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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    60 Setembro 2021  
 
 
NOTÍCIAS DOS CURSOS

SEGUNDA EDIÇÃO DO EVENTO ESPAÇO CLÍNICO DO CURSO DE PSICANÁLISE

ABERTURA


CLEIDE MONTEIRO [1]



Prezados participantes do Espaço Clínico 2021, sejam bem-vindos!

Nesta 2ª edição deste encontro gostaríamos de fazer algumas observações.

A oportunidade de fazer a introdução ao evento sempre nos estimula a lembrar da história que nos precede. Essa vai delimitando, sugerindo, apontando caminhos para o presente e para o futuro. Às vezes essa reconexão com sonhos, projetos, experiências de gerações anteriores leva muito tempo, e depende de mudanças políticas, históricas e sociais amplas.

Nesse quase devaneio em que mergulhei me vinham os sentidos do Curso de Psicanálise na década de 1970, o que representou e como foi se afirmando no campo da transmissão, o fato de ter sido alocado no Instituto Sedes Sapientiae, de ampla atuação e Carta de princípios defensora de justiça social e direitos humanos... ideias transformadoras das vigentes à época.

E o momento atual, com as Clínicas Públicas que experimentam formas de trabalho com o sofrimento psíquico - sofrimento humano - na qual se repensam as bases do tratamento psíquico, psicanalítico, novos enquadres e seus fundamentos. Também essas trajetórias que têm longa história oficialmente oculta até alguns anos atrás, de experiências de analistas das primeiras gerações.

Dou-me conta que, ao invés de alongar essa introdução e tomar o tempo e o lugar dos aprimorandos que se apresentarão, posso indicar aos aqui presentes referências sobre esses momentos que me pareceram tão preciosos para o que nos motiva hoje. O livro da História do Departamento de Psicanálise [2],editado em 2006, e o evento Questões sociais e políticas na história da psicanálise: ontem e hoje, realizado em 2018, são algumas delas e de fácil acesso no site do Departamento.

Assim, encerro relembrando um tanto da breve história da criação do Espaço Clínico.

Em 2019, um levantamento feito com os analistas em formação do Curso de Psicanálise manifestou o desejo por maior atividade ligada à clínica. Surgiu, então, a ideia de criar o Espaço Clínico, no qual os alunos envolvidos no projeto Aprimoramento na Clínica do Sedes pudessem tornar públicas as inúmeras questões clínicas suscitadas pela experiência de atendimento em uma clínica social pautada por critérios da saúde pública, do atendimento em rede e da política antimanicomial/tratamento em liberdade. Clínica essa que nos desafia constantemente e nos convoca a pensar, a teorizar, dado nosso compromisso com a justiça social e com a vida coletiva, em meio a um país assolado por uma gestão desastrosa da pandemia da Covid-19 e das proteções sociais.

O primeiro encontro aconteceu em agosto de 2019 e foi presencial. Em 2020, diante de tantos desafios para criarmos possibilidades de continuidade dos atendimentos via on line, assim como da formação, não conseguimos realizá-lo.

Neste ano, mais ambientados com os modos de existir e resistir, com nossa atividade de transmissão e reflexão, convidamos a todos e todas para participarem dessa atividade que tratará das vicissitudes do enquadre nessa clínica social.

Neste encontro teremos como tema geral das apresentações: O enquadre psicanalítico no atendimento na Clínica Social. Questões com tempo, espaço, encerramentos, mudanças de terapeuta e a mudança para o modo on line em 2020.

Informo que teremos três apresentações, uma de cada grupo de supervisão do Aprimoramento com a duração de 20 minutos cada.

Elas serão realizadas em sequência. Ao final das apresentações haverá um comentário inicial realizado por Paula Mendel, que já foi aprimoranda da Clínica, como disparador do momento seguinte de discussão aberta com o público.

Dando início, teremos a apresentação de Lucas Ribeiro Arruda, Os tempos e os seus fins.

Na sequência se apresentarão Robson Pereira e Carolina Sarmanho com o texto: O contrato na Clínica do Sedes.

E, por fim, Ricardo Araujo Parro com A moldura viva.





O TEMPO E SEUS FINS



LUCAS RIBEIRO ARRUDA [3]

Este trabalho foi realizado a partir de discussões coletivas
com o grupo de supervisão do Aprimoramento da Clínica
do Sedes, com a supervisão de Soraia Bento e com
os supervisionados Aglael Rossi, Gabriela Maia, Lucas
Ribeiro Arruda, Luciana Rezende Lima, Luís Roberto Wakim e Paula Freire.



O título do presente trabalho carrega em seu sentido uma aparente ambiguidade. Se por um lado falamos do tempo e dos inevitáveis términos e encerramentos dos atendimentos dentro de um contexto muito particular em uma clínica social, por outro lado, o título nos deixa uma inquietação: quais são os fins, no sentido de finalidade, desse trabalho que vamos desenvolvendo em um aprimoramento, junto à Clínica do Instituto Sedes Sapientiae? No entanto, essa ambiguidade talvez vá se configurando como uma complementaridade. Não seria justamente a análise das finalizações, encerramentos, ou interrupções, uma oportunidade para que se faça uma reflexão sobre nosso trabalho? Afinal, onde estamos? Em que instituição atuamos? Mas mais ainda, como se configura a marca dessa instituição e deste trabalho?



* * *



A procura por um atendimento no Sedes se dá pelo sujeito externo à instituição. Este recorre ao Sedes e ao que ele significa também em sua inserção na sociedade e na história. Aí se estabelece a primeira transferência, com a instituição, que se mantém como referência durante os atendimentos realizados. No entanto, assim que o sujeito externo é chamado para comparecer à recepção, alguns “recortes” começam a ocorrer. A recepção é a porta de entrada da instituição. A partir de três sessões em grupo, com um coordenador e dois observadores, é realizado o encaminhamento para um dos serviços. Nesta recepção há o primeiro registro deste sujeito (agora interno), a primeira memória dele guardada na instituição. Os integrantes da recepção recebem essa transferência inicial e começa o processo de “localizá-la” dentro da configuração interna.

Em seguida há o encaminhamento desse sujeito, no nosso caso, a um dos analistas, dentre os aprimorandos vinculados ao Curso de Psicanálise do Sedes. Este processo pode se dar pela sugestão do coordenador da Equipe clínica da qual fazemos parte, que antevê as possíveis transferências da dupla analista-paciente, ou mesmo da escolha do próprio analista, que ocorre a partir da apresentação do caso pelo coordenador. No entanto, mais uma variável se apresenta quando a pessoa que procurou o Sedes inicialmente já havia passado por algum outro atendimento na instituição. Neste caso, o analista que o atendeu anteriormente, se fizer parte da mesma Equipe clínica, poderá relatar sua experiência a todos. Esses “recortes” transferenciais vão se dando a partir da própria complexidade da instituição, em um jogo ativo e vivo, repleto de interrelações.

Tais recortes talvez se formem mais como uma colcha de retalhos. No decorrer de nosso trabalho vamos notando essa fluidez de lugares. Essa colcha, ou melhor, essa grande rede (de segurança?), precisa de atores que deem voz a cada uma dessas instâncias, que percorram linhas e façam nós, ou laços, umas com as outras. O aprimorando, como analista em atendimento, é como um desses porta vozes da instituição, onde por um lado tem que responder às demandas e acordos institucionais e por outro responder às demandas dos próprios pacientes que estão em contato. Qual lugar é esse do analista da Clínica do Sedes? Se por um lado não pode ter todas as liberdades que uma clínica particular poderia pretender ter, por outro lado pode se sentir livre ao transitar por essas instâncias institucionais. Pode-se adquirir e assimilar esse fluxo (contemplando uma transicionalidade entre diversos grupos e transferências) e assim fazer parte da marca que o Sedes representa. Qual poderia ser essa marca? Faremos mais uma consideração sobre isso no decorrer do texto.



