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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    58 Abril 2021  
 
 
CRÔNICAS DA QUARENTENA

CARTA-TEXTO


JULIANA FAGUNDES [1]

São Paulo, dezembro de 2020

Talvez: assim. Recolher do chão o pequeno torvelinho que entrou pela janela. Trazê-lo à escrivaninha; repousá-lo sobre a folha branca; e escrever sobre ele. Llansol me visita às vezes. Eu sorrio com delicadeza e me levanto para vestir o lindo vestido azul que separei para este momento. É pela torçura do corpo inquieto que vislumbro a palavra. Mas me ponho a deitar na cama, de propósito, para me acalmar. E esqueço. Só assim posso ceder ao começo. Um bichinho verde lembrou-me Clarice: pousou, sem que eu o visse, nos meus cabelos. Depois, assustada, agitei a cabeça – o que o fez cair entre as letras da máquina de onde escrevo e busco alguma inspiração. Surgi depressa com um quadradinho de papel nas mãos. Uma força maior me encabulou o gesto. De ser violenta. Então, resolvi tirar uma foto (de seu corpinho frágil). Voou logo depois. Para longe de mim. Quantas vezes não é a gente que está do lado de lá, obrigada ao exílio? Quis escrever uma crônica sobre algumas acontecências deste ano, mas é com pesar que reconheço que, no momento, transborda em mim uma crueza dura demais para o sensível. Eu que tanto sou noite, que tanto careço da noite para criar meu mundo de afetos, sinto agora o sol alaranjando-me, empurrando-me para um texto sério demais, técnico demais para um leitor que espera algum respiro para este fim que não cessa.

A esperança decolou daqui mas sua presença não foi embora. E volta o tema do exílio. Koltai (2007), em seu texto intitulado “A língua exilada”, cita Feldman (1999) a respeito da dimensão ética da literatura de testemunho, uma vez que amplia o campo de produção simbólica de uma sociedade a fim de incluir nela, continuamente, o emergente, aquilo, diz-nos, que até então era tido como irrepresentável – o que não quer dizer que nesse testemunho pela escrita não haja, ainda assim, restos não assimiláveis, mas algo se produz, tem valor de registro (Costa, 2001 apud Koltai, 2007).

É desse modo que naquilo que é transmitido, por meio do discurso, na linguagem que estrutura nosso inconsciente, estão os significantes daqueles que nos precederam e constituem a memória daquilo que não foi vivenciado por nós, segue Koltai (2007, p. 367), que nos conta ainda: “E quanto mais longa, trágica e contraditória a história de um povo que atravessou as civilizações, integrando a cultura dos traços heterogêneos, tanto maior é a complexidade dessa memória”.

Nesse texto de que estamos nos valendo, a autora (2007, p. 368) apresenta-nos os exílios de Marai e Kertész, escritores que, através de suas obras, parecem realizar um trabalho de luto e, “em vez de repetir para não perder, aceitaram se separar de algo que gostariam de ter mantido”, brindando-nos “com algumas das mais belas páginas da literatura do século XX”.

Fiquei pensando na delicadeza do tema, e pensei no que Garner (1999 apud Koltai, 2007) afirma sobre sermos sempre exilados de um lugar que segue existindo em algum lugar, ainda que seja nas lembranças de um grupo. E quando isso não acontece, “mais de que de exílio se trata de um estado de perdição de um ser sem domicílio fixo, pois, quando o mundo do exilado desaparece, desaparece também a possibilidade psíquica do exílio” (Koltai, 2007, p. 365).

Neste ano, tenho o prazer de ser aluna clandestina de uma disciplina chamada Mulheres em trânsito, ministrada por Lúcia Castello Branco. Lá conheci Sylvie Debs, Fundadora da CABRA e representante da ICORN no Brasil. Gostaria de me estender um pouco a seguir, sempre tendo como referência a seção do site (cabras.org) onde Debs nos apresenta a origem desse projeto.

