17 de março de 2016
ABERTURA
ANA MARIA SIGAL[1]
Caros alunos,
Estamos aqui reunidos para recebê-los, ao iniciar este novo ano de 2016. Vamos nos apresentar para que conheçam a equipe com a qual vocês irão trabalhar. Embora cada seminário seja conduzido por um professor, somos um conjunto de psicanalistas que pensa e divide as questões do curso coletivamente. Nós nos reunimos permanentemente para criar melhores condições de levar adiante nossa tarefa. Lucía Barbero Fuks e eu, Ana Maria Sigal, somos as fundadoras e coordenadoras do curso; junto a nós, nossos professores, que coordenarão os trabalhos nos seminários e são a alma da transmissão porque transitam com vocês no dia a dia com o texto – Marta Azzolini, Iso Gerthman, Daniela Danesi, Alessandra Sapoznik, Natalia Gola e Sílvia Nogueira -, alguns dos quais estão conosco desde a sua fundação. Eliane Berger não coordenará seminário neste ano, pois se ocupará de outras tarefas, tais como coordenar aulas especiais e reunir-se com os alunos para trabalhos complementares.
No segundo ano se encontram Soraia Bento, Christiana Freire e Noemi Kon, que não estão aqui presentes porque as aulas do segundo ano já começaram.
A marca da história
A psicanálise tem a marca da história; as falas da Lucía e a minha, em portunhol, evocam essa história que fica registrada no discurso, assim como no inconsciente: fantasia e vivência fazem marcas que não podemos subestimar. Em 1976 chegamos da Argentina, país arrasado por um regime ditatorial que impedia o ensino e o exercício da psicanálise de forma ética. Para estes regimes, os psicanalistas sempre foram suspeitos e sempre foram expulsos – como ocorreu na Alemanha de Hitler, na Rússia, na Espanha de Franco e em outros países, porque a liberdade e a desalienação com que opera nosso saber acabam virando ameaça, ao fazerem com que o sujeito seja mais regido pelo desejo que pelo terror e pelo submetimento.
Nosso curso se insere dentro de uma estrutura maior, a do Instituto Sedes Sapientiae. Este instituto também tem uma marca política específica na história do país: foi fundado e dirigido por muito tempo pela Madre Cristina, uma figura significativa na democracia, que lutou corajosamente contra a ditadura militar brasileira, em favor da Anistia.
Foi aqui e neste contexto que se iniciou o Curso de Psicanálise. Temos um livro, História do Departamento de Psicanálise, no qual encontrarão detalhes de nosso percurso, que pode ser consultado em sua íntegra no site do Departamento de Psicanálise.
O Sedes tem uma carta de princípios que indica as coordenadas ético-políticas da instituição e nosso curso se solidariza e se estrutura em concordância com estes princípios. A psicanálise, como saber que desaliena o sujeito e abre perspectivas de liberdade, toma parte dos saberes aqui transmitidos. Enunciarei só alguns dos princípios que gostaria de destacar e que imprimem ao nosso curso um sentido fundamental dentro desta instituição. O Instituto se propõe a:
III- Constituir-se em opção alternativa desvinculada da estrutura acadêmica tradicional para explorar, em todas as direções, a liberdade de pensamento e expressão;
VII- Oferecer alternativas e abrir campos de trabalho aos que estejam empenhados no desenvolvimento de projetos vinculados à verdadeira promoção do homem.
Trabalhar com a psicanálise de forma inserida na realidade social, oferecendo elementos para sua transformação é uma boa expressão para falar sobre a psicanálise que desejamos transmitir. Ser desvinculado da estrutura acadêmica tradicional faz um sentido fundamental para nosso curso, pois Freud sempre questionou o ensino universitário da Psicanálise. E oferecer o saber psicanalítico para todos aqueles empenhados no desenvolvimento de projetos vinculados à promoção do homem - não só àqueles que desejam ser analistas - faz parte de uma de nossas aspirações. A estes princípios éticos mais gerais se soma a ética da psicanálise, imbricada na sua própria teoria, na concepção de sujeito, na forma de pensar a doença e a saúde, o normal e o patológico, no conceito de pulsão com um objeto vicariante, móvel, que o descola da determinação biológico-instintivista permitindo pensar a sexualidade como singularidade que escolherá seus objetos segundo sua história e não pelo instinto ou por seus aspectos normativos, na descoberta da sexualidade infantil e na concepção de um sujeito cindido que inevitavelmente tem que se deparar com a falta.
