Um resumo e um poema para contar um pouco do que aconteceu durante a live Psicanálise e cultura em tempos de banalidades e silenciamentos, que continua no ar na plataforma do Youtube[1]
Déborah de Paula Souza [2]
No dia 26 de junho de 2020, o Departamento de Psicanálise promoveu a live Psicanálise e cultura em tempos de banalidades e silenciamentos, com a psicanalista Sílvia Nogueira de Carvalho e o escritor Julián Fuks. Ela, membro do Departamento e editora deste Boletim, integra os coletivos troça coletiva - psicanálise, arte e política, e Escuta Sedes. Ele, crítico literário e autor dos livros A resistência e A ocupação. Ambos são professores em suas respectivas áreas de atuação e Fuks mantém uma coluna na plataforma UOL, onde tem publicado reflexões sobre a pandemia, entre elas um texto sobre a falência do sentido, um dos disparadores desse encontro organizado pelas analistas Nanci de Oliveira, que mediou a conversa, Mabel Casakin e Maria Aparecida Kfouri Aidar, que fizeram o acompanhamento do chat.
Na proposta do evento, o que se afirma é a ética da psicanálise e sua posição a favor da vida e dos vínculos com o mundo – ainda mais agora, quando tudo convoca ao desligamento e sentimos queimar, no corpo coletivo, os efeitos da necropolítica.
Convidada a escrever sobre a laive, desejo ecoar mais uma vez as palavras daquela noite que começou com uma sonora evocação: “Democracia”. Palavra desgastada que ganhou vida nova quando Sílvia lembrou que ela foi criada na Grécia como um insulto aos pobres e desvalidos. Os democratas, no entanto, fizeram do insulto um nome, marca de luta contra qualquer poder de dominação. Sem dar muita trela aos vapores malignos que tentam envenenar a nossa combalida democracia, Sílvia preferiu recuperar para todos nós a Memória. Maiúscula, sim, porque ela evocou uma deusa, Mnemosine, a mãe das musas. E tudo isso para lembrar o quê? O modo como a vida se impõe quando é ameaçada e por que é imperioso escutá-la, sobretudo quando sua manifestação é invisível.
Máscaras, janelas e cascas – o nome do trabalho apresentado nessa noite – trouxe três “figuras de testemunho”. Máscaras alude ao espanto, aos efeitos da quarentena, onde a presença da máscara é protocolo de proteção. Mas na escavação de outras faces, chegamos à história da negritude, quando a máscara era de ferro, instrumento de silenciamento e tortura na boca de escravos. Em Janelas, a poesia escorre com evocação da música, do cinema, da fotografia do invisível em sua conexão com os consultórios virtuais: o fotógrafo cego escuta o sino para clicar, o analista escuta a voz para analisar, pois às vezes se desliga a câmera. Nesse trecho envidraçado da memória entra também a história da arte e o causo do jardineiro com sua lembrança de imbuia, mãe-árvore, convocando em nós seiva muito antiga, que insiste na vitalidade.
Em Cascas, cujo nome remete aos machucados e à delicadeza, pois o que se descasca é sempre a pele, são anunciadas as histórias de quem sobreviveu ao extermínio e o que isso tem a ver com a clínica psicanalítica na escuta das narrativas da morte e também do reencantamento da vida.
Nesses três momentos, Sílvia enuncia de modo sucinto o que é preciso fazer agora: deter o vírus, abrir as janelas, resistir ao real.
Inventários de falências e refúgios de beleza
Julián, por sua vez, retoma alguns temas de seus artigos publicados na pandemia e pergunta: “O que estamos vendo no Brasil é a produção cotidiana daquilo que, no futuro, será denominado trauma? Nesse caso, mesmo com todas as ressalvas de que um país não é um indivíduo, não seria conveniente ao país realizar qualquer coisa que equivalha a um processo analítico?”
E será que nós, os que se colocaram na resistência, mesmo angustiados, sentindo-se eventualmente “ativistas de sofá”, como disse uma das organizadoras do evento, já não começamos esse processo? Seja na produção de laives, de escrita, de cursos ou de socorros, ou ainda de outras coisas em estado embrionário que aguardam o momento de vir à luz? O trabalho começa miúdo, mesmo quando o estrago é grande.
As perguntas perturbadoras de Julián, porém, chegam na esteira da viagem, na qual ele nos conduz, com cuidado, temeroso pelo tom de lamento que emite o apito do navio a essa altura da história, marcando tanto a rota do naufrágio quanto a urgência de resgate dos sobreviventes.