* * *



Uma paciente se “adesiva” à analista. Há o início de um atendimento assumido por uma analista integrante de nosso grupo. A velocidade é grande, abertura de relatos, conexão entre as duas. São relatadas as situações abusivas vividas pela paciente. Ela é traída ou traidora? Tenta ser voyeur do que ela acredita ser a vida da analista? Ela é a que exclui ou é a excluída nas relações intensas de sua vida? O contrato é feito. Passa rápido para trás, qual foi o registro feito pela paciente do contrato? Ela vinha de um atendimento anterior em que o contrato a isentava de pagamento. No entanto, no novo contrato com a analista atual, ela pagaria um valor.

Quais eram os contratos das relações que essa paciente estabelecia, essa mulher de trinta e poucos anos que muitas vezes lembrava à analista uma criança, pelo jeito de falar, de se vestir e de seus modos na sessão? Algo não se encaixava bem no conjunto, algo era contraditório nessa paciente. Sabemos que a transferência diz respeito a repetições e algo se repetiu quando a paciente se sentiu muito traída pelo fato de a analista cobrar o pagamento das sessões nas quais havia faltado. A paciente se indignou dizendo que ela era isenta no processo anterior e atribuiu à analista atual esse “corte insensato”. Foi o fim dessa análise e a paciente pediu então ao Sedes para ser atendida por uma nova terapeuta. Houve uma confusão entre o que era uma cobrança da instituição e o que parecia à paciente uma cobrança motivada por um capricho da analista. Talvez essa situação, de uma ruptura da análise, tenha nos revelado o papel desse terceiro na vida da paciente, onde a mediação do pagamento (de um terceiro) entra como um corte insuportável e insensível. Nesse sentido, podemos falar de uma atuação e uma ruptura, mas com um desfecho diferente do que seria em uma clínica particular, por exemplo. Agora a paciente recorre ao Sedes pedindo uma nova analista. Mostrou-se então uma oportunidade para outro “ator” da instituição conversar com ela, para poder trabalhar essa questão que foi atuada dentro do contexto da vida dela.

A situação de análise referida acima mostra um espaço amplo de relatos da paciente, confissões e angústias, mas em um tempo curto. No entanto, esse tempo curto, sua interrupção, também foi um analisador com o qual a instituição como um todo pode lidar. A análise, que teve a duração de 3 meses aproximadamente, poderia ser chamada de uma “análise curta”? Ou de uma análise que teve pouco alcance? De nenhum modo. O importante aqui é diferenciar o que seria o tempo cronológico e o tempo lógico. Cronologicamente a análise pode ter sido mais curta (se compararmos com uma mais longa). No entanto, logicamente, houve um desenvolvimento dos acontecimentos que geraram análise.

Há uma regra da Clínica do Sedes segundo a qual um paciente pode ficar até 4 anos realizando atendimentos diversos. No entanto, há alguns casos em que este tempo é estendido. Não se trata novamente, nestes casos, de parâmetros cronológicos, mas sim de reflexões analíticas. Uma outra analista de nosso grupo atende uma paciente que está há 10 anos sendo atendida pelo Sedes. Atualmente ela se encontra no terceiro processo de análise, tendo este a duração de cinco anos. Ao longo do período todo a instituição se tornou a principal referência na vida da paciente. Esta paciente ilustra o que sente: “Sinto de novo o estranho em mim”. O que é o estranho? A analista sai com a paciente à procura de palavras. Talvez esse estranho seja mesmo a contrapartida de todo o esforço que ela faz para “ser”. Com todos os profissionais que a atenderam por todos esses anos e que a acompanharam de forma presente e ativa, essa paciente, psicótica, pode ir construindo uma possibilidade, uma base, para poder dizer: “Algo ocorre em mim que precisa de palavras”. À primeira vista parece irracional a continuidade dessa paciente em mais um processo de análise, sendo que ela está há 10 anos na instituição. No entanto, se constrói o sentido não de uma continuidade “por acomodação”, mas de uma continuidade por “potência”, ou seja, por apostas nesses vínculos vivos e fluidos dela com diversas instâncias do Sedes.

O percurso dessa paciente psicótica no Sedes está muito atravessado também pela transferência com a instituição. Há um corpo vivo institucional na relação com ela. As características desse corpo são justamente essa continência de muitas transferências que a paciente pôde ir estabelecendo ao longo dos anos, assim como a paciente que relatamos antes, que interrompeu o processo com sua analista, também pôde contar com a instituição para poder, em uma nova conversa, elaborar o vivido. A partir dessa continência que a instituição oferece e de outras considerações, foi concebida a complexa reflexão de fazer sentido a continuação dessa paciente psicótica no Sedes. Uma consideração aqui é a de que, não se trata de uma “análise interminável”, no sentido de nunca poder chegar a um “progresso”, mas seria uma análise contínua, um “processo” em que o elemento analítico está sempre vivo e presente.

Observamos, num caso atendido por uma terceira analista de nosso grupo, que o prazo de término da análise (que na Clínica do Sedes se dá depois de dois anos de atendimento), facilitou a abertura de outros diferentes conteúdos. Talvez aí a diferença esteja em dois aspectos distintos. Um aspecto é que a análise não começa com uma meta “egóica”, ou seja, objetificadora do tratamento. O outro é de que há diversas possibilidades após o término do atendimento: o encaminhamento para outro terapeuta da Clínica ou do cadastro da instituição, ou mesmo da clínica particular da atual terapeuta e ainda, em alguns casos, outros encaminhamentos diversos, como para outras instituições. Desta forma, mesmo com a “troca” de terapeutas, estaria garantido, via a transferência maior à instituição, esse “destino incerto” que Pierre Fédida (1988) coloca a respeito das análises que facilitam a regressão, em termos psicanalíticos. Podemos também adicionar aqui a reflexão sobre o caso do Homem dos Lobos, em que Freud descreve um processo de análise com um fim estipulado, em que é favorecido o aparecimento de diversos aspectos expressos pelo paciente em sua associação livre.

O caso atendido por essa terceira analista de nosso grupo inicia o ano faltando às três primeiras sessões. Quando já era fevereiro, a paciente faz uma longa fala sobre tudo o que conquistou na análise. A analista aponta para a questão das faltas e ela diz que, como irá completar dois anos de atendimento em maio, sente que já pode ir se desligando (lembrando que a analista já havia falado no início do processo, no contrato, que o período de atendimento era de dois anos). No entanto, a analista havia estendido seu tempo de permanência na Clínica e, ao colocar isso para a paciente, esta se mostra aliviada. Mais para a frente, a dupla retoma seu percurso na Clínica.

O trabalho de desligamento durante o aprimoramento inicia-se cerca de dois meses antes do término da análise. Contudo, a fala da analista no contrato e a lembrança dela pela analisanda levaram-nas a falar sobre o término da análise antes, o que pareceu a abertura de uma possibilidade para repercutir e ressoar esta primeira experiência analítica dela. A paciente coloca que o pânico dela “deu lugar a outra coisa”. Este é um deslocamento importante e que cabe como critério para pensar este processo analítico. No entanto, é possível perceber que esse “lugar aberto” ainda não foi ocupado por outra coisa. Em uma reflexão sobre a regressão podemos levantar como hipótese que a questão do pânico remonta a questões ainda anteriores como, por exemplo, um problema apontado pela paciente em relação a sua mãe.



