A SEGUNDA FESTA, PÁ[1]
MARIA ELISA PESSOA LABAKI[2]
A fissão não terminou. Para o vírus, o ciclo continua virtuoso. O horror implora por ressignificação. Resistir é construir acessos, descobrir zonas de convivência, inflamar o coração. Juntar o separado, dissolver o fundido trabalhando sem parar. Encaixar um sentido para o impensável, para o impossível. Fazer do corpo, símbolo; das mãos, alcance, pulsos e pés fincados. Porque a destrutividade não resulta só no naufrágio e no caos fabricado, mas também em seu tautológico deslizar no campo da linguagem. Naveguemos então apalavrados de que não negligenciaremos o advir; que confiaremos em nossos objetos de amor e sentiremos as delícias de encontrar ali o que criamos aqui.
“Foi bonita a festa pá
Fiquei contente
Ainda guardo renitente
Um velho cravo para mim.
Já murcharam tua festa, pá
Mas certamente
Esqueceram uma semente
N’algum canto do jardim”
(Tanto mar, Chico Buarque, 1978)
I - A trincheira e um sonho
Trincheira
Se insisto em receber as provisões do sensível é porque posso me recolher junto à trincheira, em cujo fundo atapetado descanso um pouco e vou ao encontro de respostas. Observo, tiro fotos, faço distinções e grito nomes, cores, formas para me distrair da agonia do tiro que me atingiu e quase me arruinou, mas do qual consegui escapar pelas beiradas do furo que me deformou. Vigio as fronteiras da dor, que corre abundante por seus afluentes e atinge impiedosa o flanco onde está o buraco hiperinvestido pelo estrago. Forço, tento consumar o devir inédito como a criança que olha pela boca da fechadura, por onde se alcança parte daquilo do qual se foi excluído, e vê os corpos entrelaçados. O real choca e quebra a casca explodindo em cascata.
É por sua vocação em oscilar que a gangorra do humor regula seus fluídos e abalos buscando acertar prazer na dor. O prazer conserta a dor.
Suportar o cálculo cotidiano de números de mortos e doentes alvos do diminuto ser funciona como uma espécie de exercício de adaptação aos impactos, acompanhado do fortalecimento gradual de músculos, ossos e ligamentos. Uma forma de munição para estancar seu poder exponencial e reduzi-lo à miserável condição existencial do que é apenas contingente, provisório. (Ainda que o transitório ou o súbito nada tenham da miséria, mas sejam belos exatamente por sua especial submissão ao instante). Alçá-lo a um reduto de si, reduzi-lo a um resto morto o bastante para imunizar o entendimento contra a desrazão. Ex-poderá-lo pela fragmentação. Mesmo que a tritura aumente em extensão sua superfície, potencializando a capacidade penetrante do Mal animal, vou me valer do princípio da degradação, que rebaixa o grau quando se perde a unidade anterior, original.
O mapa das ocultações. Na escala numérica, sob a escalada do ódio e nas escadas rumo ao abate, sou uma vaca ferida a mais neste rebanho dócil e obediente. Na fila, me posiciono por último para receber a porção mais variada da ração dos condenados que sobrou escondida, decantada, no fundo da panela. A sopa é sempre muito ralinha para os primeiros, mas grossa e consistente para aqueles que a recebem por último. É isto um homem? [3]
Sonho
Houve uma festa para onde retornei para dizer que havia sido uma boa festa. Era a casa de um primo. E neste dia, quando lá voltei, estava começando outra festa, já com algumas pessoas chegando. Na sala havia uma grande tela de cinema, que era a televisão da casa, onde eram projetadas duas imagens em formato oval de televisão antiga, uma ao lado da outra, transmitindo em branco e preto meio azulado um jornal diário de notícias. A televisão tela de cinema da casa era transparente, feita de um material feito seda ou tule esticado, mas firme e avantajado. Nesta sala, que era de estar, mas podia ser a sala de existir, as cadeiras estavam dispostas em sucessão, uma ao lado da outra. Cadeiras de madeira de auditório de escola ou poltronas de um teatro antigo.
Dou um pulo no banheiro, que se apresenta fétido e com merda espalhada, endurecida e seca entranhada nas louças enfileiradas. Louças brancas como as instaladas em banheiro escolar ou de algum teatro. Merda espirrada e grudada desde a festa passada. Um documento selado, lavrado, lacrado, certidão de óbito. Aqui jaz uma festa. Com tudo que tem de direito. E avesso.
Na sala de existir, as pessoas sentadas se manifestavam oralmente, falando, falando, falando. Ordenadamente, cada uma na sua vez, sem combinação prévia quanto à organização ou à ordem, tampouco inscrição. A palavra fluía. A parceira do meu primo, segurando uns papeizinhos na mão, ia confirmando a contribuição em dinheiro de cada um lá presente. Em inglês, ela dizia: with you for ever. (Frase irônica que eu tinha lido no dia anterior em um post que havia recebido com a capa de uma revista italiana de 1962, Domenica del Corriere, cuja imagem mostrava pessoas encapsuladas de pé dentro de pequeninos automóveis com capotas abauladas feitas de vidro inteiramente transparente, ilustrando uma matéria sobre o mundo em 2022. Tudo single, individual.)
