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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    60 Setembro 2021  
 
 
O MUNDO, HOJE

LANÇADA A COLETÂNEA PANDEMIA CRÍTICA


PETER PAL PELBART [1]

Saiu impressa a coletânea Pandemia crítica, com quase mil páginas, em coedição N-1 edições com o Sesc. Textos críticos, poéticos, xamânicos, reflexivos. Também desabafos, sátiras, pesquisas, ecos da aldeia global e local.


Juntos, os textos reunidos são testemunhos dos primeiros 123 dias dessa noite que não passa.

O que se revela através deles não é apenas o retrato de uma crise sanitária, mas de um mundo em colapso. A pandemia funcionou como um revelador fotográfico: o que estava debaixo de nosso nariz, mas não enxergávamos, apareceu à luz do dia – uma catástrofe não só sanitária, social, política e ambiental, mas civilizacional.

Desde o governo fascista até as desigualdades sociais, raciais, de gênero, das modalidades de predação do agronegócio até o Antropoceno, tudo vira aqui objeto de um olhar corrosivo.

Foi um esforço insano de edição – mas nada existiria não fosse um trabalho em rede, de afinidades, de antenagem, de contra-informação.

O material disponível em Pandemia crítica não pretende ser um registro objetivo, no modo de um afresco monumental de uma das maiores crises recentes enfrentadas pela humanidade, mas, por assim dizer, um mergulho na mente coletiva, quase no inconsciente nosso e do planeta neste momento que se prolonga indefinidamente.







Para saber mais:

Pandemia crítica:

https://www.google.com.br/amp/s/laboratoriodesensibilidades.wordpress.com/2020/03/25/pandemia-critica/amp/

N-1 edições: https://www.n-1edicoes.org

A seguir, oferecemos a todxs a leitura de um dos textos do livro – Monólogo do vírus - para degustação. Curiosamente, é um texto anônimo!





MONÓLOGO DO VÍRUS



Queridos humanos, parem com os vossos ridículos apelos à guerra. Parem de me lançar esses olhares de vingança. Desliguem a aura de terror com que embrulham o meu nome. Nós, os vírus, desde a origem bacteriana do mundo, somos o verdadeiro continuum da vida na Terra. Sem nós, vocês nunca teriam visto a luz do dia, nem mesmo a teria visto a primeira célula.

Nós somos os vossos ancestrais, como as pedras e as algas, e bem mais que os macacos. Nós estamos onde vocês estão e também onde não estão. Que pena que apenas reconheçam no universo aquilo que se vos assemelha. Mas, acima de tudo, parem de dizer que sou eu quem vos está a matar. Não estão a morrer por causa do que estou a fazer aos vossos tecidos, mas porque deixaram de cuidar dos vossos semelhantes. Se vocês não tivessem sido tão vorazes uns com os outros como foram com tudo o que vive neste planeta, ainda haveria camas, enfermeiros e ventiladores suficientes para sobreviver à devastação que causo nos vossos pulmões. Se não armazenassem os vossos velhos em casas moribundas e os vossos cidadãos saudáveis em ratoeiras de betão armado, também vocês não estariam lá. Se não tivessem transformado a ainda ontem exuberante, caótica, infinitamente povoada amplitude do mundo – ou melhor dito, dos mundos – num vasto deserto para a monocultura do Mesmo e do Mais, eu não teria sido capaz de me lançar à conquista planetária das vossas gargantas. Se durante o último século não se tivessem convertido praticamente todos em cópias redundantes de uma mesma forma insustentável de vida, não se estariam a preparar agora para morrer como moscas abandonadas na água da vossa civilização adocicada. Se não tivessem transformado os vossos ambientes em espaços tão vazios, transparentes e abstractos, podem ter certeza de que eu não estaria a mover-me à velocidade de um avião. Só estou a cumprir a sentença que vocês próprios pronunciaram há muito tempo. Perdoem-me, mas, tanto quanto sei, foram vocês que inventaram o termo “Antropoceno”. Reivindicaram toda a honra da catástrofe; agora que ela está acontecer, é tarde demais para renunciá-la. Os mais honestos de vós sabem bem disso: não tenho outro cúmplice que não a vossa própria organização social, a vossa loucura da “grande escala” e da vossa economia, o vosso fanatismo do sistema. Apenas os sistemas são “vulneráveis”. O resto vive e morre. Só há vulnerabilidade para aquilo que aspira a controlar, para a sua própria extensão e perfeição. Olhem para mim com cuidado: sou apenas a outra face da Morte que reina.