Formando parte do Sedes, temos nosso Departamento de Psicanálise que nos oferece um caminho de formação permanente, um espaço de reflexão para nosso saber. Dentro do Departamento e entre seus diversos espaços de formação se encontram três cursos:
O Curso de Psicanálise – um curso de especialização, de formação de analistas, com 4 anos de duração – se oferece como uma trama, uma rede de sustentação pela qual se circula, um espaço compartilhado de discussão de ideias e múltiplos discursos transmitidos, que tiram o analista do isolamento no processo formativo. Ao conceber a psicanálise como ofício e não como profissão, não se normatiza a conduta de quem conosco quer empreender este caminho. Não serão normas burocráticas as que vão dar conta do percurso, não se oferece titulação, nem autorização para o exercício de nosso oficio e é justamente isto o que determina que a psicanálise como profissão não deva ser regulamentada. São estas as condições éticas que impedem que a psicanálise seja regulamentada por uma lei externa a si própria, uma lei jurídica ou de Estado, ou uma deontologia profissionalizante elaborada por um conselho profissional, CRP ou CRM, que diga quem é ou não um psicanalista. Como pode se regulamentar um tratamento psicanalítico? Que lei pode determinar uma alta, qual é o conhecimento teórico que responde à verdadeira psicanálise? Há uma escola teórica que seja mais psicanalítica que outra? Há uma instituição que seja a legítima representante da psicanálise? Definitivamente não.
O Curso de Psicopatologia Psicanalítica e Clínica Contemporânea é um curso de aprimoramento de dois anos de duração, que transmite a psicanálise que aborda as formas de sofrimento psíquico ligadas aos novos modos de subjetivação.
Nosso curso Clínica Psicanalítica: Conflito e Sintoma, também de aprimoramento, tem um ano de duração com opção de um segundo ano para aqueles que desejam seguir aprofundando os pilares fundamentais da teoria. A psicanálise que transmitimos tem sua linha fundamental baseada no pensamento freudiano e nos interessa abordar a estrutura da subjetividade como singularidade, inserida na cultura através das determinações da época e dos processos histórico-sociais. Pensamos uma psicanálise que oferece elementos para uma prática institucional relacionada à saúde pública, interligada com a arte, a literatura, a filosofia e outros campos do saber com os que se enriquece mutuamente. Temos contatos com a Clínica Psicológica do Sedes, onde oferecemos atendimento à população que nos procura. Não é uma clínica-escola e sim uma clínica social, de atendimento das necessidades dos que nos procuram. Oportunizamos ainda o acesso às publicações do Departamento, a revista Percurso e o Boletim Online, assim como aos vários livros produzidos pelo Curso e pelo Departamento.
Aos 19 anos de existência nosso curso sem dúvida veio a ocupar um espaço necessário no campo da transmissão: a cada ano mais profissionais nos procuram, buscando um espaço no qual possam começar ou aprofundar seus conhecimentos sobre a teoria psicanalítica, seja a fim de obter elementos que fundamentem o exercício de uma prática profissional não analítica, seja como um caminho que se abra à iniciação de uma formação psicanalítica. De fato vocês poderão encontrar colegas com estes dois diferentes interesses. Entre nós o conhecimento se transmite em forma de seminários oferecidos a grupos de cerca de 15 integrantes. Indicam-se textos que se discutem utilizando a metodologia psicanalítica e isto quer dizer que se confrontam e interrogam os diferentes conceitos pois nenhum deles se institui numa forma única de compreensão coagulada. O próprio Freud constrói e desconstrói seus textos, faz adendos, amplia-os e até mesmo modifica alguns conceitos. Assim encontramos, ao longo de sua obra, duas teorias da angústia, três teorias pulsionais, diferentes status dados à teoria da sedução e assim por diante. As diversas escolas psicanalíticas se apóiam nestas diferenças para dar mais força a uns conceitos que a outros. A característica comum é que todas partem da ideia de inconsciente.
