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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    37 Abril 2016  
 
 
NOTÍCIAS DO DEPARTAMENTO

EM HOMENAGEM A PEDRO GABRIEL GALHEIGO COELHO


PROFESSORES DO CURSO DE PSICANÁLISE

 

Ao Pedro

Clarissa G. da Motta

 

Que conheci adolescente, vi se tornar Smurf e admirei sua construção como Pedro.
Mágico da transformação, me ensinou sobre coragem e que mudar pode ser bom.
Transformou raiva em afeto,
sarcasmo em ironia provocativa,
críticas ranzinzas em debates e luz,
frieza inglesa em carinho e porosidade.
 
Criador de pontes, me ensinou que sozinho a vida e a clínica são tão mais pesadas!
Me apresentou novas séries, novos amigos, novos ângulos para olhar a psicanálise.
Compartilhamos a visão que é preciso brincar seriamente para se apropriar da clínica e da teoria
e que elas só têm graça se são autênticas, encarnadas, construídas nas entranhas...
E eu lhe dizia que não se faz isso sem pitadas de dor.
 
Amante realizado, me ensinou que para se entregar é preciso se abrir e que isso pode doer.
Me contou que os riscos e perigos do amor são preciso viver
e que a vida se faz na entrega, na troca, no se deixar invadir pelo outro
e também nas discordâncias, nos enfrentamentos, nas lutas.

Amigo querido, chegou arredio à cidade grande, ávido por amizades e reconhecimento.
Chato, pessimista, desengonçado e perdido nas sutilezas do se relacionar,
se tornou tão amado e admirado, fomentador de vínculos e encontros.
Psicanalista autêntico, clínico generoso.
 
E depois de tanto encontro e desencontro, faculdade, turmas e Sedes, nós nos despedimos.
Não totalmente, ainda o encontro dentro de mim e de tantos outros.
Dizem que carregamos conosco as pessoas queridas que partiram; pois bem, carregarei um pouquinho de sua luz, de suas provocações, de seu grande coração.
E continuarei a te mostrar a transformação em mim, pois a adolescente arisca que você conheceu muito mudou em tantos anos, transformada também nesse intenso jogo de trocas que foi nossa amizade.
 


FETICHISMO: UM CONCEITO EM DOIS TEMPOS [1]

PEDRO GABRIEL GALHEIGO COELHO

 

Palavras-chave: Fetichismo, Perversão, Diagnóstico

Esta monografia busca fazer uma revisão do desenvolvimento da teoria acerca do fetichismo na obra escrita freudiana, com foco especial para as alterações que ocorrem e as consequências destas para a psicanálise clínica. É comum vermos um paciente que apresenta comportamentos sexuais fetichistas ser nomeado um paciente fetichista, e pensado clinicamente a partir do referencial diagnóstico da perversão. No entanto estas são duas coisas distintas, ambas aparecendo por sua vez no texto freudiano. Nos Três Ensaios sobre a Sexualidade (1905) Freud descreve o fetichismo principalmente no viés do comportamento sexual (especialmente se pensarmos apenas o texto original, sem as notas de rodapé acrescentadas posteriormente), enquanto que em Fetichismo (1927), o foco está na dinâmica psíquica por trás do funcionamento fetichista. Pouco há nas Obras Completas descrevendo como vai se fazendo este aprofundamento teórico, o que pode nos levar a pensar que se trata da mesma coisa, porém aí se corre o risco de cometer um erro de aplicação de teoria sobre a clínica. Afinal, se na psicanálise clínica prezamos a necessidade de pensar o sintoma na singularidade de cada sujeito, elaborando o diagnóstico a partir da escuta psicanalítica e nunca a partir do fenômeno manifesto, como podemos sustentar que o comportamento sexual fetichista (sintoma/fenômeno) implica necessariamente num funcionamento fetichista perverso (psicodinâmica/diagnóstico)? No fim do texto apresenta-se a questão da associação freudiana entre homossexualidade e perversão como sendo um problema similar.

 

Fetichismo: Um conceito em dois tempos

Introdução

O que é o fetichismo? O senso comum sugere como resposta uma série de comportamentos sexuais, ou seja, algo a nível de fenômeno. Já quem conhece a teoria psicanalítica provavelmente pensará em perversão, recusa da castração e cisão do eu. O fato é que, de certa forma, ambas as definições se encontram no texto de Freud, sendo pouco elaborada a articulação entre elas.