* * *



O tempo para a psicanálise toma proporções diferentes do senso comum ao nos atermos ao que é o tempo para o inconsciente. Muitas vezes o tempo aparece de forma um tanto paradoxal. Vejamos no caso de nossas reflexões aqui: Pierre Fédida afirma que uma análise só termina quando atinge sua possibilidade de ser infinita (1988). Ou seja, quando instaura no paciente a possibilidade de análise. Pudemos observar que, no contexto de nosso trabalho na Clínica do Sedes, essa lógica máxima, de não ter um fim como meta, acaba sendo problematizada e ganha outros contornos, tendo em vista a própria complexidade da instituição. Relatamos um caso em que “não houve tempo”, mas que o tempo inconsciente (de repetições) da analisanda pode se expressar em suas difíceis vicissitudes. Outro exemplo que trouxemos foi da paciente psicótica que cronologicamente se “estende” pelo tempo na instituição. No entanto, pudemos também observar a função clínica desse “estender”, complexificando também as regras da Clínica, nas quais cabem ser pensadas as exceções. Por último, falamos a respeito de uma paciente que se relacionou com o tempo da análise de duas formas: uma se recolocando frente à possibilidade de finitude do processo analítico e, por outro lado, podendo se abrir para um incerto do futuro, via o encaminhamento e continuidade do processo com outro terapeuta. Nos três casos expostos as analistas puderam contar com instituição, de diferentes modos, em relação aos seus atendimentos.

Estamos falando de tempos subjetivos, dentro de uma perspectiva psicanalítica. O aparato institucional concebe esses tempos, que dizem respeito às particularidades de cada indivíduo (tanto os que procuram a Clínica, como os “internos” a ela). A Clínica do Sedes não trabalha de forma compartimentalizada, o que dificultaria o cuidado segundo a perspectiva a que vamos nos referindo. Essa “desespecialização” dos diferentes núcleos e perspectivas, somadas a uma intensa especialização, no sentido da formação acadêmica, possibilita trocas que contemplam as diferenças entre os núcleos e abordagens. Talvez promovendo uma “atenção flutuante” institucional, ou seja, as diferentes transferências podem “caminhar” de um lugar ao outro, de uma posição à outra. Assim como a atenção flutuante, os diferentes profissionais não ficam fixos em uma posição só, mas podem tanto encaminhar os casos, como compartilhar reflexões uns com os outros.

Na realização deste trabalho, o grupo foi pensando em uma imagem que reunisse essa nossa percepção a respeito da multiplicidade da Clínica do Sedes frente a seus pacientes. Ao contrário de ser uma tarefa árdua, o grupo foi seguido ao longo das semanas por diversas e sucessivas imagens. A primeira imagem que concebemos foi a de um “corredor de transferências”. Assim, a transferência não pára no analista unicamente. Se o analista encerrasse nele tudo do paciente seria uma “transferência beco”? Ao contrário, o corredor de transferência escapa de uma dupla e continua. Seria como um corredor aberto, de um para o outro.

Apesar de nos sentirmos contemplados por essa imagem do corredor, algo dessa imagem não fazia tanta justiça ao nosso trabalho. O corredor traz uma sensação de linearidade, algo de categórico, que não era compatível com essa multiplicidade que queríamos alcançar. Depois pensamos na imagem de algo rizomático, em que as raízes todas vão se intercomunicando. Também pensamos em transferências cruzadas. Mas, na verdade, talvez nem precisemos encontrar uma imagem como que em um esforço para concluir algo, para fechar. A própria dificuldade para encerrar uma reflexão, ou um texto, também diz respeito a como lidamos com o fim. A própria marca da instituição do Sedes se faz via esse texto também: este trabalho é um porta voz de uma de suas vertentes, que é a própria transmissão para a comunidade (dos terapeutas do Sedes, mas também dos psicanalistas em geral e também da sociedade).

Como o tempo se articula nas transferências cruzadas? Justamente se articula na medida em que o tempo, revelado nos fins das análises descritas, é um analisador de como a instituição se posiciona na sociedade em que está. Essa posição talvez seja a de um tempo que não é o normativo. Talvez seja a posição política de ouvir sujeitos que sofrem, dentro da perspectiva do tempo desses próprios sofrimentos. Assim, o fim (na transferência), aqui descrito, também é um revelador social. Pois na medida em que o atendimento, o “um a um”, vai se dando, vão também se desenhando os contornos do mundo em que cada um vive (interno e externo). Desses traços que vamos percebendo, vão se delineando formas, que cabe ao analista ir ajudando a nomear, até que se formem figuras. A potência dessas figuras é uma das potências que a psicanálise pode oferecer.

O fim, como coloca Freud em seu texto Sobre a transitoriedade, pode ser tanto visto melancolicamente, ou seja, a partir daquilo que não é mais, do que se perdeu, quanto pode ser visto também como possibilidade do novo. Mas apenas com esse contorno dos fins é possível saber o que já não é mais, permitindo a percepção do que pode ser. A Clínica do Sedes oferece formas construídas historicamente, com muitos contornos conquistados, muitas vezes passando por algumas “bordas” da sociedade, como na época de seu posicionamento em relação à ditadura. Ficamos felizes em fazer parte dessas “formas” que possibilitam ao sujeito a criação de outras e novas figuras.


REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

FÉDIDA, P. Amor e morte na transferência. In: Clínica psicanalítica: estudos. São Paulo: Escuta, 1988.





O CONTRATO TERAPÊUTICO: ALGUMAS QUESTÕES SOBRE O DISPOSITIVO ANALÍTICO. EXPERIÊNCIAS DO APRIMORAMENTO NA CLÍNICA DO SEDES



CAROLINA SARMANHO
ROBSON VITURINO [4]



Iniciar o aprimoramento na Clínica do Sedes foi uma feliz conquista. O percurso dos autores desse texto na Clínica foi próximo: os dois entramos no primeiro semestre de 2019, no nosso primeiro ano do curso Psicanálise, fizemos parte do mesmo grupo de supervisão clínica e encerramos nosso ciclo recentemente, completados dois anos. Agora nós nos vimos instigados a preparar esse texto nos debruçando sobre essa experiência.

Recordo que ambos compartilhamos do prazer de fazer parte da história da Clínica, um espaço norteado por um projeto clínico-ético-político em que acreditamos e que indicava que nossa passagem seria enriquecedora. Sabíamos que a Clínica do Sedes vinha se firmando havia décadas como uma referência na formação de profissionais em Saúde Mental e no campo da atenção à população, trabalho que ocorre através de uma práxis singular, implicada eticamente com as questões de seu tempo.

O projeto clínico-ético-político ao qual nos referimos foi construído nos anos 90 após uma grande problematização em torno dos moldes de uma “clínica-escola”. Criaram-se, então, condições institucionais para o questionamento e a investigação sistemáticos de conceitos e práticas relativos à subjetividade e ao sofrimento psíquico. Daí, o que se configurou foi uma clínica, e não mais clínica-escola, que atualmente trabalha na invenção de dispositivos de ação e de intervenção para além das atividades psicoterapêuticas stricto sensu: uma clínica de atenção a sujeitos em sofrimento psíquico, atenta aos diversos componentes desse sofrimento, com ações intersetoriais, mas também uma clínica de ações junto a grupos, setores da coletividade, movimentos sociais, e de intervenções institucionais. Essa forma de trabalho tem construído permanentemente um modo de fazer clínica que valoriza e potencializa a singularidade ao mesmo tempo em que marca uma diferença frente à lógica dominante do individualismo, da massificação e da desigualdade. Tal objetivo se faz consonante aos princípios do Instituto Sedes Sapientiae, historicamente pautados na defesa dos direitos e da dignidade humanos, nos valores democráticos e na justiça social.

Num contexto de novas categorias diagnósticas que tentam dar conta da subjetividade contemporânea, a Clínica do Sedes, segundo suas diretrizes clínico-ético-políticas, opta por se configurar como uma clínica não aprisionada na lógica medicalizante dos “transtornos” ou psicopatologias. Sendo assim, os projetos são feitos muito mais a partir de uma problemática contemporânea ou por especificidades de recortes populacionais do que por uma equívoca triagem psicopatológica.

