Em sua nona edição, o encontro contou com a participação de Alcimar Lima, Renata Cromberg e Maria Laurinda Ribeiro de Sousa, que nos legaram escritos instigantes a partir do tema Psicanálise e dobras da palavra.
DAS INFINDÁVEIS DOBRAS E DESDOBRAMENTOS, DAS LINGUAGENS DA NATUREZA À CULTURA
ALCIMAR ALVES DE SOUZA LIMA [1]
Vivemos hoje em um momento sinistro. Uma pandemia surgiu em nossos horizontes e, como consequência, um isolamento entre os homens pulsou e ainda está pulsando, deixando marcas indeléveis em nosso cotidiano e em nosso porvir.
Ainda que contrário à vida, pois esta se caracteriza por forças que estão sempre em contínua e rítmica movimentação, no momento, o isolamento social é a grande arma que temos para evitar que a saúde pública entre em colapso.
O que tudo isso tem a ver com a literatura e com a produção poética?
A pandemia nos trouxe esta questão já vivida outrora por outras gerações.
A natureza profunda da condição humana é a união dos gametas - com todos os seus desdobramentos - para fazer acontecer o ser humano. Neste ponto nodal começa toda a aventura.
Da concepção ao nascimento, muitos e muitos desdobramentos ocorrem. Destas etapas o devir humano se põe em marcha e estas primevas auto-organizações deixarão marcas.
Neste momento um paradoxo se produziu, pois marcas podem nos dar a ideia de fixidez e o que quero expressar aqui é que estas marcas, em perene movimento, carreiam heranças ancestrais. Portanto, a condição humana já contém a linguagem da natureza antes mesmo que a linguagem da cultura fosse capturada e, assim sendo, um outro patamar, como seres humanos, alcançamos.
Esta estranha captura da linguagem cultural é feita quando o sujeito começa a falar com palavras. Porém, a natureza já possuía uma linguagem mais arcaica: a linguagem do código genético.
Quando se fala em zigoto, este nos traz o novo e a ancestralidade. Esta linguagem, que é veiculada (biológica), se junta à outra linguagem e neste movimento aparecerá a cultura.
Nossa linguagem cultural é herdeira dessa outra, muito mais arcaica, que pulsa na natureza.
A linguagem do DNA, que contém quatro moléculas, forma o seu “abecedário”. Adenina, citosina, guanina e timina são moléculas que escrevem um livro biológico, que contam histórias orgânicas de tempos imemoriais. Este livro da natureza tem um ponto de inflexão com o aparecimento do ser humano.
Assim sendo esta linguagem, que provém da natureza, e é composta por moléculas “abecedários”, produzirá embriões, que, em um determinado tempo, produzirão um ser humano, falante. Cada criança que nascer terá o seu genoma, conjunto de seu código genético - sempre diferente uma da outra. Cada bebê é um novo livro que a natureza produzirá: Um livro de natureza genética e que será escrito através de sua imersão na cultura.
Surge a linguagem humana. Surgirá a poética e, no bojo desta, a literatura.
O “abecedário” molecular sofre um grande desdobramento em algum momento da história do universo e este acontecimento propiciará as condições para que a humanidade comece a pulsar no seio da vida. Uma mutação deve ter acontecido e deste “abecedário” molecular pulsa um desdobramento e surge um abecedário de letras que comporão sílabas, palavras, parágrafos, páginas e livros. Livros estes com histórias e narrativas que constituirão nossa cultura.
O Homem traz uma história ancestral, molecular, através de uma linguagem biológica-química e, também, uma história composta de palavras e parágrafos. A história da vida humana contém esta dupla articulação. Surge a linguagem humana propriamente dita. Isso foi possível em algum momento e, hoje, este desdobramento fica encoberto pelas neblinas dos tempos.
Dobras e desdobramentos virão. Cabe ao Homem ter a sabedoria de lidar com eles. Perigos existem, pandemias provindas de vírus primitivos com grandes potências destrutivas sempre serão uma ameaça para a nossa espécie. Os humanos, com sua linguagem cultural, possuem a capacidade de criar medicações e vacinas para superar estas dificuldades e também estas adversidades.