No ano de 1989, Salman Rushdie, escritor de Os versos satânicos, foi condenado à morte por uma fátua do Aiatolá Khomeini, no Irã. Sobreviveu, mas sua condenação segue em vigência até hoje. Debs dá destaque ao episódio ocorrido em 2015, quando o ministro da Cultura do Irã cancelou sua participação na Feira do livro de Frankfurt, pela presença do escritor, cuja nacionalidade é dupla, indiana e britânica.

Primeiro escritor da história da humanidade a ser perseguido no mundo inteiro, Salman Rushdie escapou da morte, mas cerca de duas dezenas dos seus tradutores, editores e livreiros foram assassinados. Por isso e pelos assassinatos de intelectuais, diretores de jornais, sociólogos, professores de universidade e escritores, na Argélia, com a participação de Rushdie e de mais de 350 escritores do mundo, criou-se, em 1993, na França, o Parlamento Internacional de Escritores (IPW) que lançou o Cities of Asylum Network (INCA).

Salman Rushdie, Wole Soyinka e Vaclav Havel foram presidentes, e Jacques Derrida, Margaret Drabble e Harold Pinter foram membros do Conselho. Barcelona foi a primeira a acolher a ideia de criar uma rede de cidades para abrigar escritores ameaçados, e logo uniram-se a ela muitas outras cidades e países. Em 2003, o IPW foi dissolvido, mas o esquema, diz-nos Debs, permaneceu intacto.

Posteriormente, em 2006, a Noruega reestruturou essa rede, criando uma organização internacional de sócios independentes, ICORN (www.icorn.org), oferecendo-lhes lares seguros para que escritores pudessem seguir se expressando com liberdade. Uma das escritoras foi Svetlana Alexeyevich, ganhadora do Prêmio Nobel de Literatura naquele ano.

Por volta de 800 escritores foram perseguidos em 2014 – o que gerou a necessidade de abrir novos espaços para acolher romancistas, ensaístas, dramaturgos, poetas, blogueiros, editores, tradutores, redatores, jornalistas e caricaturistas ameaçados de morte e tortura. Foi lançado, assim, o projeto CABRA (CAsas BRasileiras de Refúgio) no Brasil.

Vejamos o que afirma Debs a respeito do que permite ao Brasil abraçar essa causa:

A defesa da liberdade de expressão, o respeito aos direitos humanos, o exercício da democracia, a tradição de hospitalidade são os valores essenciais que permitem ao Brasil abraçar plenamente essa causa. Como o ICORN conecta suas cidades membros e seus escritores hospedados numa rede global de solidariedade, criatividade e interação mútua, as cidades brasileiras serão altamente beneficiadas, ao integrar essa rede. Através dos avanços da tecnologia, os escritores da ICORN podem atingir as mídias e audiências em seus países de origem, além de suas vozes poderem ser ouvidas por um novo público na cidade que os acolhe, no além-mar.

Em 2015, diversos encontros entre a fundadora da CABRA e instituições brasileiras apoiaram o conceito em várias cidades do Brasil.

Por fim, formada pela diretora executiva da ICORN, a fundadora da CABRA e dos escritores exilados (Egito e Etiópia), uma segunda comissão de trabalho encontrou futuros integrantes da rede ICORN a partir de 2016.

Em tempos tão sombrios, percebi que essa experiência urgente e já existente precisa ser cada vez mais difundida. Destaco também que Lúcia, além de professora, escritora e psicanalista, é também a curadora literária dessa linda realização.

Neste momento, gostaria de retomar à frase de Debs: “A defesa da liberdade de expressão, o respeito aos direitos humanos, o exercício da democracia […] são os valores essenciais que permitem ao Brasil abraçar plenamente essa causa”. É triste, nos dias atuais, percebermos o quanto todas essas conquistas estão sendo ameaçadas em nosso país. Resistir é preciso.