A literatura psicanalítica nos ajuda a entender essa querela contemporânea e que casos são esses que chegam aos consultórios na atualidade. Os “sintomas” com os quais a psicanálise se depara nos nossos dias são decorrentes de um excesso pulsional inominável. São manifestações sintomáticas que se situam fora do discurso, enquanto o sujeito está excluído do campo do desejo.

Pode-se dizer que, em termos gerais, as patologias são mais graves; compulsão e voracidade em relação aos objetos de satisfação se apresentam como a principal característica dessa sintomatologia. Perdido e sem referências, o sujeito da atualidade está suscetível a invasões de gozo que, em algumas ocasiões, oferecem uma barreira infranqueável à introdução de um espaço analítico. Essas patologias partem de pessoas à deriva em busca de enlaçar esse excesso a qualquer custo. São casos em que o sujeito estabelece relações muito primárias com o objeto, com dificuldades no processo de simbolização e falhas na castração. Essa relação estabelecida com o objeto é da ordem da demanda, consumo imediato, não tolerando a espera e o desejo.

Tomamos assim que o objetivo fundamental da intervenção analítica é legislar sobre o gozo, introduzir significantes que separem o sujeito e suas demandas da busca de satisfação imediata, além de estabelecer uma nova posição subjetiva que se faça pela via do desejo, um dique frente aos excessos. A clínica psicanalítica oferece ao sujeito contemporâneo um lugar inédito que se funda pela palavra e rompe com os excessos do mundo lá fora, colocando o tempo em suspensão; a análise serve como o espaço em que se instaura o campo psíquico. O analista se depara com a tarefa de resgatar a possibilidade e o direito do sujeito a um sintoma próprio e singular, trabalhando com a demanda imperativa de não suportar o vazio, de não conseguir conviver com a angústia e com a tristeza (OCARIZ, 2002).

Daí acreditamos ser relevante pensar no impacto do contrato terapêutico na vida psíquica do sujeito angustiado que chega para análise. O acordo feito entre analista e analisando no início do percurso dita as regras que possibilitarão que esse espaço funcione, colocando para jogo um pacto pela vida que circunscreve um limite, um contorno ao que antes não tinha forma.

Na clínica psicanalítica a única regra que importa é a regra fundamental da associação livre; o resto das regras do enquadre podem ser mutáveis. No artigo técnico “O início do tratamento”, de 1913, Freud anuncia algumas recomendações, as quais ele se refere como regras do jogo, que têm de retirar seu significado do contexto maior do jogo levando em consideração a plasticidade das variedades psíquicas, sem que haja uma mecanização da técnica.

Freud faz recomendações que dizem respeito a aspectos que conversam com o enquadre, que tem a ver principalmente com o tempo, dinheiro e espaço. O tempo não só quanto ao horário das sessões e à regularidade dos encontros, mas também como o tempo da duração do tratamento, pois uma análise exige paciência e não pode dar garantias. Quanto ao dinheiro, é necessário se acordar os honorários do analista e, como escreveu Freud, usar os instrumentos da psicanálise para encarar as questões de dinheiro com a mesma franqueza que empregamos ao tratar das questões sexuais. Acordado isso, se oferece então a ocupação desse espaço analítico.

O contrato aparece como um acordo que aposta no desejo de análise do analisando e na disposição do analista para acompanhar essa análise. A partir daí, se funda este campo inédito que garante não só a ocupação de um espaço físico onde se oferece a escuta, mas também a territorialização do campo psíquico. É possível notar que desde muito cedo as análises e reanálises vêm se prestando a contratos que, por vezes, parecem transgredir uma imagem da ”psicanálise ideal” e que, justamente por isso, possibilitam pensar no ideal de análise, ou seja, questionar quais seriam os critérios imprescindíveis para que se dê uma análise. Há um consistente trabalho clínico, como o vivenciado na Clínica do Sedes, que acontece em condições e circunstâncias diferentes das consideradas ideais, mas que evidencia isso que diz da ética da psicanálise que garante o trabalho analítico, atendendo às demandas desse sujeito contemporâneo. A firmação de contratos que fogem do cenário “ideal” da psicanálise torna-se necessária para alcançar o sofrimento desse sujeito do qual estamos falando.

Assim refletimos sobre como podemos dispor dos instrumentos oferecidos pela psicanálise para promover a escuta do inconsciente, estabelecer a transferência e direcionar um tratamento em 2021. Tomamos como exemplo um caso que passou pela Clínica do Sedes, atendido por um aprimorando. É um caso que além de tudo nos historiciza nesse momento em que o atendimento de forma virtual fazia parte de nosso pacto pela vida. Vemos um desses “casos graves” que apresentou uma transformação radical em sua posição subjetiva frente aos seus desejos na medida em que a análise ia acontecendo. Percebemos que havia algo que passava pelo contrato que ia circunscrevendo esse espaço, dando forma inclusive a este voraz campo do virtual. Era um contrato que contemplava as condições do paciente e que foi sendo retificado na medida em que as condições do paciente mudavam, especialmente em relação ao dinheiro e ao pagamento.

A experiência na Clínica do Sedes: uma travessia de risco

O trabalho com Pedro F. na Clínica do Sedes começou sob uma série de questionamentos. Atravessamos os primeiros meses da pandemia sem saber muito bem quais seriam os caminhos e os desfechos possíveis para uma série de situações frente à catástrofe que se anunciava. Uma delas era o encaminhamento de pacientes graves entre nós, os aprimorandos. As dúvidas sobre como fazê-lo virtualmente, sem sequer um encontro no espaço físico da Clínica, despertavam incertezas e um tanto de angústia, mas naquele momento não havia muito a fazer. O esforço coletivo mais urgente era — ou pelo menos deveria ser — pela sobrevivência. Felizmente a Clínica logo aderiu às orientações de distanciamento social e fechou o prédio para todo mundo.

Após alguns contatos frustrados, obtive o primeiro retorno de Pedro. Seu histórico na Clínica do Sedes incluía outros trabalhos terapêuticos, além do acompanhamento de uma psiquiatra. Ao me preparar para as entrevistas, volta e meia eu especulava como havia sido a transferência em cada encontro anterior e com a instituição. Nas discussões com a Equipe clínica, havia ainda uma dúvida sobre se seria uma boa ideia encaminhá-lo a um terapeuta homem. Pedro iniciara uma ansiada exploração da sua sexualidade, permitindo-se ter relações sexuais com outros homens. Como o assunto não avançara com o terapeuta anterior, também homem, supunha-se a necessidade de uma mudança. Entendemos que essa era uma questão com muitas outras implicações e decidimos prosseguir. Eu iria atendê-lo.

Meu trabalho com Pedro se iniciou, então, sob a marca que vinha dos encontros anteriores do paciente na Clínica, além dos seus antigos traumas, sombras e desejos. Compunha-se uma nova teia da qual eu faria parte dali em diante, com o atravessamento do vírus mortífero que nos atacava diariamente, riscando uma fronteira nas relações humanas ao reduzir radicalmente (ou eliminar) os encontros entre os corpos. Logo pudemos constatar que a luta por sobrevivência acentuava a solidão e o desamparo. A angústia frente à morte passara a ser tema constante nas reuniões clínicas e nos atendimentos.

Nós, os aprimorandos, fazíamos uma experiência, tateando esse novo território atrás do diapasão que nos permitiria verdadeiramente escutar os pacientes, e não apenas atender às suas chamadas nas plataformas virtuais.

Muitos psicanalistas e psicoterapeutas abriram suas experiências aos interessados e apresentaram suas hipóteses no calor dos fatos. Alguns se diziam desconfiados dos novos recursos, mas após se confrontarem com o sofrimento dos pacientes, admitiam haver algo importante se estabelecendo: apesar de todas as limitações, a libido se fazia presente nas sessões através da voz e da imagem (Birman, 2020). No caso de Pedro, essa nova teia se desenhava diante de um paciente com traços de melancolia, permeado por questões da sua sexualidade e do desejo de “ser visto” e de se apropriar do seu lugar como pai, além de uma busca por novos caminhos profissionais.

