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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    48 Novembro 2018  
 
 
NOTÍCIAS DO DEPARTAMENTO

EVENTO: RELAÇÕES E OBJETO NA PSICANÁLISE: FUNDAMENTOS E CLÍNICA


 

ELCIO GONÇALVES [i]


Como afirmava Oswald de Andrade, no seu Manifesto Antropofágico [ii] :

Só a Antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente. Única lei do mundo. Expressão mascarada, de todos os individualismos, de todos os coletivismos. De todas as religiões. De todos os tratados de paz. “Tupi or not tupi that is the question”. Contra todas as catequeses. E contra a mãe dos Gracos. Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago (Oswald de Andrade, 1928).

Para além das artes, também na nossa disciplina as grandes guerras tiveram efeitos transformadores. As relações entre o self, o eu e os objetos passaram por inúmeras metabolizações e desdobramentos teórico-clínicos que, como acompanhamos, através das macro e micropolíticas, na história do movimento psicanalítico, nos mobilizam, agrupam e lutam por espaço e discriminação com respeito às diferenças, ainda hoje.

Na origem a pulsão sexual e as pulsões de autoconservação, que dividiram o primeiro sujeito freudiano entre os investimentos da libido no eu e/ou no objeto; após os traumas de guerra, condensaram-se em pulsões de vida e de morte, trazendo à tona a compulsão à repetição e elidindo, ainda mais, as submissões de um eu dividido, horizontal e verticalmente, entre as exigências do Isso e do Supereu.

Assim como Oswald de Andrade, e a partir de Freud e de uma imensa rede de analistas pós freudianos, me vejo às voltas com o desafio de oferecer, a convite do Boletim Online, um recorte do que sucedeu durante o evento Relações e objeto na psicanálise: fundamentos e clínica, realizado nos dias 03 e 04 de agosto último, no Instituto Sedes.

Inicialmente fomos surpreendidos, na comissão organizadora (composta por Decio Gurfinkel, Leopoldo Fulgêncio, Flávio Carvalho Ferraz, Christiana Cunha Freire e eu), pela rápida adesão; os ingressos se esgotaram nos primeiros dias de inscrição, requerendo uma sala em paralelo com telão, dando mostras do quanto a iniciativa era bem-vinda pela comunidade interna e externa ao nosso Departamento.

O argumento para o encontro antevia a abrangência, a consistência e a profundidade do que viria a seguir: O tema das Relações de Objeto – seja em termos teóricos seja em termos clínicos – corresponde, na história da psicanálise, a um modo de compreensão das experiências psíquicas e afetivas dos sujeitos sempre em um campo intersubjetivo, incluindo aqui a relação transferencial. Ora, as diversas formas como tais “relações” têm sido compreendidas correspondem a modos diversos de conceber o processo analítico. Pretendemos, neste simpósio, reunir psicanalistas com a finalidade de promover um debate histórico-crítico sobre o tema, buscando sempre abordá-lo sob óticas conceituais diversificadas. Inspirados em um princípio propriamente analítico, propomos ainda tratar os dois termos em questão – “relações” e “objeto” – separadamente, a fim de abrir o debate e colocar as questões em uma perspectiva crítica e renovada .

Foi assim que na noite da chuvosa, fria e úmida de sexta-feira (03/08/18) o ambiente foi sendo progressivamente aquecido. A princípio pelo encontro entre amigos e colegas, alguns vindos de outras cidades e estados, e entre abraços e goles de um saboroso caldo de abóbora e gengibre, fomos nos aquecendo e ocupando os nossos lugares.

Christiana Cunha Freire abriu a primeira mesa representando o Conselho de Direção do Departamento bem como a Comissão Organizadora do evento, comentando a auspiciosa iniciativa da proposta original: por a trabalhar as questões teórico-clínicas que se colocam entre a clínica das relações de objeto e a clínica das pulsões, com suas implicações e consequências.

Decio Gurfinkel, como idealizador do evento junto a Leopoldo Fulgêncio, agradeceu o rápido acolhimento da iniciativa comentando o prazer em receber a todos no Instituto Sedes que, com o apoio do Departamento de Psicanálise e as participações do Núcleo de pós-graduação da PUC e da USP, lhes pareceu o local ideal para a realização desse encontro de natureza diversa.



Leopoldo Fulgêncio, coordenador da mesa I Relações de objeto: fundamentos para a Psicanálise, que contou com a apresentação dos trabalhos de Daniel Kupermann, Nelson Coelho e Decio Gurfinkel e a participação de Renato Mezan na função debatedor, comentou em sua fala inicial a expectativa de um diálogo fértil e proveitoso, capaz de ultrapassar, entre nós, as pequenas diferenças.

Nesta mesa, bem como nas que viriam a seguir, pudemos acompanhar, desde o início, a importância da criatividade na produção da ciência e no entrecruzamento transformador dos conceitos e de seus limites entre diferentes escolas e correntes, expandindo e precisando o exercício de nosso ofício, desde a Europa, os EUA e a América Latina, naquilo que nos cabe: a escuta sustentada por um método, uma metapsicologia, sua transmissão institucional e suas consequências clínico-sociais.