Ao falar de exílio e desumanização, outros temas se entrelaçam, pedindo atenção. Em “Uma cara que não agrada”, entrevista com Albert Jacquard, Pontalis (1991, p. 37) se pergunta quando é que vemos surgir os fenômenos racistas, e responde: “Quase sempre, quando um grupo é ameaçado, ou se sente ameaçado, por um grupo vizinho que possa tomar seu lugar ou fazê-lo perder o que ele encara como seus privilégios”. O psicanalista conta sobre o momento daquela época na França: “devido ao desemprego [...], o fenômeno racista está de novo ativo, tanto que alguns políticos concordam em explorá-lo, começando, naturalmente, por proclamar: 'Não sou racista, mas... Vocês acham normal que vocês, franceses, fiquem privados de emprego, enquanto os imigrantes o têm?'”. Pontalis (ibidem) fala: o que “eu supunha 'ruim' em mim […] passo a atribui-lo ao outro, que se torna 'mau objeto', o agente do Mal.” Assim, o que um indivíduo rejeita em si (o pulsional etc.) é expulso para fora dele, para dentro do outro. E por último vem a expulsão do outro, que vai “desde o repatriamento para o país de origem até a eliminação física, passando pelo aprisionamento”.

De um jeito muito verdadeiro, Pontalis (ibidem) demonstra o incômodo com a discussão com o citado geneticista: “ao procurar, como estamos fazendo, as motivações psicológicas do comportamento racista, não estaremos a compreendê-lo, quase a justificá-lo?”, e, assim, o autor também nos convoca ao cuidado legítimo que precisamos ter no enfrentamento de discussões tão necessárias.

Pontalis indica que a relação com o outro, com o estranho, é para todos problemática. Não que estejamos fadados à xenofobia, no entanto, cada um se defronta com isso de mil maneiras. Mas adverte sobre uma diferença que reconhece entre a xenofobia e o racismo. Vejamos:

A xenofobia é um sentimento, um movimento interno que pode ou não traduzir-se num comportamento, enquanto o racismo é uma paixão que teve a possibilidade de se fundamentar numa doutrina. Depois, não há no racista oscilação ansiosa entre a atração e o medo, já não há essa fascinação confusa e perturbadora pelo estranho e pelo estrangeiro; resta apenas o inimigo, a convicção, totalmente feita de ódio e desprezo, de fato, de que o mal está ali. Daí haver, nesse sujeito, uma espécie de amor por seu ódio. O racista separa – “cliva” – a atração e a rejeição que coexistem, bem ou mal, na xenofobia: a atração, ele vai encontrá-la do lado de seus irmãos no ódio, e a ação de rejeição é totalmente orientada para o grupo maldito. Parece-me que a xenofobia pode persistir como uma questão individual, ao passo que o racismo é coisa de grupo, conclama necessariamente uma violência maciça. Pontalis, 1991, p. 40).

Impossível não lembrar dos assassinatos que presenciamos neste ano. Nessa entrevista, Pontalis (1991, p. 42) fala que, pelo menos em suas manifestações extremas, o racismo é uma “paranoia coletiva”: expulsar o outro, mantê-lo afastado não bastam, “[é] preciso destruí-lo de uma vez por todas. Esse delírio paranoico pode levar até ao assassinato”, diz o psicanalista, confirmando a dura realidade presente no Brasil e no mundo.

Ainda questiona (1991, p. 46): “Mas, por que deveríamos, afinal de contas, ser todos idealmente semelhantes, se todos somos, na realidade, diferentes?”, e responde: “O paradoxo é que só se pode descobrir a identidade consigo mesmo não sendo idêntico aos outros.” Para o psicanalista, o racismo, enquanto fenômeno de massa, só terminará com a resolução desse paradoxo, “o que pressupõe identidades múltiplas, heterogêneas e móveis, e não o triunfo do Um, necessariamente destrutivo”.

No texto “O racismo – um sintoma”, Koltai (2000) observa que, com a globalização, o outro pode estar em qualquer lugar. A fronteira simbólica entre o conjunto construído pelos racistas e o conjunto formado por suas vítimas não se encontra mais em simetria com a fronteira geográfica, como no caso no colonialismo. Devido à industrialização e aos movimentos migratórios, a psicanalista diz-nos que o outro se tornou extimo, termo cunhado por Lacan para falar desse estrangeiro heterogêneo e interno ao mesmo tempo.

