual em sua varanda (balcone) cantava, trovava, operava o milagre de aproximar sofrimentos isolados. Eu mal comparava, e praguejava contra nossas varandas elitistas, gourmets , dos paneleiros que trilhavam os sons do ódio desde o golpe de 2016 e seguiam como estandartes de um país que repudio.

Mas onde estariam aquelas varandas acolhedoras de outrora? Teria desmoronado esse lugar tão brasileiro, em que os espaços público e privado se beijam, onde o estranho possa entrar sem me invadir? Estaria nosso querido alpendre mineiro soterrado por uma terrível bola de Neves?

Nesse clima de resistência e esperança, criei – no Instituto Gerar – o Varandas Terapêuticas, grupo online aberto para que as pessoas se encontrem e falem dos desafios ligados à pandemia. Os encontros são semanais e o pagamento é voluntário. Desde o ano passado, a varanda tem sido bem comprida, abrigando pessoas de quase todas as capitais, diversas cidades do interior e até brasileiros que moram em outros países. Em 2021, temos cerca de 15 participantes por encontro. [2]

Quando surge uma dúvida sobre a condução do grupo, guio-me pelo nome Varandas: se alguém aparece comendo um aperitivo, tomando cerveja, chega atrasado ou sai antes – atitudes reprováveis em um grupo clínico tradicional – é bem vindo à informalidade de uma Varanda.

Nesse espaço acompanho como as pessoas enfrentaram diferentes etapas na pandemia: culpa por se sentirem improdutivas, medo da doença, o pavor de sair de casa, a raiva dos que não respeitam o isolamento social e, com o passar do tempo, uma resignação melancólica, a consciência de que o tempo está passando e é preciso aprender a viver nessa nova condição, a revisão da vida, dos velhos hábitos e a busca por uma existência mais genuína, a vontade de recomeçar, ainda que a tristeza esteja presente. Neste ano, começam a ficar mais frequentes os relatos de perda de parentes próximos em virtude da Covid, a resignação com a situação atual e até o medo de se acostumarem com o isolamento, medo da completa alienação do convívio social.

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Sérgio Buarque de Holanda, em Raízes do Brasil, apresenta como característica típica do brasileiro a dificuldade de separação entre as esferas pública e privada. Para ele, a ausência de formalidades e rituais organizadores da sociabilidade implica a constituição de formas de convivência pública análogas ao que se vive na esfera privada. Ou seja, a afetividade não está regulamentada por instâncias externas, mas pode ser exercida de acordo com os jogos de força do momento. O senhor de engenho decidia sobre a vida e a morte de todos os que viviam à sua sombra e, apesar do país ter se urbanizado, a lógica do engenho foi mantida, e cada pai de família tornou-se o senhor tirano em sua propriedade.

Atualmente, no plano privado, a violência doméstica atesta essa continuidade que, no âmbito público, se expressa nas figuras de poder que legislam conforme seus interesses pessoais, uma vez que eles mesmos não se submetem a qualquer lei. Na pandemia encontramos tanto instituições públicas como atores privados que resistem a seguir estritamente os protocolos de prevenção e a se submeter ao saber sobre a doença. Ou seja, cada cidadão coloca-se como instância decisória de seus protocolos, de acordo com sua própria conveniência e percepção da realidade, em detrimento do interesse coletivo. A situação é agravada quando temos um presidente que incorpora a figura de grande senhor de engenho, o qual comanda seus súditos, pequenos senhores sem engenho.

Uma pessoa minimamente sensata que se depara com o desafio de enfrentar uma pandemia no Brasil é acometida por um profundo sentimento de estranheza. Muitos participantes do grupo estão isolados ou não têm com quem compartilhar as agruras desse momento, o que pode ser bastante enlouquecedor. Nos encontros do Varandas, solidão e isolamento podem ser compartilhados, bem como o reconhecimento grupal de que há traços do absurdo em nossa sociedade.

Em suma, para além dos benefícios típicos de um grupo terapêutico, como a constituição de vínculos afetivos, a experiência da alteridade de forma respeitosa em sua riqueza e a elaboração de temas comuns e singulares, penso que a importância do Varandas Terapêuticas está no estabelecimento de alguma confiança na cidadania e nos vínculos sociais, não apenas como sustentadores de uma vivência subjetiva, mas também como destinatários de criações individuais, como músicas, poesias, desenhos e sonhos. Desta forma, tem sido possível resgatar dos escombros as capacidades poéticas e encontrar, em um absurdo compartilhado, fiapos de lucidez.



[1] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, supervisor institucional e mestre em Psicologia Social pela USP; autor de um livro e diversos artigos sobre psicanálise e cultura, todos disponíveis no site www.daniellirio.com.br .
[2] Para se inscrever, basta enviar um e-mail para atende@institutogerar.com.br



 
 
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