Não poderemos esquecer que os vírus são o início do “abecedário” biológico. Hoje, eles aparecem como ruídos destes primórdios. O homem - explorando a natureza de forma intensa e desenfreada, sem ética e criando imensas desigualdades sociais - permite que estes ruídos da arcaica linguagem biológica- os vírus- apareçam e produzam avassaladores estragos na vida de muitos. Os mais bem dotados, imunologicamente falando, produzem anticorpos e conseguem combatê-los por si mesmos, articulando as duas formas de linguagem. Desta forma as epidemias passam, mas os danos que produzem são muitos, tanto para a saúde física quanto para a mental.
O preocupante é que a espécie humana, que possui pulsões de vida e de morte, lida mal com estas potências. Nossa espécie maltrata o planeta, que é vivo e necessita de cuidados para que a vida possa nele vicejar. O que o homem ainda não percebeu é que sua espécie é frágil.
Estamos percebendo-o com esta pandemia, em que o recolhimento mundial de grande parte das populações se tornou necessário e tivemos como efeito a diminuição da poluição no mundo.
A literatura, e a poética que a habita, também precisam de um tempo lento, mais contemplativo, menos poluído para que possa ser produzida. Este é o tempo da pandemia, a literatura aprecia estes tempos, pois poderá ser criada na dobra do instante onde caiba o infinito.
O que existe, insiste.
Ver de novo o verde que jamais vi.
Em contrapartida, tudo isto nos aponta para um mundo cada vez mais incerto e cabe a nós apostarmos que estes milhões de anos vividos pela humanidade e os bilhões de anos vividos pelos vírus possam ganhar melhores equilíbrios e que isso garanta novos desdobramentos para a vida no planeta.
Cabe à literatura ser potente para catalisar este processo, criando sonhos e novos mundos.
O RAIAR DA LINGUAGEM
RENATA UDLER CROMBERG [2]
Lindo este evento chamar-se Raias poéticas. Três continentes traçam raias onde novos limites, fronteiras se constituem por semanas em torno da língua, letra, poesia, artes. Estamos num momento delicado em que as raias traçam um limite de um lugar que não pode ser e não deve ser ultrapassado, demarcam um espaço virtual intercontinental para nos ajudar a não passarmos das raias, dos limites, não excedermos no pandemônio da pandemia e virarmos sofrido manicômio e que raias luminosas que dividem o espectro solar tragam novos raiares dos dias que reforcem as raias, linhas ou sulcos de nossa mão para afirmar a vida.
Mas não podemos fugir da raia, evitar confronto, compromisso, dificuldade. A quarentena imposta pela pandemia do COVID19, desde março de 2020, que certamente para muitas gerações estabelecerá um outro tempo de AC e DC – antes do corona e depois do corona – tamanha a universalidade do medo da morte de si e do outro que trouxe, ao menos para aquela maioria que está acreditando na virulência contagiante, a gravidade da doença que já levou à morte até hoje mais de 90.000 pessoas no Brasil.
Esse tempo precisa, mais do que nunca, do princípio esperança como norteador em meio à crise profunda que fez o mundo parar e sacudir o tempo, e paradoxalmente ter no distanciamento social e no isolamento o desejo de salvar a si e ao outro, uma inclusão inédita do social por meio de uma tecnologia que vem salvando as redes de relação e de trabalho. Vindos da destruição ecológica de 2019, estamos imersos em tempos de crise e destruição onde a permanente reconstrução da esperança torna esse presente, motor de novos devires. Precisamos da ilusão de um futuro, de uma esperança teimosa para que de brincadeira ou de verdade possamos continuar dançando. No caso do Brasil, enfrentamos a necropolítica de um gabinete do ódio que modela um líder que nega a realidade e brinca com a morte, contra a humanidade e a sobrevivência de um povo, cujo veículo político e estratégico é um empobrecimento da linguagem, num projeto ideológico de pura destruição. Mas esse ódio destrutivo e autodestrutivo traz em seu bojo a necessidade de uma transformação que afirme um novo pacto social e político que diminua a gritante desigualdade social e preserve a democracia como forma de sobrevivência.