É importante destacar que não existe continuidade garantida com o Curso de Psicanálise, mas que aqueles que desejem vir a fazer o curso de formação encontrarão sim aqui o acesso a uma base teórica prévia exigida por aquele curso, a ser avaliada de forma independente. Nosso curso tem o caráter de transmissão da teoria psicanalítica, o que constitui um dos elementos do tripé para a formação. O curso de formação exige uma prolongada análise pessoal e a prática clinica supervisionada.
A formação de um analista, como vocês bem sabem, está desvinculada do ensino universitário. Não existe uma profissão nem um título de psicanalista oferecido pela universidade porque um dos pilares da formação, a análise pessoal, não pode ser regido institucionalmente. Mais ainda, nós somos da opinião de que nem a própria instituição de formação pode exercer tal controle, portanto somos contra a análise didática, ainda que consideremos a análise pessoal como viga mestra da formação, junto com a formação teórica e a prática clínica supervisionada.
Este curso tem como característica fundamental oferecer aos alunos um percurso da obra de Freud, desencadeado a partir de dois conceitos que permitem um mergulho nos alicerces do pensamento freudiano. É a partir do Conflito e do Sintoma que faremos nossa entrada na teoria psicanalítica. Entendemos tratar-se de uma impossibilidade estudar autores pós-freudianos sem conhecer Freud.
Nosso objetivo é iniciar os alunos numa reflexão que pretende oferecer um método de investigação, uma forma de abordar o modo de estruturação do sujeito e as patologias que podem ocorrer nos percalços desta subjetivação. A psicanálise nasceu interrogando-se pela patologia (com os Estudos sobre a histeria) e avançou no seu caminho, adentrando-se nas determinações que nos colocam frente às questões da constituição do sujeito. Pergunta-se pelo sintoma, pelo sonho, pelos lapsos, atos falhos e, através destas formações, nos conduz à descoberta de um conceito que revolucionará o conhecimento do homem, o conceito de inconsciente, o qual implica no descentramento da consciência. Esta intermedia o contato com a realidade, mas de forma alguma é autônoma, sendo determinada pelos elementos que partem do inconsciente como um estrangeiro em mim.
Hoje, depois de mais de 100 anos de sua aparição, a psicanálise continua sendo um saber polêmico porque, ao tirar o tema das paixões, da loucura, da sexualidade e da relação com o outro dos campos da medicina e da neurobiologia, nos coloca diante de uma ciência que escapa do campo do empírico, da medição, do observável, das evidências, para colocar o homem frente a uma verdade inatingível, produto de sua singularidade.
A psicanálise nos mostra um homem que não está limitado ao seu destino biológico. Freud pensa um homem que é produto de sua história, dos percalços pelos quais transcorreu sua existência e das marcas que estes deixaram; apresenta-nos um ser de palavra, marcado pela relação com o outro. Confronta-nos com a realidade, mas atribui à realidade psíquica e à fantasia um valor preponderante. Põe-nos em contato com um ser em conflito, que produz sintomas, entendendo os sintomas não só como patologia, mas como expressão de transação de compromisso entre o inconsciente e o Eu. O conflito é uma forma vital de estar no mundo. O sintoma é compreendido como uma forma de expressão, a ele se lhe deve uma escuta que não esta aí para apagá-lo, esta aí para permitir saber do que o outro fala - isto toma parte da ética da psicanálise e é o que nos diferencia das terapias comportamentais.
Ao falar de conflito, a psicanálise nos mostra que há uma luta, um movimento permanente que é a origem da própria vida psíquica. A falta deste movimento está regida pela pulsão de morte que nos empurra à quietude, ao Nirvana, à repetição incansável daquilo que não encontra expressão possível na palavra.