Neste sentido Daniel Kupermann pôs em relevo a ousadia criativa e fundamental de Ferenczi que, com suas contribuições à metapsicologia, e nos moldes de Oswald e Tarsila, também promoveu uma virada, no “seu” movimento, com a publicação, em 1928, deThalassa: ensaio sobre a teoria da genitalidade e da trilogia:A adaptação da família à criança;A elasticidade da técnica psicanalítica e O problema do fim da análise, criando recursos e conceitos que inverteram a lógica vigente na relação analista-paciente, viabilizando a análise de pacientes psicóticos, melancólicos e fronteiriços com a introdução de um modelo empático que, contrapondo-se ao modelo interpretativo na clínica, colocou em questão os próprios analistas.

Nelson Coelho, em busca do elo de ligação entre a metapsicologia norteamericana de Thomas Ogden e Christopher Bollas e a virada de S. Ferenczi, pergunta-se até que ponto a tradição suporta a transgressão? Ao tomar o fio de uma parte da história do movimento psicanalítico e da expulsão de Otto Rank e S. Ferenczi (1926), quando ambos teriam migrado para os EUA, de onde o segundo teria retornado para Budapeste dois anos depois (1928), recupera a participação ativa da análise e supervisão de Clara Thompson com Ferenczi e seus efeitos sobre a clínica de Harry S. Sullivan, do que teria resultado a criação de duas das correntes norteamericanas de “psicanálise”, quais sejam: a “psicanálise interpessoal” e a “psicanálise relacional”, perguntando-se por fim, não sem antes elencar aproximações e distanciamentos da psicanálise original com tais proposições: o que, afinal, teria restado, na psicanálise relacional, da clínica das relações de objeto ?

Decio Gurfinkel priorizando A busca de objeto e a especificidade dessa clínica, partiu de uma crônica de Jairo Marques[iii] - A caverna de todos nós - sugerindo que, em situações limite, é fundamental que, além de desejar boa sorte, exista alguém paranos estender uma corda de esperança, capaz de nos retirar do fundo do poço; tema caro ao escritor japonês Haruki Murakami, do qual acabara de ler o livro Crônica de um pássaro de corda. Recuperando a formulação freudiana sobre o princípio de prazer e o encontro com o objeto, fator de “redução de angústia”, Decio nos reintroduziu à clínica, na companhia de Fairbairn, autor para o qual a busca do prazer não deveria ser excluída da busca do objeto e de O. Kernberg (2000) com a clínica sem “pulsões puras” e “inundadas de relações de objeto”, nos remetendo a seguir a André Green e à somatória dos modelos pulsional e relacional, simultâneo e misto. Concluindo que a busca do objeto seria a “matriz primária da vida”, nosso “motor de partida”, pois afinal: qual a busca que origina a vida humana e para onde ela nos lança? Ao perguntar-se assim, complementa: Existirmos, a que será que se destina?

Renato Mezan, considerando que os colegas, em suas falas, já haviam se pronunciado e retomado entre seus conteúdos o que de mais importante haveria a ser debatido pela mesa, optou por falar sobre a influência da psicanálise francesa no país, recuperando seu artigo dedicado à estada deConrad Stein no Brasil [iv] (1988), e articulando-o a dois outros de sua lavra: Três concepções do originário: C. Stein, Le Guen e J. Laplanche (1991) e Plaisir d’enfant (2004), nos quais situa as sementes das formulações e recriações no interior da própria escola francesa, graças à ruptura e aos retornos “singulares” de alguns autores a Freud, e pós Lacan. Recupera ainda duas obras de C. Stein que acredita influenciarem ainda hoje a psicanálise brasileira: O psicanalista e seu ofício e As Erínias de uma mãe: ensaios sobre o ódio (Escuta 1988), realçando o trabalho de um psicanalista engajado, focado nos processos analíticos e na análise do próprio analista e de sua clínica, sobretudo nos seus fundamentos e na eficácia de sua palavra.

Ao final dessa primeira mesa, o debate com o público fez reemergir, dentre outros muitos pontos, a diferença entre a clínica das neuroses e a da busca do objeto, ilustradas por Moby Dick (Melville, H. 1851) e a clínica da dissociação, clivagem e fuga do objeto, a exemplo de Bartleby – o escrivão (Melville, H. 1853).

No sábado (04/08/18) pela manhã, tivemos a segunda mesa: Pulsão, relações e objeto: contraste de concepções na qual se apresentaram Elisa M. Ulhoa Cintra, Ana M. Sigal e Christian Dunker, sobre a qual sugiro a leitura no Blog do Departamento do precioso relato da colega Maria Silvia Bolguese, além de uma visita à eventoteca do Departamento onde encontra-se gravado todo o rico conteúdo das exposições, mesas e debates.