Esse conceito tem em Freud apenas dois textos que o abordam em maior detalhe. O primeiro é Três Ensaios Sobre a Sexualidade (1905), que foca no investimento sexual de objetos inanimados ou partes de corpos, pensado como algo que aparece no espectro do normal mas que, quando torna-se muito fixada e exclusiva, passa a ser patológica. O segundo é Fetichismo (1927) em que ele aparece como a patologia-modelo de um modo de funcionamento psíquico, com uma nova e particular forma de defesa contra a angústia de castração: a recusa. O que não fica claro na obra publicada de Freud é como se dá essa mudança e quais as suas consequências. Para tentar responder estas perguntas, precisamos antes rever os textos e o caminho que os liga.
   
O fetichismo em 1905

De imediato um aspecto chama atenção: como pode se extrair tanta teoria metapsicológica de algo que à primeira vista seria apenas uma escolha de objeto? Afinal, quando descreve os componentes da pulsão em As Pulsões e seus Destinos, Freud diz que o objeto é justamente o mais variável na pulsão [2]. A definição breve e direta do fetichismo em Três Ensaios seria “[quando] o objeto sexual normal é substituído por outro que guarda certa relação com ele, mas que é totalmente impróprio para servir ao alvo sexual normal” (no caso, “normal” seria o sexo heterossexual com penetração genital [3]). Como nas outras análises que Freud faz das “aberrações sexuais” no primeiro dos três ensaios, o fetichismo é tratado como mais um comportamento no espectro da sexualidade humana que, até certo ponto, encontra expressão em todos nós [4], uma vez que nossa sexualidade não está atrelada à função reprodutiva. Portanto, assim como no caso das tendências bissexuais, do prazer de olhar do voyeur e do prazer na atividade ou na passividade do sadomasoquismo, um pouco de fetichismo seria reconhecível em todos que, por exemplo, consideram como objetos sexuais uma peça de roupa íntima ou os seios de uma mulher. Isto seria consequência da supervalorização do objeto sexual através da qual o investimento sexual não permanece restrito à genitália da pessoa, propagando-se para “todo seu corpo e [...] todas as sensações provenientes do objeto sexual” [5]. No entanto, para a maioria das pessoas esta “sexualização por associação” age como um adicional ao ato sexual normal, um estimulante, enquanto que no fetichismo ela vai progressivamente se impondo a este como condição. Assim, haveria casos de fetichismo em que o alvo sexual normal permanece inalterado, porém “enfraquecido” [6], e dependente da presença simultânea de elementos alheios a ele (cabelos de certa cor, por exemplo). Já no outro extremo do espectro, estariam os casos de “fetichismo patológico”, nos quais o fetiche substitui por inteiro o alvo normal, desligando-se da associação a uma pessoa e fixando-se apenas no fetiche em si. Portanto, o fetichismo é caracterizado não apenas por uma escolha objetal particular (atração sexual por ruivas) mas sim por uma substituição objetal, fixada e exclusiva, que dispensa por completo o alvo sexual normal.
 
Desconsiderando-se as notas de rodapé acrescentadas posteriormente (que já adiantam desenvolvimentos teóricos que veremos adiante), nos Três Ensaios Freud oferece apenas a seguinte explicação para o fetichismo: seria a “influência persistente de uma impressão sexual [precoce]”, por meio de uma cadeia associativa geralmente inconsciente entre o fetiche e o objeto sexual normal [7]. Não há nenhuma menção a que processos estariam por trás dessa operação.

Apesar de com o tempo a psicanálise ir abandonando esta compreensão desenvovimentista, no início entendia-se que o desenvolvimento psicossexual terminaria ao alcançar um ponto “normal” ou “mais desenvolvido”. O grupo das perversões recebe este nome não bem por ser anormal ou imoral, mas por “perverter” a função sexual normal no indivíduo, sendo justamente a sexualidade infantil pré-genital denominada perversa polimorfa. Assim, a teoria sugere que o que é da ordem da perversão seria um resquício da sexualidade primitiva que não se desenvolveu completamente.

Antes de, no entanto, já passar para a segunda definição do fetichismo em Freud, vale a pena antes acompanhar Safatle no trabalho que faz de reconstruir a ponte entre 1905 e 1927, que não aparece nas Obras Completas. Assim, poderemos entender melhor o que leva Freud a mudar o estatuto teórico do fetichismo como faz, e as consequências desta alteração.