Por isso, parem de me culpar, de me acusar, de me perseguir. Parem de paralisar-se perante mim. Tudo isso é infantil. Proponho-vos que mudem de visual: há uma inteligência imanente na vida. Não precisam ser um sujeito para ter uma memória ou uma estratégia. Não é preciso ser-se soberano para decidir. As bactérias e os vírus também podem fazer com que chova ou que faça sol. Olhem para mim como o vosso salvador e não como o vosso coveiro. São livres de não acreditar em mim, mas eu vim desligar a máquina cujo freio de emergência vocês não encontram. Eu vim suspender a operação da qual vocês são reféns. Eu vim expor a aberração da “normalidade”. “Delegar noutros a nossa alimentação, a nossa protecção, a nossa capacidade de cuidar das nossas condições de vida tem sido uma loucura… Não há limite orçamental, a saúde não tem preço”: vejam como faço os vossos governantes, como o Emmanuel Macron, retraírem-se nas palavras e nos actos! Vejam como os reduzo à sua verdadeira condição de comerciantes miseráveis e arrogantes! Vejam como de repente se revelam não só como supérfluos, mas como nocivos! Para eles, vocês são apenas o suporte da reprodução do seu sistema, ou seja, vocês são menos que escravos. Até o plâncton é tratado melhor do que vocês.

Mas não desperdicem as vossas energias reprovando-os ou atacando as suas limitações. Acusá-los de negligência é dar-lhes mais do que eles merecem. Perguntem-se antes como pôde parecer tão confortável deixá-los governar. Louvar os méritos da opção chinesa por oposição à opção britânica, da solução imperial-legítima por oposição ao método darwinista-liberal, é não entender nada de um ou outro, nem do horror de um ou outro. Desde Quesnay, os “liberais” sempre olharam invejosamente para o Império Chinês; e continuam a fazê-lo. Eles são irmãos siameses. Que um vos confine para vosso próprio bem e o outro para o bem da “sociedade” consiste em esmagar, de forma equivalente, o único comportamento não-nihilista neste momento: cuidar de si mesmo, daqueles que amamos e do que amamos naqueles que não conhecemos. Não deixem que aqueles que vos levaram ao abismo finjam tirar-vos dele: eles só vos prepararão um inferno mais perfeito, um túmulo ainda mais profundo. No dia em que puderem, patrulharão o além com os seus exércitos.

Agradece-me, sim. Sem mim, por quanto mais tempo fariam passar como necessárias todas estas coisas aparentemente inquestionáveis, cuja suspensão é imediatamente decretada? A globalização, as competições, o tráfego aéreo, as restrições orçamentais, as eleições, o espectáculo das competições desportivas, a Disneylândia, os ginásios, a maioria das lojas, o parlamento, o encarceramento escolar, as aglomerações de massas, a maior parte dos trabalhos de escritório, toda essa sociabilidade inebriada que é apenas o contrário da angustiada solidão das mónadas metropolitanas. Afinal nada disto é necessário quando o estado de necessidade se manifesta. Agradeçam-me a mim o teste da verdade que vão passar nas próximas semanas: vão finalmente viver a vossa própria vida, sem os milhares de subterfúgios que, mal ou bem, sustentam o insustentável. Ainda não se tinham dado conta de que nunca tinham sido capazes de instalar-se na vossa própria existência. Estão entre caixas de cartão e não o sabiam. Agora vão viver com os vossos entes queridos. Vão viver em casa. Vão parar de estar em trânsito rumo à morte. Podem odiar o vosso marido. Podem odiar os vossos filhos. Podem ter vontade de fazer explodir o cenário da vossa vida quotidiana. A verdade é que já não estavam neste mundo nessas metrópoles de separação. O vosso mundo já não era habitável em nenhum dos seus pontos senão em fuga constante. Tinham de se atordoar com o movimento e a distracção à medida que o hediondo ganhava terreno. E o fantasmagórico reinava entre os seres. Tudo se tinha tornado tão eficaz que já nada fazia sentido. Agradeçam-me por tudo isto e sejam bem-vindos à terra!