Temos visto uma transformação inédita da psicanálise, com atendimentos exclusivamente virtuais, a continuação dos cursos e trocas on line em lives, com novas plataformas de contato, onde temos tido de reinventar os circuitos afetivos, a maneira de engajar o corpo, para preservar a fala e a escuta como o caminho de acolher as angústias impensáveis que este momento da humanidade trouxe com esta súbita invasão do real inesperado do vírus. Temos visto uma democratização plural interinstitucional no campo da psicanálise, onde a generosidade vem fazendo parte fundamental do princípio esperança.
As 9as. Raias poéticas certamente fazem parte importante deste novo tempo de vir a ser, de redescoberta de nascentes.
A minha contribuição para isso veio com um último sentido das raias, o de linha, traço, risca. Quero falar sobre a origem da linguagem pela contribuição pioneira desta que se tornou uma espécie de avatar meu, pelos anos de pesquisa que dediquei a sua vida e obra, Sabina Spielrein, psicanalista e psiquiatra de origem russa que viveu entre 1885 a 1942. Nesse sentido as raias seriam os primeiros fonemas que na lalação do bebê inscrevem a linguagem em seu momento autista de puro prazer e júbilo para si mesmo na emissão sem mensagem para o outro, ainda que seja na presença e causada pela presença do outro. Minha coronial netinha está neste momento de vida e minha filha generosamente me manda vídeos dessa aquisição agora entre os 3 e 4 meses de vida. Posso ver claramente o estímulo da mãe e o gozo para si mesma da linguagem nos ö, o, a e rrrrrr que emite, neste circuito pulsional entre mãe e filha.
Entre 1920 e 1923, Spielrein publicou três textos fundamentais e pioneiros da relação da psicanálise com a linguística nascente. Fruto das observações de sua filha e das crianças do Instituto Rousseau em Genebra. É deles que trago estes traços.
Nós humanos falamos. Quem criou a linguagem verbal? Foi o homem adulto ou a criança? A criança é capaz de criação espontânea na linguagem ou ela simplesmente se apropria da linguagem verbal fornecida pelos adultos, deformando-a? Essa questão bastante polêmica até hoje, não foi solucionada.
A linguagem surge com a ajuda do outro, do adulto. A mãe ou a ama, a pessoa que amamenta, não oferece só o leite através do seio, mas o seio através do leite que vai se constituir num objeto que se opõe à boca da criança e dando-lhe, aos poucos, a primeira noção de objeto oposto a si e de um si separado do objeto. Esse seio, primeiro objeto investido de desejo, proporciona à criança, além de prazer, a oportunidade do exercício de mamar, precursor do que ela chama de primeiros fonemas, o mamama e o papapa. O primeiro, quando a criança mama, o segundo, quando larga o peito. O balbucio revive a sensação da coisa. Não precisamos supor nenhuma imagem clara na cabecinha infantil, não é preciso que seja a imagem da mãe ou do ato de mamar, podem ser sensações bastante obscuras de algo quente, macio (no contato com o corpo da mãe), fluido, de saciedade etc. Naturalmente, a criança sempre vai querer ter essas sensações, assim ela instintivamente busca colocar sua pequena boca em uma certa posição que produz os sons acima mencionados. A ligação entre os sons mã-mã e as sensações correspondentes se torna, assim, cada vez mais profunda, ela se torna uma constante. A criança vai buscar gerar esses sons a fim de evocar um grupo de sensações conhecidas e já esperadas. Mas como determinados sons são vinculados a conteúdos bastante definidos, às sensações, e talvez já às representações, Spielrein afirma que já se pode falar em palavras que indicam ou significam esses conteúdos, ainda que em um estado autista, a palavra voltada para si mesma.
Aquilo que hoje em dia chamamos de lalação inicial da criança diz respeito principalmente ao desejo e o apelo à satisfação e à saciedade deste. E isso Spielrein tem como um universal, já que os fonemas emitidos a partir do mamar e deixar de mamar estão presentes em quase todas as línguas nas palavras que designam pai e mãe. Ela prefere os sons que foram especialmente estimulados em seu desenvolvimento pelo ato de mamar.