Na sua lista de perdas e danos, o escritor descreve a falência do tempo, da presença e do sentido. Questionado se, em relação aos dilemas atuais, assume em sua literatura uma posição distópica ou utópica, sente que oscila entra as duas, por vezes acentua o caráter distópico, porém com a necessidade de afirmar: “Não será assim!”. Se ruas e cidades estão agora fechadas ao convívio e às manifestações de luta, podemos atuar como guardiões da chave da utopia - aquela capaz de alterar o rumo das histórias. Ele alerta que pessimismo demais é problemático: “Foi o olhar negativo que nos conduziu ao bolsonarismo”.
Desconfiado da avalanche de notícias que tentam mostrar o aspecto objetivo da situação (como não desconfiar dessa objetividade estatística que contabiliza corpos e disseca os órgãos, sem tocar no assombro?), o escritor reafirma a nossa necessidade de refúgio, evoca a força do lirismo e da beleza (obrigada, musas), como formas de oxigenação nesses tempos de asfixia, onde o mote “não consigo respirar” não é figura de linguagem, mas denúncia de assassinato e slogan de luta antirracista.
O refúgio lírico não serve à alienação e sim à sobrevivência e ao senso de perspectiva. Para Fuks, será preciso afastar-se um pouco para voltar ao ponto da dor, olhando-o, então, de outro jeito. “Nossa falência não é definitiva”, acredita, mesmo que nesse momento seja tão difícil o processo de simbolização do que nos acontece/adoece.
O problema desse resumo que tentei fazer, os leitores que viram a laive já devem ter percebido, é que o encontro não nos co-moveu apenas pelo que foi dito e muito mais pelo como foi dito, a beleza das falas, que incluíram citações luminosas de outros artistas, filósofos e psicanalistas. Quando o mortífero avança com tanto ímpeto, é preciso chamar os curandeiros, cientistas e sonhadores de todos os campos – para semear o campo maior da vida. E não se trata apenas de medo da morte (sim, também ele existe), mas da percepção da presença dos genocidas entre nós, do assassinato em massa, com vetores para além do vírus. E porque não me contentei com o resumo, para esconjurar as pestes fiz um poema.
Segue abaixo o Poema da noite em dois tempos: a mulher e o escriba. Ele foi composto com palavras e expressões de Sílvia e Julián, e um pouco do debate final da laive. Esta é minha tentativa de começar a realizar, de imediato e como pude, o que eles propuseram: resistir ao real, re-compor os elementos do trauma, costurar o rasgo que feriu o tecido social e esfolou nossa pele.
Que me desculpem os autores se eu os roubei, se fiz do roubo algo indevido (porque nem sempre escutamos o que foi dito, mas só aquilo que conseguimos escutar), se acabei chegando num terreiro porque, nesses dias, me sinto na encruzilhada. Roubei, sim, porque eles abriram as janelas da casa e também por necessidade.
Poema da noite/ a mulher
Fazer do insulto um nome
entregar o nome à constância dos nossos atos
O silenciamento é arbítrio,
mas o silêncio é a mãe das palavras
Na encruzilhada dos encantamentos
aos que foram citados agradeço as dádivas
é na força da poesia que o poeta esconjura a morte
Escute a mulher:
quando ela diz hoje
está dizendo terremoto
quando ela diz terremoto
usa tabelas argentinas
e instaura a medida país-dor.
Começa o Brasil
minha escuta espatifa
está tudo um caco
não sei como ela
vai continuar daqui
eu já estou num terreiro
com essa força que agora gira
Pandemônia!
- deusa diaba da interrogação -
a que nos roga alguma ação?
Essa estranha entidade
- a condensação do infortúnio -
por ato de magia e sonho
revira-se aos berros:
pobre! preto! velho! doente!
Logo se vê, aqui não é a Grécia
aqui é pomba gira, preto velho em missão
o insulto busca virar um nome-em-si
amuleto de auxílio e proteção
que o poupe da vala comum
dos dez, cem, cem mil
e muitos outros mil
todos mortos
O desígnio da peste
o testemunho-moinho
moendo o grão das palavras
feito águas feito lágrimas
na cura do campo seco
desta tamanha violência
(“O afeto é o movimento
em busca de uma forma”.