Graças a mim, por um tempo indefinido, não trabalharão mais, os vossos filhos não irão mais à escola, e ainda assim será o oposto de férias. Férias é aquele espaço que deve ser preenchido a todo custo enquanto se espera pelo ansiado retorno ao trabalho. Mas este espaço que se abre diante de vós, graças a mim, não é um espaço delimitado, é uma imensa abertura. Eu vim para vos perturbar. Nada vos garante que o não-mundo de antes vai voltar. Talvez todo este absurdo lucrativo chegue ao fim. Se vocês não forem pagos, o que pode ser mais natural do que deixar de pagar a renda? Porque é que alguém que não pode mais trabalhar deve continuar a pagar prestações aos bancos? Não é suicida viver onde nem cultivar num jardim se consegue? Não é porque vocês não têm dinheiro que não vão comer, e quem tem o ferro tem o pão, como Auguste Blanqui costumava dizer. Agradeçam-me: coloco-vos ao pé da encruzilhada que tacitamente estruturou a vossa existência: economia ou vida. A decisão é vossa. O que está em jogo é histórico. Ou os governantes vos impõem o seu estado de excepção ou vocês inventam o vosso. Ou vocês se apegam às verdades que estão a vir a lume ou colocam a cabeça no cepo. Ou vocês aproveitam o tempo que vos estou a dar agora para imaginar o mundo do depois, a partir das lições do colapso a que estamos a assistir, ou ele será completamente radicalizado. O desastre pára quando pára a economia. A economia é o desastre. Esta era a tese antes do mês passado. Agora é um facto. Ninguém consegue ignorar quanta polícia, quanta vigilância, quanta propaganda, quanta logística e quanto teletrabalho será necessário para suprimi-lo.

Perante mim, não cedam nem ao pânico nem à negação. Não cedam à histeria biopolítica. As próximas semanas vão ser terríveis, esmagadoras e cruéis. Os portões da Morte estarão bem abertos. Eu sou a mais devastadora produção de devastação em produção. Estou aqui para trazer os niilistas de volta ao nada. Nunca mais a injustiça deste mundo será tão flagrante. É uma civilização, e não vocês, que eu venho enterrar. Aqueles que querem viver terão de criar novos hábitos para si próprios. Evitar-me será a oportunidade para esta reinvenção, para esta nova arte da distância. A arte de cumprimentar, na qual alguns eram suficientemente míopes para ver a própria forma da instituição, em breve deixará de obedecer a qualquer rótulo. Caracterizará os seres. Não o façam “pelos outros”, pela “população” ou pela “sociedade”, façam-no pelos vossos. Cuidem dos vossos amigos e dos vossos amores. Repensem com eles, soberanamente, uma forma de vida justa. Criem aglomerados de boa vida, expandam-nos e eu não terei poder sobre vocês. Este é um apelo não a um retorno maciço da disciplina, mas da atenção. Não ao fim do descuido, mas ao fim da negligência. Que outra forma havia para vos lembrar que a salvação está em cada gesto? Que tudo está no ínfimo.

Tive de me render às evidências: a humanidade apenas coloca as questões que já não pode mais não colocar.

Publicado no Lundimatin 16 maio 2020, anônimo.





[1] Filósofo, ensaísta, editor e professor titular na PUC-SP.




 
 
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