O outro que oferece o seio interpreta o que a criança quer e dirige-se a ela com uma forma de falar específica, o que hoje conhecemos com o nome de manhês, que é o adulto evocando de sua própria vida psíquica infantil, a partir de sua própria memória, da maneira como foi tratado pelo seu antepassado, o que lhe dá a entonação do manhês com que se dirige à criança. Esse é o primeiro sentido da constatação que o antepassado mora na criança e a criança mora no antepassado. Portanto, a linguagem só se instala pela convocação do outro adulto por meio do apelo da criança. O estado de desejo é o impulsionador de formas linguageiras não verbais, ligadas ao choro. A língua nasce do inconsciente. Porque nasce do inconsciente das mães e amas que se adaptam à capacidade de criação linguística da criança, estimulando os mecanismos linguísticos herdados dos antepassados. A língua nasce, portanto, entre a criança e o outro, entre a criança e a criança redespertada no adulto. A língua nasce da inter-relação entre o bebê e a mãe ou ama.
Mas antes mesmo dos fonemas “ma” e “pa”, a linguagem se apresenta em suas formas não verbais, como melodia, ritmo, intervalos de silêncio, mímica, gestos, linguagem visual. A linguagem verbal se instala na criança através do outro e posteriormente se torna predominante, mas traz em si sua origem não verbal. Se ela for apenas linguagem verbal, será descorticada, ou seja, cindida de sua fonte cinestésica nos movimentos corporais e das imagens desses movimentos e do prazer que os mesmos dão à criança. Mas se a linguagem permanecer apenas nos seus primórdios como linguagem autoerótica destinada a si mesma, ela permanece autista, o estado inicial da linguagem. A partir da articulação da linguagem com a abertura ao outro, ao mundo, momento em que a linguagem se torna heteroerótica, na percepção desse outro e do mundo por meio do princípio do prazer e do princípio de realidade, pode-se conceituar os três tipos de linguagem: a linguagem autista, destinada a si mesma, a linguagem mágica, destinada ao outro, mas onírica, carregada de interpretação fantasística, de desejo do mundo, na qual a palavra recebe um superssignificado que conjura a realidade, e a linguagem social, destinada à comunicação com o outro, de quem se percebe a dependência, e capaz de suportar adiamento e frustração, levando em conta o mundo por meio do princípio de realidade. Somente com o advento da linguagem verbal, o homem se torna um ser social. O pensamento de Spielrein permite recolocar algo sobre a origem do social: no início, era o verbo, diz a Bíblia, referindo-se ao verbo criador do mundo emitido por Deus. No início, era a ação, diz Freud ao substituir a palavra divina pelo assassinato do pai primevo como matriz de criação do social. Sabina Spielrein aponta que no início do verbo há uma ação específica: o mamar, origem do pensamento e da linguagem.
O afastamento do outro enquanto objeto de prazer e a alternância entre presença e ausência, afastamento e aproximação, contribuem não só para o surgimento da linguagem, mas para a aquisição da noção de tempo pela criança. Assim, a aquisição da noção de espaço se torna primeira em relação à aquisição da noção de causalidade e a aquisição da noção de tempo é a última a ser adquirida pela criança. A repetição tem um papel crucial para a criança, que só adquire e assimila o novo passando pela repetição e a adesividade ao antigo, o que aparece também nos adultos afásicos por doença que danifica o aparelho de linguagem.