Numa era pós-moderna busca-se um homem feliz, um homem que circula pela vida sem enfrentar sua própria natureza, sua angústia, seu confronto com a realidade, sua própria limitação. É uma época na qual o fugaz quer marcar a história, é um momento em que se tenta apagar o conflito ao invés de reconhecê-lo e dar às pulsões em confronto uma via de saída que desaliene o sujeito e expanda suas possibilidades. Trata-se de um momento social no qual os medicamentos pretendem dar conta dos distúrbios da alma para apagá-los. Ao renegar o conceito de conflito e de representação psíquica, deixa-se o homem reduzido às substâncias químicas.
O conceito de pulsão em Freud nos ajuda a sair do impasse entre biológico e psíquico, já que está destinado a articular ambos os domínios. A partir da elaboração do conceito de inconsciente não é preciso atribuir o mundo do não conhecido às forças superiores, religiosas ou demoníacas. A descoberta do inconsciente traz para o campo da racionalidade algo que poderia ser do campo das forças ocultas ou da religião.
Deslocar a produção humana do âmbito da consciência, mostrar que o homem não possui domínio sobre toda sua produção é uma afronta narcísica ao racionalismo da época. Em um trabalho instigante chamado Uma dificuldade da psicanálise (1917), Freud encara uma conversa com o Eu, ao qual confronta - por seu desconhecido, por sua impotência frente àquilo que ele mesmo expulsou para evitar os conflitos que o opõem à moral sexual da época, caracterizada como uma nociva coerção aos impulsos sexuais, que permanentemente produzem efeitos na sua luta por retornar. O Eu tropeça em sua impossibilidade de ser dono e senhor da alma e chegam a ele pensamentos que o dominam, que não sabe de onde saem, que não consegue expulsar ao ver-se assaltado por impulsos que parecem alheios. Esta afronta ao amor próprio, que tira a consciência de cena, está fundamentada pela descoberta do inconsciente, que significa um importantíssimo passo para a ciência e separa definitivamente a psicanálise das teorias cognitivas que apelam ao Eu como o centro sobre o qual se deve trabalhar frente à patologia.
Desde seu nascimento, a partir de Freud, e no decorrer de sua história a psicanálise tem visto nascer e crescer, em seu próprio seio, correntes, discussões, associações e pontos de vista diferentes. Entretanto, não há dúvida de que existe algo que é comum a todas essas discussões e que constitui o coração da psicanálise, e é esse algo em comum que delimita a fronteira entre ela e todas as outras disciplinas. Há certos inegociáveis para a psicanálise, sobre os quais as diversas teorias psicanalíticas concordam:
1) O reconhecimento da centralidade do inconsciente e de sua manifestação (lapso, ato falho, sonho) como chave para a compreensão do comportamento humano;
2) A referência a uma configuração – que chamamos de método e é específica da análise – que, por meio da associação livre e do trabalho de interpretação, permite a emergência do inconsciente, a superação da resistência e o posicionamento do sujeito frente à sua experiência e frente ao seu próprio desejo;
3) A importância e o valor dado à transferência;
4) O fato de que a análise pessoal e, portanto, o conhecimento do próprio inconsciente constitui um instrumento privilegiado e uma etapa fundamental para aqueles que, por sua vez, desejam tornar-se psicanalistas.
Esses quatro elementos nos levam à conclusão de que existe um amplo consenso por parte dos psicanalistas e daqueles que, por várias razões, se ocupam da psicanálise. Há 15 anos se constituiu um movimento chamado Articulação das Entidades Psicanalíticas Brasileiras, formado por instituições de diversas escolas – Sociedade de Psicanálise afiliada a IPA, várias instituições lacanianas e instituições freudianas que lutam contra a regulamentação da psicanálise – as quais, alinhadas, levam em frente políticas comuns referentes ao campo, tomando estes elementos como fundamentos mínimos sobre os quais todos trabalhamos.