Vem dançar, Green,
Na festa informe desta gira)
Na barafunda dos dialetos
no corpo fechado com-puta-dor
é que se prepara este bálsamo:
violino no pátio
solitude
sonho
alegria
e esse choro no contágio dos mortos
esse choro no contato das almas antigas
e na reencarnação dos guerreiros
Evoé Zumbi dos Palmares
evoé Grada Kilomba
(colocou vela e copo d’água
sob o retrato da preta velha
com a boca costurada
na instalação da bienal.
Kilomba, sintoma e canal
dos cantos da plantação
o blues da cura do mal)
Onde vocês pensam que estão?
o naufrágio desvia as rotas
às portas de Sarajevo
sob a saraivada de balas
dificulta-se o plano da orquestra
daquilo que não cessa de tocar:
a ascensão da música
no céu do mundo
e suas janelas vitrais
sob efeito de luz
moça
carta
canto
alma
janelas de Eslovênia e Veronica
janelas de Bavcar
em que o fotógrafo cego clica
o sininho a tilintar
na dança de uma menina
(Escuta também nossa sina, 2020,
um país arrasado em sua análise impossível:
a que distância se escuta o indizível?)
Quase tudo posso suportar
menos a história da imbuia:
“nasceu, cresceu,
deu filhos ao seu redor
morreu.”
Didi, não chore
são três cascas de bétula, Didi
e a mulher que te reconta agora
recolhida em concha e noz
também tem nome de árvore
as consultas são bosques
é preciso imaginá-los
muito além dos incêndios
crianças salvando filhotes
sob a guarda da índia
que conhece os riachos
E ainda esses sonhos,
esses sonhos
absurdamente doces.
Poema da noite/ o escriba
Diante da magnitude
do infortúnio
o homem com seu bloco de notas
faz o inventário
de ruínas
O registro aponta
três falências:
tempo
sentido
presença
O corpo de Cronos
parou de pulsar
o inchaço do presente
turva a visão do futuro
e o frescor de seus inventos
Os mortos estão
fora do tempo
Isso não faz mais sentido
algo ocorreu aqui
qualquer resposta não convém
suposições de corona
o mundo inteiro tem
Vai ver foi castigo de deus
estão aí os gafanhotos
chegando do Paraguai
a fim de provar a tese bíblica:
somos um Egito que deu errado
aqui todas as pragas
corrompem até o estrago
Ou então não foi nada disso
quem poderá decifrar
as mensagens da Terra ferida?
mandou o mundo parar
e o povo pensar na vida
É hora de obedecer
e seremos contemplados
com golfinho e fake news
o céu azul do outono
divando na globo news
com as notícias da China
visão de pureza barrada
delírios de cloroquina
Outra hipótese sempre à mão
na barafunda do armário:
isso é coisa de comunista
posando de visionário
O vírus, camaradas, é revolucionário
Segue o escriba atordoado
com tanta explicação
sem preâmbulos registra:
- excesso de razão é medo
os racionais forjam escudos
para esconder esse segredo -
Não cabe a dor da escrita
nessas rimas infantis
extrapola do caderno
o olhar do homem tão terno
e uma palavra atroz
- o genocídio entre nós -
a ferida deste agora
a ele e a nós desarvora
e pede à interpretação
uma dose de desejo
assim, como se pede um beijo
Contemplar esse presente
com olhos de quem já viu
morte, tortura, baques
perscrutar toda maldade
ao som dos atabaques
na construção do trauma
a soma dos nossos mortos
que um dia foram amados
com nossos amores tortos
O nosso amor não acaba
porque a história se perdeu
que ninguém se acostume
com a ausência da verdade
ainda hoje perguntaram
se ela também morreu
Tentaram assassiná-la
e a vera se escafedeu
mas está viva, isso é certo
aguardando a hora exata
de rugir em campo aberto
Da ciência da ruína
o escritor se desloca
faz um furo no caderno
pelo furo chama o vento
desabilita o inferno
das teses bem explicadas
no fundo explicam nada
segue na trilha dos sonhos
profundezas e beiradas
Por esse furo-janela
retorna a mulher que diz:
história faremos depois
agora é socorro rápido
unguento e cicatriz
essa clínica é singela
a vida está por um triz
Agulha, linha e cuidado
cerzir com paciência
e no tecido rasgado
bordar a palavra feliz.
[2] Déborah de Paula Souza é psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae e uma das fundadoras do CAJU- Coletivo de Psicanálise, Adolescência e Juventude.