A língua é formada mais precisamente no pré-consciente e apresenta semelhanças com a imagem visual do sonho. O conceito de duração temporal é anterior ao de direção temporal tanto na língua como no pensamento onírico. A linguagem verbal, assim como o sonho, cria suas representações a partir de materiais pré-conscientes. Há também na organização da linguagem incipiente da criança o mesmo princípio da linguagem dos sonhos, onde o mais vivo da representação onírica é o mais valoroso afetivamente. A criança repete uma palavra (assim como uma frase) duas vezes como se fosse importante destacar aquilo que lhe é importante. Aqui surge a ligação com base no interesse, portanto, trata-se de uma relação de natureza psicológica e não biológica, ou seja, trata-se de uma relação afetiva. Conclusão importantíssima. Não é o acaso que determina a linguagem incipiente, mas a vida afetiva e psíquica e não a biológica e epistemológica. Nós pensamos principalmente de forma subconsciente, pois apenas o início e o fim de nossos pensamentos são conscientes para nós, o resto decorre no subconsciente. Sozinho, o pensamento subconsciente é suficiente para uma certa adaptação a este mundo, mas logo perderia o caráter de pensamento criativo, pois a disposição para criar alguma coisa, para fazer alguma coisa no mundo, o direcionamento total e a concentração sobre as funções da realidade faltam ao pensamento subconsciente, Apenas por meio da colaboração entre o pensamento consciente e o subconsciente é possível iniciar uma obra criativa neste mundo: o pensamento consciente precisa capturar e utilizar aquilo que o pensamento subconsciente nos oferece.
Com o ar do tempo do interesse pela origem da linguagem, em 1915, durante a primeira guerra, Ferenczi no front escrevendo Thalassa (catástrofe) e Freud escrevendo um manuscrito sobre as neuroses de transferência especulavam sobre a origem filogenética da linguagem ligada à Era Glacial quando saindo dos tempos paradisíacos do ciclo sexual, a sexualidade e a angústia surgiram ligadas à sobrevivência e a transformação do sexual em sexualidade para fazer frente aos tempos difíceis simultaneamente à organização centralizadora do social na figura de um chefe primevo.
A poesia, o lapso, o ato falho, o tatibitate musical, o nonsense provêm deste gozo inicial e redescobrem o prazer da língua no ritmo e corporeidade não significativa, na desconstrução do simbólico. Foi o que Lacan nomeou lalangue 50 anos depois de Spielrein.
Referências Bibliográficas
Spielrein, S. (1920) Sobre a questão do surgimento e o desenvolvimento da linguagem oral, in Sabina Spielrein 2, São Paulo, Blucher, no prelo.
Spielrein, S. (1922) O surgimento das palavras infantis papai e mamãe – Algumas observações sobre diversos estágios no desenvolvimento da linguagem, in Sabina Spielrein 2, São Paulo, Blucher, no prelo.
Ferenczi, S. Thalassa – Ensaio sobre a teoria da genitalidade, São Paulo, Martins Fontes, 1990.
Freud, S., Neurose de transferência: uma síntese (manuscrito recém- descoberto) , Rio de Janeiro, Imago, 1987.
SOBRE PSICANÁLISE E LITERATURA
MARIA LAURINDA RIBEIRO DE SOUSA [3]
Em tempos tão difíceis como os que estamos vivendo, especialmente no Brasil, tanto a literatura quanto a psicanálise podem favorecer acolhimentos e deslocamentos para o que é da ordem do impossível, da violência e do traumático, uma vez que o deslizamento e a intensidade das palavras, assim como as manifestações do inconsciente, criam, sem cessar, novas configurações e possibilidades de se situar e reagir às adversidades da vida. Hermann Hesse (1954), um autor cujos escritos acompanharam minha adolescência, publicou um livro nomeado transformações em que encontrei o seguinte poema: “O que se nos apresenta confuso/ se torna claro e simples na poesia:/ a flor sorri, a nuvem chora, / o mundo faz sentido, a mudez fala” (p. 57).
É claro que nem sempre a poesia tem clareza e que bom ser assim, pois nos convida aos enigmas da vida, aos seus desconcertos, à estranheza, mas o que me encantou naquele momento adolescente foi a possibilidade de olhar para o mundo de uma outra forma: uma nuvem pode chorar, a mudez pode falar. Não é à toa que nos regimes totalitários as transformações sejam tão temidas: a poesia, a cultura, a educação e a ciência são atacadas, reprimidas e relegadas às marginalidades.
Uma charge, publicada num jornal alemão, deixa clara a tragédia anunciada no Brasil desde as eleições de 2018: “Por que Bolsonaro deixa cortar a floresta? Pra ter madeira para caixões”. Referência à queimada ilegal da floresta amazônica e à indiferença diante das mortes diárias provocadas pela negação da pandemia.