Então, na nova festa a palavra seguia seu curso, ritmada e parecendo conduzida por um metrônomo, submetida a um pragmatismo generoso que facilitava a emissão para aquele que a evocava e a introjeção para quem por ela fosse provocado. Faladas aos borbotões, as palavras iam se transformando em um monte, nuvem densa, um pão em fermentação e uma engrenagem trabalhando sem parar. Ágora. Estávamos nós ali ocupando a sala de estar pública. Democracia reiterada, validada. E quando, num sobressalto, tive esse pensamento sobre a democracia lá em exercício, percebi que éramos todos parte da arte de montar do meu primo. Era uma intervenção, como outras que produzem universos paralelos e homólogos aos da natureza e do Homem, mas que não são naturais porque nascem da inflexão imposta pelo artista, que subverte e reorganiza acrescentando mecanismo e destino desconhecidos.
Nesse ponto do sonho, pensei ter entendido o sentido desta festa por sua necessidade – Ananké – de servir como resposta, e assim ficarmos lá falando, falando e falando. Estávamos em uma festa combinada previamente e com finalidade diferente da diversão que entretém. Havia nos convidados uma devoção para com o ato de se manifestar que, apesar de sua orquestração, não perdia em espontaneidade e ágil ganhava em circulação.
Dei um pulo no banheiro, que agora estava limpo, ainda insípido e inodoro esperando para servir depois que a festa começasse.
No quintal, dei com um mastro fincado no chão, como um pau-de-sebo, mas podia ser também um totem, ou até uma pinhata, cuja ponta lá do alto espetava um busto marrom e sem cabeça usando roupa de couro; podia ser um jagunço se equilibrando. Alguns da festa cirandavam ao seu redor num movimento centrífugo e cambaleante, mas sem dispersar. A Lei, um Pai. Eram poucos, tortos e enlutados.
II - A interpretação pelo primo
Muito bonito o seu sonho.
A segunda festa.
Enquanto a primeira não é limpa/enterrada.
Essa coisa de voltar para agradecer e encontrar a verdadeira cena rolando é muito boa.
Parece um teatro da concórdia, intenso e verdadeiro, onde cada um fala na sua vez - o logos, portanto, a verdadeira fala - e já notou que esse vírus ataca justamente essa fala - ou melhor se transmite por ela?
Tem uma segunda armação rolando, como se a festa pertencesse a uma outra ordem, que é um sentimento lindo, de pertencimento a algo melhor.
O banheiro quando aparece limpo é decepcionante? - ou simplesmente impessoal?
E as pessoas rodando em torno ao pau-de-sebo - são tristes como prisioneiros? E você escapa deles?
Tem um poema do Yeats chamado "the second coming" - que tem aquele verso famoso “ the best lack all conviction/ while the worst are full of passionate intension ” - que talvez você goste de ler/reler.
III – Falando ao primo
A história da convicção é complicada. Talvez a única convicção necessária seja a que se sabe aberta para revisão. Mas acho que você pegou um ponto interessante sobre a palavra ali, a palavra plena, leve e cheia ao mesmo tempo; significante, mas não livre de equivocidade. Havia naquele teatro da concórdia (adorei a imagem) uma ausência de paixão - cega e violenta - dada pelo ritmo sempre igual na emissão das palavras. E no acordo de todos se escutarem.
Essa coisa de pertencimento a outra ordem que subjazia, isso mesmo. Não sei, algo como a Fé. Ainda em construção em mim.
Não sei se eu escapava.
The Second Comig – W. B. Yeats
Turning and turning in the widening gyre
The falcon cannot hear the falconer;
Things fall apart; the centre cannot hold;
Mere anarchy is loosed apon the world,
The blood-dimmed tide is loosed, and everywhere
The ceremony of innocence is drowned;
The best lack all conviction, while the worst
Are full os passionate intensity.
Surely some revelation is at band;
Surely the Second Coming is at hand.
The Second Coming! Hardly are those words out
When a vast image out of Spiritus Mundi
Troubles my sight: somewhere in sands of the desert
A shape with lion body and the head of a man,
A gaze blank and pitiless as the sun,
Is moving its slow thighs, while all about it
Reel shadows os the indignant desert birds.
The darkness drops again; but now I know
That twenty centuries of stony sleep
Were vexed to nightmare by a rocking cradle,
And what rough beast, its hour come round at last,
Slouches towards Bethlehem to be born?
A Segunda Vinda (tradução de Adriano Scandolara)
Gira e gira no vórtice crescente
Não escuta o falcão ao falcoeiro;
As coisas vão abaixo; o centro cede;
Mera anarquia é solta sobre o mundo,
Solta a maré de sangue turva, afoga-se
Por toda parte o rito da inocência;
Falta fé aos melhores, já os piores
Se enchem de intensidade apaixonada.
Por certo, há revelações a vir;
Por certo, há a Segunda Vinda a vir.
Segunda Vinda! Mal saem tais palavras,
E a vasta imagem do Spiritus Mundi
Perturba-me a visão: lá no deserto
Um vulto de leão com rosto de homem,
O olhar vago, impiedoso como o sol,
As lentas coxas move, tendo em torno
Sombras de iradas aves do deserto.
Cai a treva outra vez, mas ora sei
Que o pétreo sono de seus vinte séculos
Vexou-se ao pesadelo por um berço.
Que besta bruta, de hora enfim chegada,
Rasteja até Belém para nascer?
[1] Parte desse material foi publicado em junho de 2020 no
Blog do Departamento de Psicanálise e seu desenvolvimento foi sugerido por Sílvia Nogueira de Carvalho, a quem agradeço a ideia.
[2] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise e do Departamento de Psicossomática Psicanalítica do Instituto Sedes Sapientiae, onde é professora do curso de formação. Membro do Grupo Brasileiro de Pesquisas Sándor Ferenczi (GBPSF).
[3] Primo Levi.
É isto um homem? Rio de Janeiro, Rocco, 1997.