A respeito do texto de Pontalis que acompanhamos, Koltai (2000, p. 121) destaca:

Pontalis chama a atenção para esse amor pelo ódio – um ódio pelo gozo do outro –, que, no fundo não passa de ódio pelo próprio gozo. É isso que o analista sabe e o cientista não sabe: o Outro é Outro no interior de mim mesmo e, assim entendida a raiz do racismo, é o ódio por meu próprio gozo.

A psicanálise mostra que não há algo mais profundamente estrangeiro para o sujeito do que sua própria exterioridade, e a maneira de se lidar com ela irá determinar as definições do Outro como estrangeiro, afirma a autora. Jeanmart (1991, p. 103 apud Koltai, 2000, p. 121) fala que o gesto segregativo e a palavra racista, em verdade “só falam da impotência da linguagem em inscrever a relação sexual, em suportar a dimensão do Outro, do Outro sexo”. Para a ciência, não há lugar para a divisão, já para a psicanálise o sujeito é dividido entre saber e verdade e entre saber e gozo: “As manifestações racistas surgem, justamente, quando o sujeito se nega a ver a própria divisão, se recusa a ver que traz em si mesmo esse Outro gozo” (Koltai, 2000, p. 123).

A aposta da psicanálise é que o sujeito possa se reposicionar frente ao Outro, levá-lo, conforme escreve Koltai (2000, p. 124), a encontrar seu próprio destino, aceitando suas particularidades, “sua parte de um outro gozo, e o dos outros, pois não precisará mais rejeitar esse heterogêneo sobre os outros”, e a partir disso, conforme também acompanhamos em Pontalis, podemos falar em uma outra lógica que não tenha mais como base a segregação.

No livro O racismo e o negro no Brasil: questões para a psicanálise, organizado por Noemi Moritz Kon, Maria Lúcia da Silva e Cristiane Curi Abud, lemos no Prefácio de Rosane Borges (2017) o desafio que esse livro coloca para a formação de uma psicanálise que se quer brasileira: a importância de pensar em qual temporalidade estamos imersos e de perceber, diz-nos, os ritmos de duração que atravessam a vida nacional e os psiquismos mais diversos. Ocorre-me agora a recente frase do vice-presidente de que “no Brasil não há racismo” – o que me faz pensar em tudo que foi abordado aqui sobre a memória, a história... Kon, citada por Borges (2017, posição 36), fala do Brasil como um país traumatizado que ainda não ajustou contas com suas dores nefastas e obscenas, da colonização e da escravatura. E, nesse sentido, ou melhor, em todos os sentidos, o negacionismo é de uma crueldade pavorosa, porque, sabemos, como também escreve a psicanalista (apud Borges, 2017, posição 46), “toda dor pode ser suportada se sobre ela puder ser contada uma história”, e para tal é preciso um outro que cave junto possibilidades, ou como afirma Borges (2017, posição 46), esburaque territórios, para que “essa reconciliação com o nosso passado se converta em plataforma política, para que possamos nos pensar como indivíduos e coletividade”.

No decurso da pandemia da COVID-19, constatamos uma pluralidade de problemas em nossa sociedade. O livro As homossexualidades na psicanálise: na história de sua despatologização , Quinet e Coutinho Jorge (2020, p. 10) escrevem que muita coisa mudou, as conquistas da população LGBTQIA+ não constituem mais um provável anteparo para o furioso discurso homofóbico dominante e oficial. Dizem: “Suas consequências nefastas – traduzidas em ataques violentos, agressões verbais e físicas, chegando até ao assassinato – aumentaram enormemente em nosso país”. Os autores falam do nítido retrocesso em decorrência dos discursos religiosos e obscurantistas que se utilizam do contexto psicológico para apregoar a chamada “cura gay”, uma vez que consideram a homossexualidade como doença ou até mesmo “coisa do diabo”. Como bem destacam os psicanalistas, assistimos estupefatos à proibição, vinda de órgãos oficiais, do debate sobre sexo, gênero e orientação sexual na sociedade e, em particular, nas escolas, chamados de “ideologia de gênero”.