Na tarde do sábado (04/08/18) tivemos a terceira mesa: O eu, o self e a clínica contemporânea com as apresentações de Daniel Delouya, Leopoldo Fulgêncio e Nelson da Silva Jr. e Flavio Carvalho Ferraz como debatedor.



Daniel Delouya, que teve em sua formação um período de participação ativa no Departamento, inicia sua exposição afirmando que o fim é onde a gente começa e recuperando sua participação nas origens fala da publicação de um número especial da revista Percurso sobre o centenário Winnicott (1996), no qual publicou o artigo A pulsão ‘destrutividade’ e o ‘pai’ do self: o acesso ao real em Winnicott , no qual afirmava: em Winnicott, a função do pai não é colocar o bebê numa situação triangular, mas sim provocar o sinal de disparo para que o self comece a se esboçar, a partir do ambiente materno com o qual o sujeito se encontrava fundido . Desde lá se dedica ao tema das apropriações e impropriedades possíveis nas traduções e nas deformações, em geral tendenciosas, a partir da obra freudiana, entre os termos: Self e Eu. O que, segundo ele, para além das dificuldades impostas pela linguagem e suas exigências, na tradução, comporta uma política de afirmação e difusão da psicanálise, em suas diferenças, entre as escolas e as correntes anglo-saxãs francesas e norte americanas, dentre outras.

Leopoldo Fulgêncio inicia compartilhando o seu percurso transferencial, com os amigos que fez e que mantém desde a sua formação no Departamento, e nos prepara, simultaneamente, para uma proposta que reconhece como polêmica pela subversão que comporta, perguntando: qual o sentido, considerando ser a psicanálise uma ciência sobre o humano, de seguirmos utilizando o termo “objeto”, para descrever nossas relações com um “outro”, também humano ? Amparando-se na leitura de Peter Sloterdijk, filósofo alemão contemporâneo, com o qual vem refletindo sobre o distanciamento entre os humanos em suas relações e a tendência aparentemente naturalizada de objetificação do outro como “ meio” (para satisfação de seus fins), pergunta: por que a própria psicanálise teria optado, e se mantido nesse caminho, priorizando os objetos ao invés das relações? Apresentando a seguir as ideias de Winnicott e seu longo percurso de trabalho e pesquisa, através das relações: mãe – bebê que, embora conservando a lógica psicanalítica das relações entre “sujeitos e objetos”, próprios à psicanálise, pôs e manteve em relevo, na sua metapsicologia singular, a prioridade nas relações e não nos objetos. Relações entre um e outro humano criando, simultaneamente, realidades compartilhadas e possíveis.

Nelson da Silva Jr. nos introduziu, através de Foucault, Adorno e de inúmeros outros autores menos conhecidos entre nós, numa profunda e atenta reflexão sobre a dimensão social e política do mal-estar e do sofrimento humano. Recuperando as relações entre os termos Self, ego e a clínica nossa de cada dia, lembrou-nos que as metapsicologias e os conceitos em si mesmos comportam evidências, intenções e consequências macro e micropolíticas. Algo demarcado e delimitado, propositalmente, pela ascendência sobre os sujeitos e seus processos de subjetivação, através das alianças entre: as políticas de Estado, suas formas de gestão da saúde, física e mental; e da ditadura do mercado, com suas estratégias de marketing. Afirmando modalidades e exigências sobre os sujeitos com a produção de patologias e de realizações mais imaginárias que simbólicas, por meio de produtos e de bens de consumo, como formas de reconhecimento pelo Outro da Cultura.

Flavio Carvalho Ferraz na função debatedor recuperou a fala dos colegas desta e das mesas anteriores, frisando a complexidade e a impossibilidade de retomada de todos os pontos fundamentais, sugeridos e levantados pelas exposições, pondo em relevo as diferenças entre as metapsicologias e os seus pontos de convergência e divergência, fazendo-nos lembrar, através das questões que se colocaram na abertura do debate com a plateia, da necessidade e importância de trazermos à luz ao menos parte dos conceitos postos em relevo nas apresentações, com um segundo evento no qual seja possível priorizar as trocas clínicas.

Tendo em vista a imensidão dos aspectos metapsicológicos em questão, visando retratar, ao longo da dobradiça entre dois séculos, e num evento tão fértil e amplo como esse, as diferentes concepções de sujeito e das relações intra, inter e trans objetais a que se propuseram os convidados e expositores, reitero o convite para a visita ao nosso site (Departamento de Psicanálise – Eventos – eventoteca) onde se encontra gravado ao vivo e a cores o conteúdo completo do qual, neste modesto e sintético recorte, busquei introduzir o leitor interessado.

SP 15/09/2018



[i] Psicanalista. Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae. Articulador de Administração e Finanças do Conselho de Direção na gestão 2017-2018.

[ii] Revista de Antropofagia (1928), publicação do Movimento Antropofágico liderado por Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral.

[iii] A Caverna de Todos Nós. Jairo Marques. Folha de São Paulo. 11/08/2018.

[iv] Conrad Stein no Brasil (1988) [Revista Percurso No. 47 (2011)]




 
 
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