Algumas perguntas despontavam, revelando a dimensão multifacetada do contrato. Não se tratava de mero protocolo e burocracia, mas sim de um pacto firmado pela dupla analítica. Diante disso, os membros da minha Equipe clínica, os colegas da supervisão e eu passamos a nos questionar: o que ficaria de uma clínica social neste novo formato de atendimento? Longe do prédio da rua Ministro Godói e de toda a ritualística da Clínica, como seria possível manter esse traço fundamental do nosso trabalho? Quais seriam os efeitos dessa mudança já que, pouco tempo antes, o encontro com a Clínica se dera de outra forma? O que a mudança de setting acarretaria?

As primeiras entrevistas explicitaram logo de saída alguns elementos da desorganização de Pedro. Em nosso encontro inicial, ele andou sem parar pelo seu apartamento de paredes claras. Dizia não ter lugar para se sentar, pois a casa tinha coisas acumuladas por todos os lados. Assim, durante cerca de uma hora ele daria voltas por alguns cômodos, enquanto esboçava as questões que ocupariam o espaço do trabalho terapêutico no ano a seguir. Apesar da instabilidade e da tristeza, chamava a atenção a sensibilidade e a ironia que às vezes surgiam como um rasgo de revolta na sua fala. Na queixa sobre o trabalho “sem sentido”, “estúpido” e “desumano” como operário de uma fábrica de eletrônicos, aparecia uma percepção cristalina, mordaz e sarcástica. De início melancólico, o paciente revelaria na própria queixa uma força que viria da sua capacidade crítica de ler a realidade.

Pedro chegou se queixando de uma profissão muito aquém de suas capacidades, uma atividade que o fazia se sentir um autômato. Tinha vinte minutos para fazer as refeições e controle de tempo para ir ao banheiro. Sentia-se excluído da relação entre os colegas mais jovens e às vezes citava o personagem de Chaplin em Tempos modernos. Ele vivia precariamente, precisava de ajuda financeira para pagar as contas e sonhava se tornar um empresário. Parte do seu sofrimento e da sua fantasia se situava no campo da “performance de alto desempenho”. Incapaz de corresponder aos ideais coletivos e particulares de produtividade, Pedro era vítima e algoz de si mesmo (Han, 2021). Ele era um paciente que se dirigia a uma clínica social atrás de terapia, mas poderia se aproveitar de muitas outras formas de ajuda (Danto,2019).

Considerei aquele um bom começo. Daí em diante, surgiria o terreno no qual seria possível encontrar os meios para discutir o contrato.

Após a segunda entrevista, falou-se de pagamento, frequência e horários, além da transposição para o virtual dos preceitos de privacidade que compõem a clínica psicanalítica. Se estabeleceu que os encontros ocorreriam uma vez por semana, no começo da noite. Optei por deixar em aberto a questão do pagamento, o que se revelou promissor. Pedro usufruía da isenção, o que eu não sabia inicialmente, pois não havia lido o seu relatório (por opção própria). Algo surpreso com a colocação, mas sem mencionar a situação anterior, o paciente disse que gostaria, sim, de pagar pela terapia.

Dessa forma, o contrato revelava sua dimensão crucial para o nosso trabalho. Partindo de uma pergunta sobre o pagamento, se formou uma nova trama para aquele sujeito com um Eu muito frágil, que se depreciava com frequência e dependia de uma rede de ajuda para questões muito básicas do cotidiano. Nesse enredo, ele podia se reposicionar na relação com a Clínica e o analista e, por extensão, no mundo lá fora. O valor foi sugerido por ele e estava dentro do patamar trabalhado na Clínica. Obviamente, sua realidade não deixava de ser depauperada, mas se abria um espaço para surgir alguma potência. Tudo isso no momento em que ele iniciava uma nova exploração da própria sexualidade. O pagamento se manteve durante todo o nosso percurso.

Em um contexto social pautado pela incerteza, pela violência política e pela morte, o contrato oferecia alguns horizontes. Era organizador, prospectivo, aludia a um futuro possível e tocava no anseio por sobrevivência. Frente ao temor da morte e à angústia de castração, promovia a pulsão de vida, se fazia exponencialmente vital — era a possibilidade de elaboração, de construção e de vínculos num emaranhado de pulsão de morte. A finitude, por outro lado, ganhava tons de urgência urgentíssima por causa do vírus. Como muito se falou e se escreveu naqueles meses, vivemos uma experiência de guerra.

Nos casos como o de Pedro, havia o temor de que o tempo empregado na análise através da plataforma digital pudesse ser meramente consumido, como mais uma experiência a ser tragada voraz e compulsivamente (Han, 2021). No entanto, algo se promoveu naquela escuta, revelando que algo se processava. Sua poética era chamuscada de fragilidade e urgência, uma forma que oscilava entre flerte com a destruição e desejo de enlaçar a vida.

Pedro atravessou momentos críticos de angústia e melancolia, se desorganizou e falou em suicídio. Em um dos períodos mais agudos de sofrimento, passamos a fazer dois encontros semanais e ajustamos o valor das sessões, de acordo com as possibilidades financeiras dele e o sistema da Clínica. Pedro raramente faltava e podia atrasar o pagamento, porém nunca deixou de fazê-lo. A permanência desses dispositivos aparentemente triviais se revelaria muito poderosa. Formavam essa ilusão de simplicidade um espaço-tempo e um preço pré-definidos e a certeza de que eu estaria lá para escutá-lo. No fundo, não havia nada simples. Com a ajuda desse contorno, faríamos um caminho em que ele poderia começar a desvelar sua bissexualidade, lidar com as feridas narcísicas de um sujeito que não se sentia visto, ousar se apropriar do seu lugar como pai e esboçar trilhas de trabalho.

Da minha parte e da parte da minha colega, além de frequentar os seminários do Curso de Psicanálise, participar das reuniões da Equipe clínica, seguir com a análise, os atendimentos e a supervisão, incorporamos as infinitas lives. Seguia, obviamente, toda a carga de compromissos pessoais que cada um mantinha consigo próprio e com as suas redes. Em muitas dessas atividades, parecia haver a premência que vem do horror à morte. De fato, talvez só tenha sido possível todo esse investimento por horror à morte. Isso nos atravessou a todos e, naturalmente, também estava lá nessa mistura de contorno, acordo, pacto e compromisso que é o contrato da clínica psicanalítica.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BIRMAN, J. O trauma na pandemia do coronavírus. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2020, pp. 147-150.
FREUD, S. O início do tratamento (1913). Obras completas, vol. 10. da Cia das Letras.
DANTO, E. A. As clínicas públicas de Freud. São Paulo: Perspectiva, 2019, p. 264.
HAN, B. C. Sociedade paliativa: a dor hoje. Petrópolis, RJ, Editora Vozes, 2021, pp. 25-26 e pp.98-101.
OCARIZ, M. C. O dispositivo psicanalítico no começo do século XXI. Revista Percurso, número 29, 2002, pp. 33-39.
VILUTIS, I. M. A construção do dispositivo analítico. Revista Percurso, número 29, 2002, pp. 27-32.