Em nome da moral, dos ditos bons costumes e da religião, presenciamos uma politização crescente do sexo, do gênero e da orientação sexual: “Em nome da moral sexual 'civilizada' – para tomar aqui o título de um famoso texto de Freud no qual a presença das aspas já representa, por si só, uma poderosa interpretação crítica – o discurso oficial tem cometido graves transgressões éticas” (Quinet; Jorge, 2020, p. 10), e citam a mais grave, qual seja, aquela que, em nome da religião, coíbe, constrange e culpabiliza a sexualidade do ser humano, que é, por definição, um ser-para-o-sexo.

Em 2019, foi obtida no nosso país a criminalização da homofobia. Com essa decisão, o Brasil foi o 43º país a criminalizá-la, lembrando, no entanto, que a prática homossexual ainda é entendida por si só como um crime em um número maior de países (Quinet; Jorge, 2020).

Tal como o racismo é uma discussão para todos, a questão da sexualidade não diz respeito apenas a gays e lésbicas, visto que com Freud aprendemos que todos os seres falantes são constituídos por uma estrutura bissexual - conforme os psicanalistas sublinham ao término do Prefácio, acompanhando Lacan - e circulam entre muitos tipos de gozo e posições sexuadas, independentemente de sua anatomia.

Dunker (2020, posição 560), a partir de Lacan, diz-nos ser preciso uma responsabilidade pela própria posição de sujeito, e nos conta que essa responsabilidade é uma noção ético-jurídica, e não apenas cognitivo-científica. A alegoria lacaniana da peste, diz o psicanalista, conversa com o momento atual de generalização da peste, figurada pela pandemia do novo coronavírus: “Ela convoca determinações médicas, sanitárias e econômicas à luz da ciência, mas desencadeia conturbados processos éticos, políticos e morais. Nessa circunstância torna-se mais agudo decidir qual lei queremos e de que forma nos faremos responsáveis pelo desejo que lhe é correlato”. Vale seguir com as palavras do autor:

Lembremos que a primeira parte da trilogia tebana, conhecida como Édipo Rei, deveria chamar-se, rigorosamente, Édipo tirano. Para a filosofia política antiga, admitia-se que a tirania era um regime político razoável em duas condições: a guerra e a peste. Nessa situação o saber específico, de um general ou de um médico, torna-se mais importante do que o saber geral do político. Édipo é um tirano e não um rei, porque ascende ao trono de Tebas por seus méritos e virtudes, notadamente ao derrotar o enigma da Esfinge. O primeiro ato da tragédia de Sófocles trata justamente da peste que se abateu sobre Tebas e do problema político que cabe a Édipo resolver. Sua primeira decisão é interromper as preces religiosas e declarar aberta a investigação sobre as causas do miasma – termo que remete a uma perturbação ao mesmo tempo natural e moral. Tirésias, o adivinho cego, revela que a causa é si mesmo, o que tornará a tragédia, a partir de então, uma investigação sobre as origens e a genealogia do filho de Laio. É possível que Sófocles repetisse a concepção de Tucídides em sua descrição da peste que caiu sobre Atenas aproximadamente em 430 a. C.: a primeira reação de busca dos templos religiosos, a suspeita de que ela provém dos animais (zoonose), sua transmissão infecciosa, sua relação com a guerra e a movimentação de pessoas. A brucelose abortiva, doença provável na peste de Tebas, não se mostra um castigo dos deuses contra a cidade, mas um ajuste de contas com as desmesuras do poder concentrado nas mãos de uma única pessoa: Édipo.