A Psicanálise se constitui radicalmente como outro saber em relação a outras disciplinas que se ocupam da psique humana. Desde sua origem a psicanálise faz do conflito psíquico o núcleo central do estudo das neuroses. Se a moral é caracterizada como responsável pela coerção nociva dos impulsos sexuais, o reconhecimento de uma sexualidade infantil ainda hoje continua oferecendo resistência. O homem sempre buscou compreender os motivos de suas condutas e decisões. A psicanálise propõe buscar estas determinações no interior de um pensamento que nos questiona a cada passo e nos impulsiona na busca de novos conhecimentos, um sistema de pensamento que busca sua coerência interna e não uma verdade única, fechada, o que permite que a partir dela tenham se desenvolvido várias escolas. Qualquer pensamento dogmático, qualquer autor que se diga dono de uma verdade única está na contramão da ética da psicanálise. Por esta razão queremos oferece-lhes um mergulho nas fontes do pensamento, para entender os diversos caminhos pelos quais transcorreu esta ciência. Estamos em um momento histórico no qual o avanço das religiões, a exaltação da psiquiatria e a neurobiologia estão querendo atribuir-se pleno poder frente às condutas que se geram no ser humano. A psicanálise só afirma seus alicerces aprofundando sua pesquisa e difundindo seu conhecimento para permitir que o homem seja visto de modo mais integral, conservando aquilo que é sua marca nos processos subjetivos.
Por isto, escolher o conflito e o sintoma como forma de adentrar o pensamento psicanalítico é colocar o homem a partir de suas angústias e abordá-lo na sua dimensão de fragilidade.
O conhecimento que abordamos não se mantém estático e coagulado; no decorrer do tempo novos paradigmas nos levam a refletir sobre o que permanece, o que muda, o que se pode reler ou transformar na teoria, mas a descoberta do inconsciente continua sendo o pilar sobre o qual se constitui nosso saber. É com satisfação que lhes convidamos a percorrer um caminho construído sobre diversas histórias, a de Freud, a da Psicanálise, a da Instituição e a história pessoal que os conduziu hoje até aqui. Passo a palavra a Lucía Fuks que nos falará da temática teórica do conflito e do sintoma e sua evolução no pensamento freudiano.
AULA INAUGURAL: CONFLITO E SINTOMA
LUCÍA BARBERO FUKS[2]
No longo caminho da psicanálise, a teoria psicanalítica, denominada inicialmente teoria geral das neuroses, se desenvolve a partir de um modelo explicativo do sintoma em termos de conflitos e defesas psíquicas. Surge como um método que permite decifrar o sentido do sintoma e reconstruir sua história, explicando sua emergência e sua significação para o devir existencial da pessoa em análise, e para sua vida em sentido amplo.
A psicanálise constrói uma concepção e uma teoria do sintoma neurótico como produto da elaboração de um conflito psíquico intrassubjetivo. Difere radicalmente da concepção do sintoma na medicina, como signo de uma doença ou disfunção presente no organismo. Para a medicina, sintomas são signos objetivos e mensuráveis, como tosse, febre, dor. Para a psicanálise, no entanto, implicam uma dimensão subjetiva, um paciente que fala ao médico, que relata o que sofre.
Essa dimensão subjetiva é problemática porque dá lugar ao surgimento do equívoco, do engano, da simulação. A psicanálise lida com tais variáveis de uma forma muito diferente de como lidaram a medicina e a religião, sempre dispostas a rejeitá-las de partida, a negar-lhes a importância e o alcance. A psicanálise, por sua vez, prefere concebê-las como verdades, como conteúdos positivos, válidos, de uma mensagem inconsciente.
O sintoma é o fenômeno que nos instala imediatamente no campo da clínica psicanalítica: é aquilo que molesta, incomoda, provoca desprazer e dor, aquilo que conduz as pessoas ao consultório. Para que seja possível a entrada em análise, é necessário que o sujeito tenha suas razões. É claro que nem sempre essas razões se revelam desde o início como sintomas, mas é preciso que o sujeito tenha um problema a resolver, que deseje se dirigir a um outro que o ajude a responder a alguma questão. É preciso, então, que “algo não funcione”.
Outro elemento importante a considerar é que o sintoma, fora da crise, satisfaz o sujeito, que nessas condições não procura análise. Trata-se, a princípio, de uma mensagem congelada, que está fora de comunicação e de intercâmbio com o outro. Para que o sintoma leve à análise é necessário que esteja desestabilizado, que seu equilíbrio se descompense. Isso se manifesta na forma de uma queixa, de um sofrimento.