No entanto, frente a essa política atual de devastação ambiental, genocídio dos índios, extermínio da população pobre e preta, negacionismo, o Brasil tem vozes que se insurgem e resistem. E é preciso reconhecer e falar sobre isso.
É significativo que neste momento da pandemia tenham surgido várias manifestações defendendo a democracia, denunciando as desigualdades e, ligadas diretamente ao tema deste encontro, muitas publicações literárias, grupos de contação de histórias, grupos de escuta ligados à psicanálise, grupos de escrita propondo a expressão e a troca de experiências e a colocação em palavras dos efeitos provocados pelo isolamento social e pelos temores quanto ao futuro. Formas de enunciação que funcionam como atos coletivos de solidariedade e de cura.
Vários projetos solidários poderiam ser lembrados; vou citar apenas três que me chamaram a atenção por sua vinculação com a cultura:
- Num gesto solidário de entrega de cestas básicas para famílias em dificuldades, acrescentou-se às cestas livros infantis; uma forma de evidenciar a equivalência entre o alimento que mata a fome e a imaginação que alimenta a vida.
- O museu da Língua Portuguesa, em São Paulo, lançou uma proposta de escrita para ajudar as pessoas a processarem a pandemia e seus efeitos. Chamada de A palavra no Agora estimula as pessoas a colocarem em palavras os sentimentos e as perdas vivenciadas no momento atual. Além disso, o projeto disponibiliza trechos de obras literárias e outras produções culturais que podem ajudar na travessia destes momentos difíceis.
- Versinhos do bem querer – projeto lançado em março para divulgar a cultura do Vale do Jequitinhonha e, ao mesmo tempo, ajudar as comunidades da região a enfrentarem o impacto econômico da pandemia. Compor e cantar versinhos faz parte da cultura local, passada de geração em geração. As pessoas compram os versinhos personalizados que são enviados por WhatsApp. Além de bordadeiras, essas mulheres são compositoras e encontraram nesse projeto uma forma de sobrevivência e de reconhecimento.
Clarice Lispector (2018) também marcou a importância da escrita como uma forma de sobrevivência, de “salvação”:
“Escrever é a minha dívida de alegria a um mundo que não me é fácil. Escrever é uma maldição... mas uma maldição que salva. Salva a alma presa, salva a pessoa que se sente inútil, salva o dia que se vive e que nunca se entende a menos que se escreva” (p.74). Ou, “Mas sei de uma coisa: meu caminho não sou eu, é outro, é os outros. Quando eu puder sentir plenamente o outro estarei salva e pensarei: eis o meu porto de chegada” (p.130). Que será, sabemos, outro ponto de partida.
É no mesmo sentido que Antonin Artaud nos fala de seus poemas:
“meus poemas... provém da incerteza profunda de meu pensamento. Bem feliz quando essa incerteza não é substituída pela inexistência absoluta de que sofro às vezes”. (Carta a Jacques Rivière de 5.6.1923)
Falar de Psicanálise e Literatura nos remete à própria formação de Freud e seu interesse, desde muito jovem, pelo campo da literatura. E se no início de sua obra ele se desculpou pelo tipo de escrita e pelo espanto em constatar que seus casos clínicos eram escritos como romance, ele também reconheceu nesse estilo a forma mais adequada àquilo que desejava transmitir, anunciando assim, a cooperação mútua entre a psicanálise e a criação literária e assumindo o papel transgressivo implicado em todo ato criativo. É conhecida sua admiração por Schnitzler, contemporâneo a quem nomeou seu duplo. Numa homenagem aos 60 anos do escritor, Freud escreveu na carta que lhe encaminhou:
“Creio que no íntimo de seu ser o senhor é um profundo investigador da alma, tão honestamente imparcial e intrépido como nenhum outro jamais foi”.