Os “elos perdidos”


Para reconstruir o desenvolvimento da teoria freudiana do fetichismo, Safatle nos guia por três momentos: O primeiro é em 1909, quando Freud apresenta um caso de fetichismo na Sociedade Psicanalítica de Viena; o segundo, em 1910, quando faz breve menção ao fetichismo no texto sobre Leonardo da Vinci; e o terceiro, ao longo desse período, é o desenvolvimento da teoria do complexo de castração e de sua importância como elemento estruturante do desenvolvimento sexual.

A apresentação na Sociedade, preservada na forma de minutas recuperadas e na correspondência de Freud com Karl Abraham, traz o que Safatle considera as primeiras contribuições originais de Freud à teoria do fetichismo [8], na forma da teoria do recalcamento parcial. Esta evolução é acrescentada aos Três Ensaios em 1910 por meio de uma nota de rodapé, e consiste em uma variação da operação defensiva empregada pela neurose. Este processo fica melhor ilustrado através do caso que Freud apresenta: Trata-se de um jovem que era sexualmente impotente e que só sentia atração por mulheres se estivessem vestidas “de maneira ideal” [9], incluindo assim um fetiche por pés e botas. Segundo sua análise, teria apresentado várias atividades coprofílicas na infância, incluindo um prazer em sentir o odor que ficava entre os dedos dos pés (o prazer em odores ruins teria uma associação direta com o prazer anal). Para Freud era interessante como este sujeito tinha estabelecido como objetos sexuais na vida adulta coisas que, na sua infância, possuíam uma ligação direta com pulsões parciais (o prazer olfativo anal nos pés e botas e o prazer escópico de ver sua mãe se despindo), porém que posteriormente tinham perdido justamente aquilo que os ligava a estas pulsões. Depois de um período de latência onde estes comportamentos desaparecem, o desejo emerge em direção a pés e sapatos que não eram mais malcheirosos mas sim lindos e limpos; semelhantemente o prazer em ver a mãe nua transforma-se num investimento libidinal em roupas também idealizadas.

Para Freud, por trás desta evolução estaria um processo de recalcamento parcial da representação, ou seja, o fetichista cliva o “complexo representacional” ligado ao objeto-fetiche, de forma que se torna inconsciente justamente aquilo que permitiria uma associação à satisfação da pulsão parcial. Diferente da conhecida operação defensiva das neuroses, em que o afeto é reprimido e a representação é recalcada (como um todo), no caso do objeto-fetiche o afeto (na forma destes prazeres parciais) é também reprimido, mas apenas parte da representação seria ocultada da consciência, enquanto aquilo que “sobrevive” ao recalcamento acaba sendo fortemente idealizado. Este processo de recalque parcial associado à idealização seria particular ao fetiche, tornando este um objeto único do ponto de vista teórico. Já não se trata mais de pensar o fetichismo como a simples sobrevivência da perversão polimorfa da infância na vida adulta, não era apenas uma interrupção no processo de desenvolvimento sexual e o objeto não é simplesmente um objeto parcial. Seria como que uma solução de compromisso diante do primado do genital, ao mesmo tempo acenando para a unificação das pulsões (através do recalcamento de tudo que é da ordem da pulsão parcial), porém sem dirigir de fato os investimentos libidinais ao alvo sexual normal (o sexo genital heterossexual).

Nesse mesmo período pós-1910 também estão sendo elaborados novos conceitos centrais à psicanálise, que afetarão sumamente a teorização final do fetichismo. A teoria sexual infantil sobre a universalidade do pênis já aparece cedo, e o complexo de castração, especificamente, é enunciado pela primeira vez em 1908 [10], mas ambos ainda estão longe de terem a centralidade e importância que vão adquirir dentro do complexo de Édipo e da 2ª tópica. À medida que Freud vai elaborando melhor estes conceitos, temos que a organização pulsional na fase fálica e o consequente investimento narcísico no falo torna este “uma parte essencial da imagem do ego” da criança [11], de forma que a ameaça a ele será sentida como uma ameaça à própria integridade egóica, fazendo com que o complexo de castração vá se tornando um dos alicerces principais do desenvolvimento psicossexual. Tanto é que Laplanche e Pontalis propõem que a “nosografia psicanalítica [tome] (...) como um de seus eixos principais de referência as modalidades e avatares do complexo de castração” [12]. Quando já por volta de 1920 este complexo é articulado ao complexo de Édipo e colocado como parte essencial da construção das diferenças sexuais, a castração passa a figurar como uma das principais fantasias originárias, ou seja, passa a ser “uma das faces do complexo das relações interpessoais onde se origina, se estrutura e se especifica o desejo sexual do ser humano” [13]. 