De acordo com Christian, diferente do que se advoga na crítica de ocasião contemporânea, segundo Lacan, a ética da psicanálise não é uma ética edipiana, mas uma ética do desejo, cujo exemplo melhor se encontraria em sua filha Antígona, que dá título à segunda das tragédias tebanas. O que ocorre? Antígona não aceita deixar insepulto seu irmão Polinice e advoga que ele deve ter um enterro tão digno quanto seu outro irmão, Etéocles, ainda que este tenha traído o pacto fechado em Tebas a respeito da alternância do poder entre os filhos de Édipo. O psicanalista ( ibidem) segue: “Ameaçada de ser enterrada junto com seu irmão, caso se recusasse a cumprir as ordens de Creonte, Antígona mantém-se firme em sua deliberação, enfrentando comandar pelo ódio, pelo temor ou pela culpa […]”. Em seguida, a respeito da ética da psicanálise, tomando como referência O seminário: livro 7, de Lacan, Dunker (ibidem ) escreve:

“[...] Ela implica, propriamente falando, a dimensão que se expressa no que se chama experiência trágica da vida” (O Seminário: livro 7, p. 375-76). 2. Ela age de acordo com o princípio de que “não poderia haver satisfação de ninguém sem a satisfação de todos” (p. 350), portanto o direito à memória não pode ser suprimido a Polinice – não por ser seu irmão, mas por todos integrarmos uma comunidade simbólica. 3. Ela confronta a própria morte e seu desamparo fundamental, “sem esperar a ajuda de ninguém” (p. 364). 4. Ela opõe-se à ordem dos poderes do mestre, que afirma: “que o trabalho não pare. Quanto ao desejo, vocês podem esperar sentados”. Ela não age em nome do bem maior, mas do bem dizer: “Fazer as coisas em nome do bem, e mais ainda em nome do bem do outro, eis o que está bem longe de nos abrigar não apenas da culpa, mas de todo tipo de catástrofes interiores” (p. 383).

Por meio dessas passagens trazidas pelo psicanalista, a ética da psicanálise até aqui mostra-se apegada à condição negativa do desamparo, do sofrimento e do desejo, e o desenvolvimento sobre Antígona teria deixado o problema da peste para trás, escreve Dunker, como uma forma de contingência menor: “signo de alternação entre a determinação dos deuses e dos homens, menos do que efeito de um desejo singularmente transgressivo”. Porém, nas páginas finais do referido Seminário, o tema parece ressurgir sob a figura “um tanto despropositada de Filoctetes, para mostrar que 'um herói não precisa ser heroico para ser um herói'” (LACAN, O Seminário: livro 7, p. 385 apud Dunker, 2020, posição 560).

Ainda com Dunker (2020, posição 632), lemos que Filoctetes é o guarda de armas de Hércules, um dos pretendentes de Helena de Troia e um dos argonautas que saíram em busca do Velocino de Ouro. Na viagem, ele passa a incomodar seus colegas por causa de um machucado malcheiroso no pé. A origem do ferimento não é unívoca:

Ele teria sido picado por uma serpente enviada por Hera para prejudicar o amigo de Hércules, ou então ele teria denunciado o local onde estavam depositadas as cinzas de Hércules, apontando o lugar com o pé e sendo punido com uma flecha envenenada com o sangue da Hidra de Lerna. Durante a expedição, e em função do ferimento, ele é abandonado sozinho na ilha de Lemnos, também conhecida como Crise, onde permanece por dez anos.

Quando Ulisses descobre que a única maneira de vencer a guerra de Troia é usando as armas de Hércules, cujo paradeiro somente o guarda de armas conhecia, a sorte de Filoctetes chega: “Forma-se então uma expedição para resgatar Filoctetes” (Dunker, 2020, posição 636). Ao fazê-lo, o herói suplementar da ética psicanalítica, Lacan cria o verdadeiro anti-Édipo: “serviçal, e não líder, com um ferimento aberto, e não uma cicatriz nos tornozelos, ele é o herói que”, cita Lacan (O Seminário: livro 7, p. 384 apud Dunker, 2020, posição 636), “pode ser traído impunemente”. Dunker elucida que a grande virtude é que ele não se ressente dos colegas que o abandonaram, não há vingança. O psicanalista afirma que aqui temos outra figura da peste, que não se encontra mais figurada coletivamente como castigo ou ultrapassagem (húbrus) da medida humana, mas indica “o caminho da solitude que se espera de quem se orienta pelo desejo”. Sigamos mais com Dunker (ibidem):

A peste de Filocteres não é contagiosa, mas mesmo assim afasta os outros tornando-o dejeto e excesso desagradável na missão helênica. Filoctetes representa assim as vidas sem importância. Matáveis e insignificantes, para além de sua função e instrumentalidade, elas são o preço e o sacrifício a pagar para que tudo continue andando, para que a economia não pare de trabalhar e para que esqueçamos que toda vida está em uma vida, como já nos havia mostrado Antígona.