A MOLDURA VIVA



RICARDO ARAUJO PARRO [5]



Explorar o tema do enquadre analítico em qualquer de suas modalidades exige de nós um cuidado conceitual. Historicamente e ainda hoje essa noção e seu campo de sentido estão vinculados, como Bleger expôs em seu Psicanálise do enquadre psicanalítico, à transferência daquilo que se deposita sobre o que há de não-processo no tratamento psicanalítico, não-processo que é instaurado por uma moldura, a frequência, o tempo, etc. Quando, em conjunto com as supervisoras, este tema se salientou, as dúvidas nos assaltaram. Em nossas reuniões, eu e as colegas de supervisão tivemos a impressão de que precisávamos de instrumentos conceituais melhores para lidar com a questão. Pois não sabíamos ao certo se caberia apresentar a incidência de certos determinantes do equipamento Clínica psicológica do Instituto Sedes Sapientiae sobre seus usuários e sobre seus analistas ou a abordagem mais psicanaliticamente convencional e recíproca, ou seja, aquilo que os nossos analisandos depositam na Clínica e no Sedes. A não ser que nos limitemos à lógica da boneca russa em que a transferência do usuário ao Sedes se desloca para as partes integrantes do equipamento, e mais especificamente para o terapeuta, a não ser que mantenhamos uma epistemologia que privilegie as individualidades estanques de seus elementos, então essa prática deve poder questionar nossos instrumentos de análise e a nossa dúvida ganha algum sentido. Como os colegas dos outros grupos, apresentaremos algo da nossa prática clínica nesta instituição, algo de sua vida e de suas franjas, aquilo que conseguimos intuir como diferença em relação às outras modalidades clínicas e institucionais que desempenhamos. Eu optei por deixar de lado discussões teóricas. Gostaria assim que essa clínica pudesse se mostrar e vibrar, e se mostrar também nas minhas falhas de apresentação que talvez emulem a complexidade daquilo que esboçarei em largas pinceladas.

Não sei se todos aqui sabem mais ou menos como funciona o dispositivo da Clínica do Sedes Sapientiae. Vou narrar os dois lados que me interessam enquanto pontos de perspectiva, aquele dos usuários e aquele dos terapeutas aprimorandos.

Os usuários chegam ao Sedes pelos mais diversos meios, indicação, busca na internet etc. Eles passam então por uma recepção. São três entrevistas em grupo, com um(a) terapeuta contratada e observadores, em que se tenta destacar uma questão analítica, um preço possível e o tipo de terapia desejada. Curiosamente os efeitos dessas entrevistas aparecem pouquíssimo nos tratamentos posteriores. De minha experiência só consegui observá-los num caso em que fui observador e, em seguida, terapeuta de um dos participantes dessa recepção, algo como uma experiência em comum que podia ser referida e a partir da qual construíamos e fantasiávamos conjuntamente hipóteses e interpretações. Outro caso é o de um paciente meu que retoma sempre esse momento como aquele em que disse o que os terapeutas queriam ouvir para que fosse aceito, como se se tratasse de uma triagem de casos, uma prova - algo que, embora seja mais parecido com o tipo de associação que encontraríamos numa análise padrão, chama atenção pelo encontro de fantasias da ordem da cultura, já que é sempre difícil para nós retirarmos a instituição de seu contexto, coisa que temos a tendência a fazer em nossos consultórios particulares.

Em seguida dá-se início à psicoterapia em sentido estrito, na qual nas primeiras sessões é estabelecido um contrato entre o usuário e o terapeuta. Esse contrato envolve o preço das sessões, a duração, o período de férias anual e o tempo do tratamento com o terapeuta. Como muitos sabem, o tempo do aprimoramento na Clínica do Sedes é, de início, limitado a um contrato de dois anos, podendo ser estendido por um período e depois estendido ainda com a mudança de estatuto do terapeuta, de aprimorando para voluntário. O que se apresenta para o paciente, no entanto, e de saída, é um período menor do que dois anos, já que é comum demorarmos em torno de um a dois meses para começarmos a receber pacientes. Também é comum esclarecermos aos usuários que, ao fim desse período, conversaremos a respeito do rumo de seu percurso terapêutico. Até recentemente não havia limites para os ciclos terapêuticos de cada usuário, mas isso mudou, tendo se restringido a dois ciclos, o que encontra protesto dos pacientes antigos.

O percurso do terapeuta também possui suas etapas prévias, uma provação. Contudo, vamos tomá-lo de sua entrada numa das equipes clínicas e num dos grupos de supervisão. Cada um desses espaços serve a propósitos distintos. Embora também discutamos os casos em reunião de equipe clínica, o foco desta se coloca mais nos aspectos do equipamento da Clínica do Sedes, questões de pagamento, atrasos, questões de enquadre, psiquiatria, e passagem de casos, por exemplo. É interessante notar que no Sedes recebemos o prontuário e um relatório do paciente antes de o escutarmos, o que implica que o ideal do terapeuta sem memória parece assombrado pela memória institucional, guardiã de seus usuários. Não sei dizer se o mesmo ocorre em todas as equipes - creio que sim. No caso de minha equipe, nossa coordenadora lê os últimos relatórios antes de fazer a passagem do caso para um terapeuta. A incidência clínica disto deve ser clara para qualquer um, embora ainda ouvimos muito que os terapeutas prefiram não ler para que isso não atrapalhe a sua escuta - pura.

Tive a oportunidade, neste dispositivo específico, de fazer algumas experiências sobre esse suposto ruído, já que dos seis pacientes que tratei, mesmo que numa consulta única, cinco são/eram habitués do Sedes. Há aqui uma escolha do terapeuta diante de seus ideais e de um suposto ouro da psicanálise. Havia variáveis conscientes da minha trajetória nessa escolha, mas não deixava de existir uma tensão na relação com o superego da cultura psicanalítica. De fato, o analista vive, no nível da representação, um conflito. A imagem, as hipóteses, muito daquilo que é escrito e teorizado nos prontuários e relatórios não converge com a experiência clínica do novo terapeuta - pelo menos foi assim no meu caso. Um caso bastante ilustrativo. Giovana passou por muitas terapeutas que tiveram que inventar a roda, pois ela não falava. Várias técnicas foram empregadas: desenho, escrita, atendimento pelo WhatsApp. Até o fim do último ciclo a situação permanecia. Atendia-a uma única vez. Em seguida ela foi tomada de angústias porque eu sou homem. Mas nessa única sessão não apenas ela falou como contou coisas da infância e sobre a relação entre sua mãe e sua avó que não apareceram em nenhum dos relatórios - relações que depois utilizei para pensar o manejo institucional do caso. O que havia acontecido? O seu longo percurso terapêutico surtiu efeitos positivos? A mudança de terapeuta? Indo um pouco além, as discussões em equipe clínica que precederam a passagem de caso envolveram até mesmo os efeitos que o sexo do analista poderia ter, o que talvez não tivesse se apresentado se a história clínica da paciente fosse outra e se anteriormente todas as terapeutas não tivessem sido mulheres. Permanece o fato de que essa não é uma experiência única, nos cinco casos o que se apresentou foi uma diferença, embora fosse como se eu já os conhecesse de alguma maneira. Creio que isso seja um fenômeno a ser mais bem estudado caso queiramos manter o melhor de nossos ideais psicanalíticos. A experiência precede a teoria, mas não prescinde dela, principalmente se quisermos combater certa ideologia que grassa sobre nós.