Está montado desta forma o panorama teórico que permite (talvez fosse melhor dizer determina) a formulação final do conceito de fetichismo. O que em 1905 aparecia como uma simples escolha objetal, pervertendo o alvo sexual genital em favor de uma fixação outra, se torna uma resposta a toda uma travessia do desenvolvimento psicossexual que àquela época simplesmente não figurava na teoria psicanalítica. Mesmo assim, não demorou tanto para que a castração ganhasse um lugar na teoria do fetichismo, como veremos em Uma recordação de infância de Leonardo da Vinci, já em 1910.

Em Uma recordação de infância... Freud toma o famoso artista como modelo para pensar uma configuração pulsional particular, no caso a assexualidade, que através da sublimação ocultava uma possível homossexualidade. Para tanto, ele tece importantes reflexões sobre as fantasias sexuais infantis acerca da universalidade do falo, a subsequente ameaça da castração e a crença infantil na mãe fálica, não-castrada. O que este texto tem de relevante ao estudo do fetichismo está num breve parágrafo em que Freud faz a seguinte análise:

“A atração erótica que parte da pessoa da mãe culmina logo num anseio pelo genital dela, tido como um pênis. Com a posterior descoberta de que a mãe não possui um pênis, tal anseio frequentemente se converte no oposto, dá lugar a uma repulsa que nos anos da puberdade pode se tornar causa de impotência psíquica, misoginia e permanente homossexualidade. Mas a fixação no objeto que foi ansiosamente desejado, o pênis da mulher, deixa traços indeléveis na vida psíquica do garoto, que passou por esse trecho da pesquisa sexual infantil com particular intensidade. A adoração fetichista do pé e do sapato da mulher parece tomar o pé como símbolo substitutivo do membro feminino que foi adorado e cuja falta é sentida desde então [14].”

Podemos ver aí uma formulação já bastante parecida com a que figurará no texto de 1927: o pênis da mãe como um objeto sexual de enorme investimento e fixação libidinais, que depois foi “perdido”, mas que sobrevive “encarnado” no objeto-fetiche. No entanto, este longo intervalo de 17 anos que há entre Uma recordação... e Fetichismo sugere que havia a necessidade de amadurecer ainda a teoria, especialmente a ponto de desenvolver o que talvez seja o intuito principal de Freud no segundo texto: introduzir e formalizar finalmente o conceito de Verleugnung, a recusa, que foi começando a tomar forma a partir de 1924 [15].

O fetichismo de 1927

Chegamos então ao único texto de Freud dedicado especificamente ao tema em questão: como resultado de todo este percurso acima, Freud constrói em 1927 sua teoria final do fetichismo. Nesta, ele revela que em todos os casos que atendeu onde havia uma “escolha objetal (...) dominada por um fetiche”, o que “raramente era sentido [pelos pacientes] como sintoma de uma doença”, “o significado e o propósito do fetiche demonstraram, na análise, serem os mesmos”. O fetiche era sempre um substituto para o pênis da mãe, que assim preservado permitia uma defesa contra a angustiante possibilidade da própria castração. A ausência do pênis das mulheres era percebida, mas a percepção não se traduzia em conhecimento, o indivíduo acreditava tanto nela quanto no seu oposto, “como só é possível sob o domínio das leis inconscientes do pensamento – os processos primários”. Aquilo que é ausente na mulher é transferido para o objeto do fetiche, porém com um “aumento extraordinário de interesse, pois o horror da castração ergueu um monumento a si próprio na criação deste substituto”.

O que muito ocupa o interesse de Freud neste texto, entretanto, é o mecanismo psíquico que permite esta operação, a recusa da castração (Verleugnung). A criação do objeto fetichista é usada como um exemplo oportuno para explicar a capacidade de o psiquismo humano manter duas crenças opostas simultaneamente (neste caso, a recusa e o reconhecimento da percepção da castração feminina), e da consequente cisão que isto provoca no ego. Mais especificamente trata-se de uma defesa contra a realidade externa que incide sobre o psiquismo na forma de uma percepção traumatizante, o que para Freud ajuda a explicar porque os objetos fetichistas não são escolhidos por associação direta ao suposto pênis (raramente são objetos fálicos em si), mas sim por estarem presentes no campo perceptivo logo antes ou simultaneamente ao trauma (por exemplo, a roupa íntima, os pelos pubianos, os pés que seriam vistos logo antes do órgão feminino).