Ao término do texto, o psicanalista nos indica as lições deixadas pela ética da psicanálise no estado de epidemia que nos assola. Diz-nos que a epidemia não deve ser encarada como um castigo que nos leva ao rancor frente ao que não tem nome,

[e]la não deve nos dar a ocasião para a vingança de Nêmesis. Ela interpela a reponsabilidade ética de cada qual para com seu desejo, ou para o serviço dos bens, em um momento de relativa suspensão jurídica. Não somos deuses, por isso a peste nos convida a reencontrar nosso devido tamanho e a reconhecer a extensão inesperada do mundo, até mesmo para a ciência (ibidem).

A epidemia é ocasião de encontro com a peste, afirma, que nos expõe ao medo, abre espaço para as nossas angústias indeterminadas e intensifica sintomas mais explícitos. Como já colocado antes nesse texto, tal qual Édipo, estamos frente à tarefa de enfrentar a peste com responsabilidade e inteligência: “Assim como Antígona, não devemos usá-la para ceder de nosso desejo e voltar ao esquecimento do trabalho. Não ceder ao custo contábil do valor das vidas inutilmente perdidas, nem das perdas irreconhecidas com seus lutos suspensos, adiados ou impedidos” (ibidem). Há um gesto solidário, deve-se haver – apesar de estarmos todos na ilha de Crise enquanto a epidemia perdurar, mas, embora sozinhos, não por isso solitários, finaliza o psicanalista, “deixados para trás, mas não abandonados, traídos por aqueles que deviam nos proteger, assim como Filoctetes”.

*


Quantas experiências difíceis caminham ao lado da pandemia. Tantos exílios, tantas perdas, tantas mortes... E tanto ainda a dizer. E no meio disso tudo: o silêncio, para dar algum contorno ao que se espalha no aberto da incompreensão.

Deixemos reverberar a esperança.

REFERÊNCIAS

BORGES, R. “Prefácio”. In: KON, N. M.; SILVA, M. L.; ABUD, C. C. (org.). O racismo e o negro no Brasil: questões para a psicanálise. São Paulo: Perspectiva, 2017. [Versão Kindle]

DEBS, S. “Origem da CABRA”. Disponível em: cabras.org > acesso em 01.12.20.

DUNKER, C. “A ética da psicanálise e a peste generalizada”. In: Cult: Ética em tempos de peste. 2020. [Versão Kindle]

KOLTAI, C. “A língua exilada”. In.: COSTA, A.; RINALDI, D. (org.). Escrita e psicanálise. Rio de Janeiro: Cia de Freud: UERJ, Instituto de Psicologia, 2007. pp. 361-369.

KOLTAI, C. “O racismo – um sintoma”. In: ______. Política e psicanálise. O estrangeiro. São Paulo: Escuta, 2000. pp. 107-124.

PONTALIS, J.-B. “Uma cara que não me agrada”. In: ______. Perder de Vista: da fantasia de recuperação do objeto perdido. Rio de Janeiro: Zahar, 1991. pp.34-46.

QUINET, A.; JORGE, M. A. “Prefácio”. In: ______ (org.). As homossexualidades na psicanálise: na história de sua despatologização. Rio de Janeiro: Atos e Divãs Edições, 2020. pp. 9-11.



[1] Psicóloga pela Universidade da Amazônia; psicanalista pelo Centro de Estudos Psicanalíticos (2010) e pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae (2015); mestre em Literatura e Crítica Literária pela PUC-SP (2019).



 
 
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