SUSTENTAR UMA CLÍNICA PSICANALÍTICA ON LINE? [1]
CRISTINA BARCZINSKI[2]
O primeiro evento do Departamento de Psicanálise na quarentena, ocorrido no dia 19 de junho, tendo Lia Pitliuk e Marcelo Soares como organizadores, girou muito apropriadamente em torno do atendimento on line - ou atendimento em linha, como prefere Lia Pitliuk [3]. Há anos, a analista vem trabalhando à distância, por diversas razões, entre elas analisantes artistas, que viajam constantemente, ou aqueles que saíram do país ou ainda pessoas acamadas. O envolvimento com esta modalidade foi intensa, pois Lia enxergou nela uma enorme possibilidade de levar e sustentar a palavra do analista, mesmo em condições consideradas tradicionalmente adversas. Nem sempre foi entendida por seus pares, para os quais o trabalho on line foi visto frequentemente com desconfiança.
Quando iniciou esta modalidade, o uso de plataformas virtuais ainda não estava disponível ou não era comum, portanto, começou pelo uso apenas do telefone. A voz do analista seria a presença possível do corpo.
Lia ainda prefere trabalhar só com a voz, no atendimento em linha. Acredita que o atendimento face a face, além de cansativo, faz obstáculo à liberdade de escuta. Ela procura, com o uso do fone de ouvido, se ligar às modulações da fala, como as hesitações, pausas e tons. Conta de um paciente seu que, embora atendido apenas por áudio, provocou na analista uma sensação de falta de ar que estava profundamente associada ao risco de enclausuramento psíquico do paciente. Pensa que este seria um bom exemplo de como os corpos, tanto do analista quanto do analisando, estavam presentes no processo analítico. Lia menciona o conceito de percepção amodal de Daniel Stern, que diz respeito à capacidade de transferência dos bebês de uma modalidade sensorial para outra. Ela afirma que esta capacidade não se restringe aos bebês e que também pode se passar no processo analítico.
Por outro lado, pode haver uma alternância entre o uso ou não da imagem, a pedido do paciente, como uma forma de jogo de ilusão entre analisante e analista - tal como propõe Winnicott -, jogo este que inclusive pode não surgir na comunicação verbal. O fundamental é preservar a associação livre, a capacidade de devanear para que surjam aberturas, linhas de fuga, seja qual for a modalidade de atendimento.
Quanto à dúvida sobre se o atendimento virtual gera maior resistência, Lia não acredita nisto, mas realmente existem analisantes que fazem um uso mais resistencial das dificuldades surgidas no atendimento, assim como poderiam fazer de qualquer intercorrência. De qualquer forma, acredita que a experiência pode ajudar o analista a lidar de forma mais fluida com o meio.
Ainda não podemos saber o que vai acontecer quando houver a possibilidade de atendimento presencial. Vários pacientes de Lia imaginam seguir com o atendimento à distância. Esta afirma que, quanto mais regressiva a situação, mais sente falta da presença. Situações comuns, como problema de conexão ou o silêncio podem aumentar a angústia no paciente. No caso de pacientes graves, como explicou Marcelo Soares, é preciso tecer considerações importantes no caso de adições e fronteiriços, pois estes apresentam dificuldades no contato com a alteridade. Um dos manejos possíveis seria diluir os encontros, reduzindo o tempo de sessão, de forma a garantir uma experiência de continuidade.
Neste momento em que a busca e aprendizado do manejo das plataformas digitais tornaram-se urgentes, para vários campos de trabalho, Lia identifica uma oportunidade única de pesquisa nesta experiência coletiva, vivida de forma repentina e compulsória. Surpreendeu-se com a maleabilidade através da qual analistas e analisantes se adaptaram ao meio e como, depois de um período inicial de reverência, a plataforma pôde “desaparecer”. Para ela, o atendimento em linha se impõe, ao menos como alternativa, mesmo que a pandemia seja controlada. Acredita que esta calamidade sociopolítica ao menos trouxe a possibilidade de uma democratização da psicanálise e será preciso refletir e pesquisar intensamente sobre seus efeitos.
[2] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise, professora do Curso Clínica psicanalítica: conflito e sintoma e membro da equipe editorial deste Boletim.
[3] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise e do Departamento de Psicanálise da Criança do Instituto Sedes Sapientiae, onde é professora no Curso de Psicanálise da Criança.