O texto Fetichismo tem apenas cinco páginas e apresenta tudo de forma bastante direta e resumida, pouco falando dos casos clínicos que embasariam a nova teoria. Tomando apenas o que está escrito nele, temos que o fetichismo existe por ser uma defesa contra a angústia da castração pois, em vista da realidade ameaçadora que a percepção da castração da mãe apresenta, o sujeito a recusa e então substitui aquilo que já sabe não existir (o pênis da mãe) por um objeto fetiche. Assim, o sujeito triunfa sobre a angústia de castração.

Tendo no entanto alcançado o fim do nosso percurso, cabe olhar ao início dele com uma pergunta: como fica o fetichismo de 1905 após o conceito sofrer modificações tão profundas?

O que torna esta pergunta relevante é justamente o fetichismo não ser um conceito exclusivo da teoria psicanalítica; ele vem primeiro da antropologia para depois ser incorporado à psiquiatria da sexualidade por Binet (numa definição semelhante à de 1905) e continua até hoje em uso tanto na última versão do DSM (no conjunto das parafilias) quanto no senso comum. Seu uso social costumeiro é o de descrever tudo que se trate de sexualidade envolvendo regiões específicas do corpo ou objetos inanimados, ou de uma sexualidade “ritualizada” que não resulte em penetração, como nas relações de dominação sadomasoquista, ou seja, estamos no âmbito do fenômeno, não no âmbito da psicodinâmica. O problema é que esse uso duplo (de dentro e de fora da psicanálise) muitas vezes borra as fronteiras entre o sintoma e a nosografia.

Se a psicanálise pretende pensar o fetichismo desta forma tão específica, ela não pode mais usar desta primeira definição onde fetichismo é apenas um tipo normal de escolha objetal levado ao extremo, pois isso é arriscar um grave erro de aplicação da teoria. Apesar de Freud dizer que todos os seus casos de fetichismo revelaram ter o mesmo significado, de tal forma natural que ele “estaria preparado para esperar a mesma solução em todos os casos de fetichismo” [16], não seria perigoso levarmos isto para nossa clínica como dogma? Sendo o sintoma resultado de uma produção singular do sujeito, como podemos excluir por antecipação a possibilidade de outros mecanismos psíquicos levarem a sintomas parecidos? No entanto, quando ouvimos falar num caso em que há fetichismo (como conduta sexual, descrita em 1905), não é comum pularmos diretamente para o fetichismo pensado como estrutura, em 1927? Há cinco anos atendo um caso em que há fetichismo, e ao discutir o caso com colegas psicanalistas é comum ouvir uma série de falas, como que clichês teóricos: “fetichismo é perversão”, “o fetiche é o pênis da mãe”, “recusa da castração”, “a lei não se aplica ao perverso”, “perverso não faz análise”, etc.

Outro comportamento sexual que suscita exatamente a mesma questão é a homossexualidade, e vemos aqui uma atitude diferente atualmente. Por mais que Freud considere a homossexualidade uma perversão e elabore uma teoria similar a respeito da relação do homossexual com a castração, chegando inclusive a sugerir que o fetichismo “salva [o homem] de se tornar homossexual” [17], hoje é raro ver alguém fazer uma associação direta entre homossexualidade e perversão, como se faz com o fetichismo. Aquilo que é da ordem do comportamento está separado do que é da ordem teórica. No entanto nem sempre foi assim, e hoje mesmo no Brasil temos instituições psicanalíticas com fortes ligações a igrejas evangélicas (inclusive com pastores psicanalistas), que mantêm a conexão entre um e o outro. Também existem centros de formação na França que julgam homossexuais como inaptos ao trabalho de psicanalista, devido a estas determinações teóricas. Vale ressaltar que segundo Laplanche e Pontalis, para Freud esta não era uma questão moral ou normativa: “a homossexualidade não é anormal porque é condenada, e não deixa de ser uma perversão nas sociedades ou grupos onde é muito difundida e admitida” [18]. E dizer que homossexualidade e fetichismo são perversões não é o mesmo que considerá-los patológicos, Freud mesmo na carta que escreve em 1935 à mãe de um homossexual diz que a homossexualidade “não pode ser qualificada como uma doença e nós a consideramos como uma variante da função sexual, produto de certa interrupção no desenvolvimento sexual” [19].
 
