MEU ENCONTRO COM FREUD; MEUS ENCONTROS COM FREUD [1]
Rafael Pinto Morais [2]
Como é possível dizer que se vai ao encontro de alguém que já se faz presente há muito tempo? Na infância, descobrimos que tudo já está posto e, por mais que se tente obter um universo todo para si, o mundo faz seus apelos e demandas, irresistíveis para mim. E o que encontro é uma teia cheia de testemunhos da invenção freudiana, com seu vocabulário e sua gramática. Na periferia de São Paulo, não tem frescura, e o que um garoto, filho de imigrantes, gente mais prática do que dada a abstrações, pode saber de psicanálise vem da boca do povo, da tela de TV, de algo que se lê aqui e ali em revistas de banca, do rock ‘n’roll. “Aquele menino perdeu o pai e ficou traumatizado; você não quis comer a tua mãezinha; ontem sonhei que um cachorro me mordia, o que isso significa?; isso nem Freud explica, quem é Freud?, sei lá...”
Os tempos de escola se vão. A namorada que vira psicóloga, psicanalista, mulher... ex-mulher, e que deixa algo ao longo desse e de outros tempos. Com o pé na universidade, minha cabeça também vira, se abre para coisas que só virtualmente haviam se enunciado. Tantas novidades, vozes de tantos autores fazem eco. Em um curso de literatura inglesa, leituras de contos de Edgar Allan Poe suscitam análises. Um professor ensina que há um certo nome para designar a cisão do sujeito, que há certos conceitos que remetem a certas instâncias psíquicas, ordenadas em tensão segundo uma topologia frágil, que o mal-estar é condição irredutível e também tem suas feições históricas. A literatura fala do humano, e é possível ver em tudo isso o que Freud, mais cedo ou mais tarde, pôde tão bem nomear, entender; basta saber, basta saber escutar. Descubro o cinema, descubro mais literatura. E Karl Marx bate à porta. Atendo. Surge a vontade de mudar o mundo depois de começar a compreendê-lo. Lançando-me à euforia dos jovens, olho mais para fora sempre, e negligencio o que se passa dentro. Algo começa a doer, deprimir. Busco, em duas ocasiões, ajuda, mas fujo. Um homem com uma dor é muito mais elegante - e covarde também...
No mestrado, textos de Theodor Adorno, Herbert Marcuse, Max Horkheimer, Walter Benjamin; e sei que Freud paira no ar, ou melhor, fornece a sustentação, é um dos pilares. Vou ao seu encontro também de outro modo, também de modo atravessado, indireto. A dor de existir aumenta, atormenta. Depois dos trinta anos de idade, decido parar de brincar com a vida. É hora de cuidar da vida já que a morte está parida. É preciso ter notícias de meu desejo, saber se quero o que tenho, se tenho o que quero, dar passos, lidar com minhas questões, minhas pequenas porcarias, com o sintoma que é inibição e, ao mesmo tempo, potência. Inicio minha análise: Freud à francesa – literalmente, Freud à Lacan, que não era lacaniano, e sim, freudiano, como bem disse. Duas, três sessões semanais, que variam de 5 a 20 minutos. Investimento. O percurso de uma análise: caminhos, descaminhos, retornos, saltos e atos sedimentados e os que ainda estão por vir. Sobre o divã, a intuição é agora o que ensina sobre a coisa freudiana; mas uma análise é para ser vivida, e não teorizada, não sou Freud. Assim, vivo o que uma análise causa: seus efeitos na vida prática-fenomenal e uma transformação - ou deformação - de caráter ético. E depois de tanto tempo, por si, busco a letra do próprio Freud naquilo que me é mais familiar, a análise da cultura. Freud me explica a guerra, a religião, a massa, a interdição, o mal-estar, o eu, que deve advir...
Um passo atrás ou adiante? Uma outra graduação, a Filosofia. E a suspeita confirmada: de Platão a Jean Paul Sartre, todos explicam sim, e muito bem até, cada um a sua maneira, mas Freud, ainda que não tenha tentado uma ontologia – será? - explica mais e melhor. E eu me coloco à disposição para mais um encontro agora, para ouvi-lo mais uma vez, para ouvi-lo sobre sua clínica. No Sedes, com outros de outros percursos, busco leituras, debates acerca desse saber que fascina e dá conta da complexidade da natureza e das práticas humanas. E não só isso, existe ainda, para mim, sem quaisquer fantasias, outro chamado a outro encontro: o lugar dos que têm a coragem de se deixar de lado, de abandonar a instrumentalização do outro em nome do gozo próprio para oferecer a escuta ao sofrimento alheio. É por aí que estou; é por aí que eu vou...
[1] Escrito para auto-apresentação no curso Clínica Psicanalítica: Conflito e Sintoma, abril de 2020.
[2] Filósofo, professor de literatura, aluno do 1º ano do curso Clínica Psicanalítica: Conflito e Sintoma.