Em texto anterior, publicado em 1907, encontrou inspiração na novela de Jensen – Gradiva -, para apresentar sua compreensão da neurose e demonstrar a ação terapêutica da Psicanálise. Nesse mesmo texto afirmou:
“... os poetas são uns aliados valiosíssimos, pois costumam saber de uma porção de coisas existentes entre o céu e a terra das quais sequer sonha a nossa sabedoria acadêmica. E, na ciência da alma, se adiantaram muito mais que nós, homens comuns, pois se nutrem de fontes ainda não abertas para a ciência” (p.8)
O prazer pela leitura aparece em muitos momentos de sua escrita – nos autores que cita, nas referências que acompanham a criação de seus conceitos, nas homenagens que faz aos poetas. Foi sua admiração por Cervantes que o incitou ainda muito jovem, a criar, com o amigo Eduard Silberstein, a Academia Castelhana, assumindo entre eles os nomes de Cipião e Berganza, os dois personagens do conto de Cervantes intitulado Colóquio dos cães, cujos ecos reconhecemos, posteriormente, no que seria o dispositivo analítico.
Ao fim de sua obra, com a noção de desamparo, experiência primária de todo sujeito humano, reaparece a referência à arte, à produção estética, à escrita, como respostas possíveis à dor da separação inevitável do espaço protetor representado originalmente pelo corpo materno.
Proximidade presente desde as origens, permanece até hoje nas trocas que permitem ao analista lançar mão da literatura para sua escuta e para a construção de narrativas clínicas e, ao escritor, lançar mão da psicanálise, para dar corpo subjetivo aos seus personagens.
É possível escrever de modo acadêmico coisas belíssimas; no entanto, nos diz Radmila Zygouris, psicanalista sérvia que vive na França, “se alguns analistas pecam por um excesso de academismo, outros sofrem da ausência de literatura” (1995, p. 253).
Tanto em um como em outro campo, sempre é possível contar mais uma estória, criar novas dobras, desdobramentos: formas possíveis de adiar o fim do mundo como defende Ailton Krenak, líder e escritor indígena, organizador da Aliança dos Povos da Floresta, em seu livro Ideias para adiar o fim do mundo.
Em consonância com Ailton Krenak, Suely Rolnik, psicanalista, crítica de arte e cultura, professora universitária na PUC de São Paulo, defende formas para adiantar o fim do mundo. Em laive recente, ela nos falou da importância da língua Guarani da qual destacou três vocábulos. Um deles é usado para designar a garganta e significa “ninho de palavras alma”. As palavras alma, disse ela, são formas de embriões que habitam nosso corpo e isso poderia ser estendido à linguagem e ao corpo como um todo. Essas palavras alma são germes do mundo, germes do futuro, de um mundo a ser criado, e que se formam a partir da relação com o mundo, com a alteridade. Ninho de palavras alma é um termo amplamente poético, potente, e anunciador do sensível, precursor da palavra enunciada. Se uma língua é exterminada, se um povo é dizimado, é uma parte de nós que se extermina. A cada ato perpetrador dessa violência é a civilização que se empobrece.
Em ensaio publicado em 1915 nomeado “Considerações sobre a guerra e a morte. Temas da atualidade”, entendendo-se que os temas da atualidade naquele momento referiam-se aos acontecimentos da I Guerra Mundial, Freud discorre sobre a nossa atitude diante da morte. Afirma que, apesar de reconhecermos ser a morte o desenlace natural da vida, mantemos essa ideia distante de nós e agimos como se fossemos imortais. E se a morte de alguém querido nos faz reconhecê-la, “É no mundo da ficção, da literatura, do teatro, onde encontramos o substituto do que falta à vida. Aí encontramos homens que sabem morrer... E somente aí se cumprem as condições sob as quais nos reconciliamos com a morte...no âmbito da ficção encontramos essa multidão de vidas de que necessitamos; morremos identificados com um herói, porém lhe sobrevivemos e estamos prontos a morrer uma segunda vez com outro, igualmente incólumes” (p.292).
No entanto, a guerra coloca por terra essa ilusão de imortalidade: é preciso acreditar nela; os homens morrem, multidões deles ao dia. Na pandemia que nos assola hoje em dia, o mesmo acontece e nos convoca a olhar para a morte e a reconhecer a urgência da vida.
Outra afirmação destacada por Freud é a atitude que os povos primitivos tinham com o morto: cuidavam de seu corpo, penitenciavam-se pelas mortes cometidas, demonstravam uma “fina sensibilidade ética” que os ditos homens civilizados foram perdendo.