Vou estender um pouco mais o caso apresentado há pouco, pois ele promoveu nesse único encontro a invenção de um construto teórico-operatório de intervenção institucional. Nesta sessão única, a paciente voltou-se para uma infância atravessada pela ausência da mãe, cujo trabalho a afastava por longos períodos, o que a confundia na atribuição do papel materno. Quando tentei rememorar o caso, longe de minhas anotações, tive a sensação de que isso surgiu ou a partir de um ato falho da paciente, ou de um lapso de escuta meu, em que a avó apareceu como mãe. Era esta quem por muito tempo tomou conta dela. O pai, apesar de figurar como alguém próximo a ela no presente, mostrou-se também ausente em suas rememorações de infância - ausente ou indiferente. Quando soube que ela não quis mais retornar às nossas sessões, que havia contatado a terapeuta anterior e não queria mais falar comigo, mas trocar de terapeuta, tive um insight: não falava Giovana sobre a relação da troca de terapeuta? a troca das mães sob os auspícios da avó? e um pai que talvez precisasse se manter indiferente, uma relação amistosa, mas alguém que logo seria afastado? Ela havia expressado de forma bastante contundente que não me veria novamente, o que numa situação standard limitaria ou me colocaria outro tipo de matéria na qual operar. Propus a seguinte intervenção: quando ocorrem conflitos ou impossibilidades entre terapeuta e paciente, a Clínica do Sedes inventou um dispositivo de mediação institucional que chamamos de reposição institucional, em que o coordenador(a) da equipe clínica faz uma intervenção para que, na medida do possível, o processo terapêutico possa prosseguir. Pois bem, propus que a coordenadora da minha equipe clínica interviesse como avó, essa representação que surge acima das mães que vão e voltam. As duas ideias que me vieram foram as seguintes: destituir a avó, representante do Sedes - tratava-se, vale dizer, de uma paciente que estava há 14 anos na Clínica, uma paciente para a qual uma de minhas funções terapêuticas era encerrar seu processo na instituição; em segundo lugar, interpretar a transferência de um lugar institucional, isto é, aparecer como coordenadora, encarnar a instituição para atuar na cena como uma instituição interpretante. O que me importa nessa pequena vinheta de trabalho institucional é apresentar a construção de um pensamento e de um modo de comunicação - puramente operatórios, cuja verdade não está em causa senão enquanto criação de uma possível ação terapêutica a partir do encontro de muitas cartografias -, a construção de um pensamento, portanto, que não surgiria em nenhum outro lugar, tanto o terapeuta quanto a paciente estando atravessados pela instituição que habitavam naquele momento.

Se tomarmos como ponto de partida para uma analogia a proposição de que o enquadre analítico tenha de ser construído, os tratamentos no Sedes também o são. Vamos tomar agora outra face do prisma, o dinheiro ou o preço das sessões. Em primeiro lugar, vale retomar uma história recente. Até pouco tempo atrás esta instituição construiu sua imagem como a de uma clínica que acolhia as pessoas de acordo com suas capacidades financeiras, ficando famosa por atender gratuitamente e sendo mesmo procurada por muitos capazes de pagamento a fim de serem atendidos isentos desse suposto ônus. Sobre a isenção, vale retomar a circulação entre nós terapeutas e coordenadores de um argumento interessante, político e institucional, uma intervenção que faz parte da nossa cultura institucional para os casos em que os pacientes se sentem de alguma forma humilhados por ela, adquirindo favores abusivos, etc. Trata-se de dizer ao usuário sobre seus direitos enquanto aquele que paga impostos ao governo e os vê retornando no serviço de uma instituição filantrópica que abate seus próprios impostos justamente para que possa ofertar terapia. Em nenhum momento dos meus tratamentos me veio esse tipo de intervenção. O que narro tem a ver com a discussão de casos de colegas e a construção de um instrumental coletivo. Obviamente essa técnica ativa, acolhendo o questionamento dos terapeutas, seria mero bronze psicanalítico. Não saberia dizer se em cada caso que escutei se trabalhou a transferência e as fantasias dos pacientes. Nem todos eram tratamentos psicanalíticos. O que quero chamar atenção é para uma intervenção que advém de uma cultura institucional, um hábito, uma invenção, que incide sobre a gratidão ou a agressividade de um modo menos reflexivo que a interpretação e que muda a relação de contrato liberal e vincula o usuário ao Estado, permitindo circular os afetos de outra maneira. Retomando: a questão da gratuidade e da imagem da instituição também afetam os pacientes, que agora são recebidos com a notícia de que o Sedes já não possui mais a capacidade para receber usuários que paguem a mais pelo serviço, isto é, além do que já pagam para o Estado e que por vezes precisamos ressituar.

Isso significa dizer que desde o telefonema ou e-mail de interesse o preço já começa a ser negociado. Da mesma forma que as recepções assumem a função de reiterar uma questão subjetiva, elas também questionam os ingressantes sobre os valores que disponibilizam para o tratamento. Ao terapeuta cabe assinar um contrato já iniciado, um contrato em processo que vincula ambos à instituição. Estou tentando descrever como a partir de certos mecanismos móveis configura-se o fundo na maioria das vezes silencioso e silenciado do tratamento no Sedes. Fundo movediço e tensionado. O enquadre, como deve estar ficando claro, é um não-processo apenas relativamente. Diferentemente do enquadre standard, a sua história, o seu tempo, incidem mais sobre os tratamentos e seus elementos.

Adentremos, então, num dos mal-estares que se instalam no processo, a relação dos aprimorandos e os pagamentos. Lembro-me de quando contei ao meu supervisor do terceiro ano do Sedes de algo que ficava travado num dos tratamentos que acompanho na Clínica do Sedes. Essa paciente não pagava de próprio punho, mas com seu esforço escolar recebia o auxílio de uma organização que apoia jovens de classe baixa e bom rendimento escolar, e tem um acordo com a nossa instituição. Essa paciente faltava bastante. De início, eu achava as faltas boas por diversos fatores, um ideal de perfeição e desempenho que apareciam na transferência, ela estar lá por causa da mãe, como se representasse a mãe, fatores que pudemos elaborar em conjunto; nesse período, estas faltas produziam nela uma culpa enorme. Num segundo momento, as faltas se instalaram com indiferença, se estabilizaram. É neste momento que a ausência de pagamento começou a me incomodar. Quando contei isso ao meu supervisor, ele perguntou um pouco surpreso: "Mas você não recebe por esses atendimentos?" A paciente, por sua vez, achava que me pagava e estava tudo certo. Pensamos a contratransferência da situação no momento de sua análise, mas a dupla determinação da crença de que eu estava sendo restituído como funcionário ao mesmo tempo em que eu não estava não nos permite, creio, reduzir tudo ao lugar de resto em que eu era colocado. Logo após essa supervisão a questão se resolveu por uma contingência da situação da assistência que ela recebe: o programa passou a depositar o dinheiro em sua conta e ela mesma passou fazer o pagamento; as faltas se interromperam completamente e o processo como um todo se alterou. Como recebem então os aprimorandos? A Beatriz, amiga e colega de supervisão, reportou um mal-estar semelhante diante de um paciente que, no atendimento online em que somos aqueles que cobram e recebem os comprovantes mediados por links de pagamento, agradecia como quem a estivesse pagando, o que ela resolveu para si com uma alteração em seu modo de expressão, agradecendo explicitamente o envio do comprovante. Outra amiga me narrou que ela não tinha esses problemas, seus pacientes estavam cientes da função que ela desempenhava na instituição. Esses não-ditos não nos colocam aí em posições institucionais estranhas cujos ruídos são sentidos por nós terapeutas? Ruídos de nossos ideais, de uma imagem padrão de psicanálise e da construção de um símile desta situação dentro de uma instituição? Mas também ruídos materiais, reais se quiserem, que nos atravessam. No meu caso, eu deveria considerar que era tudo contra-transferência? A minha ênfase é claramente na totalidade das afecções, sem descartar a determinação exercida pela contratransferência do caso.