Feitas essas ressalvas, no entanto, não podemos ignorar que esta conexão entre homossexualidade e perversão existe no texto freudiano, assim como a associação entre fetichismo e perversão. É inclusive interessante que não há muito espaço na teoria freudiana para uma explicação do fetichismo sexual em homossexuais, dado que quando ele articula ambos, eles aparecem como alternativas de desenvolvimento quase que excludentes, o que no meu caso clínico não é verdade. No entanto esta primeira conexão foi amplamente desfeita na psicanálise atual, é mais que normal discutir casos de homossexualidade em termos de neurose. Não teríamos que fazer o mesmo com o fetichismo?

O conceito de fetichismo não nasceu dentro da psicanálise, porém no texto de 1927 Freud constrói para o fetichismo um novo lugar dentro da teoria, que nos causa o engano de pensar que ele “é nosso”; o que falta talvez é lembrar que isto não desconstrói o sentido anterior da palavra, que é sim exógena à psicanálise e nunca deixou de ser usado. Assim, podemos até pensar psicanaliticamente sobre o fetichismo de 1905, mas não diagnosticá-lo psicanaliticamente como fazemos a partir de 1927. O diagnóstico em psicanálise parte imprescindivelmente da escuta analítica, nunca do fenômeno.

De certa forma Safatle reconhece este não pertencimento da primeira teoria à psicanálise: “Com a teoria do Verleugnung [recusa], Freud abriu as vias para uma definição estrutural da perversão que não parte mais da descrição exaustiva de sintomas sempre cambiantes. Nada mais adequado a uma clínica, como a psicanálise, que não é uma sintomatologia, mas uma articulação sobre as posições estruturais do sujeito frente a seu desejo” [20]. “Para a psicanálise contemporânea, a perversão não se caracteriza, por exemplo, pela descrição de comportamentos sexuais desviantes em relação à norma sexual. Nem todos aqueles com traços de comportamentos masoquistas, sádicos, voyeuristas ou mesmo fetichistas são necessariamente perversos” [21]. Há fetichismos que não são fetichistas.

Referências Bibliográficas

FREUD, Sigmund. (1905) Três Ensaios Sobre a Teoria da Sexualidade. Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud, vol. VII. Rio de Janeiro: Imago, 1996

_________ (1910) Uma Recordação de Infância de Leonardo da Vinci. Obras Completas. São Paulo: Companhia das Letras, 2013

_________ (1915) As Pulsões e Seus Destinos. Obras Incompletas de Sigmund Freud. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013

_________ (1927) Fetichismo. Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud, vol. XXI. Rio de Janeiro: Imago, 1996

LAPLANCHE, Jean; PONTALIS, Jean-Bertrand. (1982) Vocabulário da Psicanálise. São Paulo: Martins Fontes, 2001

SAFATLE, Vladimir. Fetichismo: Colonizar o Outro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010


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[1] Apresentado no Seminário de Pulsões do professor Atílio Bombana em 2014 e no Colóquio de Monografias dos alunos do curso de Psicanálise em 2015.
[2] Freud (1915) p.25
[3] Safatle (2010) p.47
[4] Freud (1905) p.145
[5] Idem p.142
[6] Idem p.145
[7] Idem p.146
[8] Safatle (2010) p.51
[9] Idem p.52
[10] Laplanche (1982) p.73
[11] Idem p.74
[12] Laplanche (1982) p.76, nota de rodapé ß
[13] Idem p.76
[14] Freud (1910) p.161
[15] Laplanche (1982) p.436
[16] Freud (1927) p.155
[17] Freud (1927) p.157. A mesma ideia aparece em “Uma Recordação de Infância...”.
[18] Laplanche (1982) p.343
[19] Apesar de eu não encontrar a carta publicada no Brasil, ela é bastante difundida e é aparentemente citada na biografia de Freud escrita por Ernest Jones. Vale notar como mesmo em 1935 aparece a ideia de perversão como “interrupção no desenvolvimento” (subentende-se “desenvolvimento normal”?).
[20] Safatle (2010) p.28
[21] Idem p.28
 




 
 
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