O que pensar, então, sobre o que ocorre hoje com os mortos em função da Pandemia? Esquecemo-nos do já acontecido? De outros momentos em que a humanidade se viu assolada por experiências semelhantes? Retomamos em nosso interior a ideia de imortalidade? Banalizamos as listas diárias sobre a incidência de mortes? Recusamos os efeitos de nossas ações sobre a natureza e sobre o cuidado com os outros, alimentando as desigualdades que abrem portas para mortes que poderiam ser evitadas?
Impossibilitados pelos rituais de luto tão necessários para que a despedida e a continuidade da vida sejam possíveis, como amenizar esse sofrimento?
De que forma resgatar o exemplo de Antígona que afronta o poder do Estado e insiste, até a morte, em seu desejo ético de dar um enterro digno a seu irmão Polinices, condenado pelo tio, Creonte, a ter seu corpo exposto a céu aberto e ser devorado pelos abutres?
Como se opor ao discurso que computa corpos mortos como parte de uma prática de extermínio dessubjetivante?
Minha resposta, ou possível resposta, vai como manifesto desejante ao movimento lançado em 5 de julho, em São Paulo, #Liberte o futuro. Libertar o futuro pela imaginação, pela possibilidade de construir sonhos para o pós-pandemia. Imaginar um futuro onde queiramos viver. A imaginação, afirma o movimento, é um ato político. Um ato de resistência. Imaginar o futuro é já começar a alterar o presente.
Valter Hugo Mãe disse num livro poético e sensível chamado As mais belas coisas do mundo que “Para mudar o mundo é preciso sonhar acordado”. E acrescentou: “Apenas os que desistiram guardam o sonho para o tempo de dormir”. Como psicanalista, digo ao poeta-escritor que os sonhos do tempo de dormir também preparam os do tempo em que se sonha acordado.
Imagino e sonho, então, com um país
Onde nenhuma criança seja morta por balas perdidas
Onde brancos e pretos tenham condições de viver dignamente e com os mesmos direitos
Onde a floresta e os rios sejam respeitados como seres vivos
Onde as populações indígenas tenham o direito às suas terras e possam circular e manter suas tradições sem serem encurraladas e exterminadas
Onde educação e saúde sejam de boa qualidade e extensivos a toda população.
Mas, antes de tudo isso, imagino, o retorno de nossa “sensibilidade ética” e que o pós pandemia seja marcado por um movimento coletivo de luto.
E que possamos nomear todos que
não tiveram direito às despedidas,
Não tiveram velórios
Flores.
Homenagens
Uma cova digna.
E que em cada cova
Se coloquem flores
Se façam preces
E se contem histórias
De um mundo diferente
Um mundo onde se possa sonhar
Onde haja lugar para a poesia.
Um mundo onde valeria a pena viver
Julho/2020
Referências Bibliográficas
Freud, S. (1907). El delírio y los sueños la “Gradiva”de W. Jensen. Obras Completas. Buenos Aires: Amorrortu, 1993, v. VII.
------------ (1915). De guerra y muerte. Temas de actualidad. Op. Cit., v. XIV
Hesse, H. (1954). Transformações. Rio de Janeiro: Record.
Krenak, A. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Cia das Letras, 2019.
Lispector, C. Todas as crônicas. Rio de Janeiro: Rocco, 2018.
Mãe, V. H. As mais belas coisas do mundo. Edição em PDF, 2018.
Zygouris, R. Ah! As belas lições. São Paulo: Escuta, 1995.
[1] Psiquiatra e psicanalista. Professor do Curso de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae - São Paulo.
[2] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, pós-doutora pelo Instituto de Psicologia da USP, professora convidada do curso de Teoria Psicanalítica do COGEAE/PUC – SP e autora de Paranoia (col. Clínica Psicanalítica), Cena Incestuosa (Coleção Clínica Psicanalítica) e Sabina Spielrein, uma pioneira da Psicanálise, obras completas, vol.1 e de Sabina Spielrein 2 (no prelo).
[3] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, professora e supervisora no Curso de Psicanálise.