Um último vislumbre. Eu tinha falado sobre a duração dos tratamentos. Meu contrato se encerra daqui duas semanas, consequentemente também minha contribuição nos tratamentos que assumi, embora tenha decidido em conjunto com minha equipe estender um desses tratamentos. Dois de meus pacientes serão encaminhados para destinos fora da Clínica do Sedes, pois cumpriram seus dois processos terapêuticos na instituição. As finalizações são um drama vivido nas análises bem como nos dispositivos institucionais. É uma experiência comum, uma cultura institucional, o drama do encerramento do contrato. Antes de cada terapeuta realizar o seu, ele provavelmente assistiu algum conflito, ora implícito, frio, ora aberto, entre terapeuta e coordenador(a) de equipe sobre a possibilidade ou impossibilidade de continuar seu atendimento fora do Sedes, de levar consigo seu paciente. Mal entendidos, uma imagem que nos precede e diz que aqueles que iniciam sua formação e vão para a Clínica podem "levar os pacientes" para sua clínica privada, a insegurança trabalhista dos iniciantes, a transferência e a contratransferência, tanto no tratamento quanto institucionais, podemos reunir muitas variáveis que afetam essa situação. A cena é estruturada, estabilizada, possui uma armação que perdura no tempo pelo que escuto de colegas mais antigos. Paciente e terapeuta se enamoram, gostam do trabalho um do outro, mas o usuário é do Sedes, que, segundo consta, acumulou experiências sobre a frustração que é levar um paciente que pode pagar muito pouco ou exige muito de um terapeuta na clínica privada - muito pouco absolutamente relativo e que mostra talvez pouco acúmulo para as novas experiências dos analistas, tanto novas experiências militantes quanto para a nova precarização de nosso trabalho -, mas acúmulo também de experiência de pacientes que saíram e em seguida decidiram voltar, colocando a instituição numa posição difícil para reabsorvê-los - criando mecanismos para que a decisão seja da ordem do desejo, por exemplo: após sair um paciente só pode tentar nova terapia no Sedes passado um período de um ano. Estou contando é claro dos casos tensos, dos conflitos: há dessas relações que têm um final feliz, aquele tipo de felizes para sempre da qual pouco ou nunca ouvimos de suas consequências e, portanto, não podemos julgar. Há também a situação inversa em que o terapeuta quer sair, mas a instituição o segura, considera que o caso necessita de uma prorrogação. Ora, essa tensão se arrasta por semanas, ocupa as reuniões como uma pressão na nuca, os encerramentos precisam ser adiados, é preciso decidir nesse momento de quem é a maior transferência, se o analista é mais um representante institucional ou ganhou estatuto de sujeito na série complementar das transferências. A fim de ser consequente com o tipo de análise que realizei até aqui e reduzir esquematicamente a miríade de determinações, proporia que pensássemos que, neste caso, talvez as variáveis centrais sejam o deslocamento das funções institucionais, o deslizamento da transferência como se na vida isso funcionasse como um tipo de empréstimo financeiro - ora, no fim parece que ele cobra juros - e a construção ainda de um enquadre padrão em que pesa um ideal muito grande numa situação fora do crivo, na tentativa de fazer um sistema aberto se comportar como sistema fechado. Com isso caberia pensar também os casos daqueles que, de certa forma, talvez não pudessem estar fora de uma instituição.

Curiosamente, ao apresentar a minha posição sobre um de meus casos, vivi algo distinto: minha coordenadora perguntou se não havia em mim o desejo de levá-lo para a minha clínica privada, pegando-me de surpresa. Eu mesmo talvez tenha bloqueado esse tipo de possibilidade.

Não vou encerrar sem antes falar dos aspectos positivos e ativos desse tipo de intervenção: o paciente que vive no drama institucional, numa transferência bastante acentuada, a sua fantasia de um pai sedutor, de seu papel de sustentáculo do desejo do pai e que talvez tenha a chance de elaborá-la de outra forma; a paciente que expõe uma fuga diante dessa decisão, como se o Sedes fosse mais um de seus objetos montanha-russa, como ela os nomeou. Uma moldura, portanto, a ser melhor pensada nos conflitos que gera e nas contingências que cria. Escolhi ângulos específicos para ventilar algumas vivências com a moldura viva do Sedes, que permite a nós terapeutas bastante manobra também, como acho que pude comunicar a vocês. Talvez formulado assim a questão me agrade mais do a que pensar como um metaenquadre, para falar como Kaës - ainda que os ecos da formulação de Green atrapalhem um pouco. Outras contribuições, contudo, se fazem necessárias, pois sabemos muito pouco das pressões da equipe de contratados e das dificuldades dos trabalhadores do equipamento.





COMENTÁRIO CRÍTICO



PAULA MANDEL [6]



Boa noite! Em primeiro lugar, agradeço a oportunidade de estar aqui, matando um pouco a saudade do Sedes. Saudades dos seminários, supervisões, reuniões de equipe, dos atendimentos na Clínica, dos colegas. A gente sai do Sedes, seguimos nosso caminho de estudo, de clínica, de transmissão, mas o Sedes fica na gente. Fica um laço. Uma filiação.

Esta clínica que se repensa, que promove este tipo de evento é uma clínica que começou na vanguarda e segue contemporânea. É um prazer poder comentar as produções e dar início ao debate.

Queria ressaltar a qualidade dos 3 trabalhos, o aprofundamento técnico, a potência da escrita, a originalidade. Fizeram a clínica reverberar e vibrar em seu cotidiano e também em sua faceta ideológica mais profunda.

Enquanto eu refletia sobre os trabalhos, uma palavra não parava de pulsar. E nós, psicanalistas, sabemos o valor de tudo o que pulsa. ADAPTAÇÃO, com seu correlato ADAPTABILIDADE.

Bem, os textos dialogam entre si: é possível traçar uma linha temporal do início ao fim de um atendimento institucional. O início, com o contrato, passando pelas questões transferenciais (entre a dupla e entre o analisando a instituição, transferência cruzada), o manejo, intervenções institucionais e o último trabalho com o fim de análise, em contraposição à finalidade da análise.

Questão: Aqui na instituição só podemos pensar em fim após o cumprimento da finalidade? Isso se cumpre na prática?

Os textos exaltam os efeitos do bom uso da adaptabilidade. E, com isso, fui lembrando de Ferenczi, com a elasticidade da técnica, de Freud, no que diz respeito ao tempo limite de tratamento como agente potencializador das ligações e representações. Lembrei principalmente de Roussillon, que em seu Manual da prática clínica em psicologia e psicopatologia destaca que o dispositivo analítico deve proporcionar a apropriação subjetiva, a subjetivação. Para isso tem que se adaptar à linguagem do paciente.

Questões que emergem: contrato, enquadre, dispositivo, nada disso é possível sem o estabelecimento de um bom enquadre interno do analista.

Sempre bom lembrar que o analista não é escravo do enquadre, mas o enquadre sim está a serviço do processo analítico, da transferência e das transformações possíveis com a função simbolizante.

Se antes tudo isso já valia para o analisando e suas necessidades, após a fatídica semana de março de 2020 houve o incremento gigante e apoteótico da pandemia. O vírus, o medo, a ameaça, o isolamento para cuidar de si e do outro, as mortes e o luto: fatores independentes ao processo analítico de cada analisando, mas, mesmo assim, fatores que nos obrigaram a usar e abusar deste significante ADAPTAÇÃO.

Desafios de sempre X Novos desafios

A pergunta que se desenhava no início da pandemia: É possível uma análise remota? Se esse expediente já existia de modo excepcional - pelo menos para mim, que experimentava esta possibilidade de modo pontual - bem, um ano e meio depois já podemos responder coletivamente que sim. É possível.

Quais os novos desafios com o setting virtual?

Independentemente disso, ou por causa disso, os desafios da Clínica do Sedes continuam.

Fica a pergunta: quais as adaptações necessárias e possíveis no pós pandemia? Sim, este momento vai chegar!

Inclusão? Ainda não encontramos na Clínica uma equidade racial, terapeutas e pacientes negras, negros, indígenas ainda são minoria.

Formação de rede, incorporando Acompanhamento Terapêutico?

Um projeto de clínica ampliada, um espaço clínico integral, como um clube?

E agora estamos ansiosos para os debates!





[1] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, professora e supervisora no Curso de Psicanálise.

[2] São Paulo: Narrativa Um, 2006.

[3] Aluno do Curso de Psicanálise.

[4] Alunos do Curso de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.

[5] Aluno do Curso de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.

[6] Aspirante a membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.




 
 
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