Para a psicanálise, o sintoma é um fenômeno subjetivo que constitui não só o sinal de uma doença, mas também, e fundamentalmente, a expressão de um conflito inconsciente, consequência das exigências irreconciliáveis entre os interesses do ego e os da sexualidade. O sintoma é uma formação do inconsciente, como o sonho e o lapso, que expressa um sentido mascarado. Freud demonstrou que todos esses “erros” teriam um ponto em comum: o fato de que não aparecem por acaso e sim seguindo as leis do Inconsciente. Por essa perspectiva o ato falho seria, paradoxalmente, não um “erro” de leitura ou de palavra, mas um ato executado com êxito.
Freud faz uma correlação entre o mecanismo de formação do sonho e o mecanismo de formação do sintoma, estabelecendo analogias e diferenças. Assim como os sonhos, os sintomas são realizações de desejos. O sintoma só aparece quando dois desejos opostos, provenientes cada um de um sistema psíquico diferente, podem coincidir em uma mesma expressão. O sintoma mostrará realizados, ao mesmo tempo e de maneira encoberta, tanto o desejo inaceitável como o conseguinte castigo que o sujeito deseja se impor. Os sintomas são, para Freud, formações substitutivas de satisfações sexuais e produtos transacionais entre sistemas em conflito, como acabamos de ver.
Normalmente, durante o estado de vigília, os desejos inconscientes estão sob controle pelo império do sistema pré-consciente. Durante o sono, o pré-consciente recolhe suas cargas e se entrega ao desejo de dormir, afrouxando o controle dos desejos inconscientes. Por meio dos sonhos, a realização de desejos é autorizada na medida em que se acate a deformação ou desfiguração necessária, para que o pré-consciente possa manter o estado de recolhimento e dormir. Por isso, Freud afirmou que os sonhos são o guardião do sono, o guardião do dormir.
Afirma também que, no sintoma, não se cria nenhum mecanismo novo e diferente que seja determinante dessa formação patológica. Será o mesmo aparelho psíquico que dará conta de um ou outro caminho; apenas a dinâmica é diferente. No sonho, como vimos, estando o pré-consciente entregue ao desejo de dormir, o desejo inconsciente se encaminha para sua realização alucinatória, expressando-se em uma linguagem imagética resultante dos processos de condensação e deslocamento que deformam o conteúdo inicial e permitem driblar a censura. Quando esse processamento fracassa, o que se produz é um sonho de angústia.
Existe uma característica que diferencia o sintoma das outras formações do inconsciente: a persistência. O lapso, o chiste, o sonho são fugazes. O sintoma tem certa inércia, certa durabilidade. É difícil desfazer um sintoma.
Essa inércia provém da pulsão, dessa exigência que o alimenta de forma constante. Já em 1905, Freud afirmava que os sintomas constituíam uma satisfação sexual substitutiva: os sintomas são a prática sexual dos enfermos. São uma forma substitutiva de satisfação do desejo infantil recalcado. O sintoma tenta cumprir uma função de equilíbrio entre o desejo e a defesa. Dizemos tenta, porque falha. Esse ideal de equilíbrio não se atinge nunca, porque a pulsão sempre exige mais e não existe uma satisfação pulsional completa. Embora o sintoma seja uma forma de satisfazer a pulsão, ele não o alcança totalmente.
O sintoma está articulado a uma verdade. É aqui que a psicanálise se separa da ideia da histeria como mentirosa e simuladora. Freud acredita na verdade do sintoma histérico. A palavra da histérica havia sido combatida historicamente pela Inquisição, antes ainda de ser combatida pela Medicina. A psicanálise oferece a palavra às histéricas, e esse simples gesto já tem um efeito terapêutico (Freud, 1905).
Assim, o método psicanalítico gera uma clínica que se mostra, em alguns pontos, totalmente nova. O eixo da clínica psicanalítica é o próprio sujeito. O sintoma é aquele que o sujeito reconhece como tal, isto é, aquilo que incomoda a ele próprio. A doença é a que o sujeito relata, não a que o médico diz que ele padece.
Na psicanálise, através do sintoma, uma verdade recalcada ou recusada encontra sua expressão. Seja porque o dispositivo analítico se baseia na fala, seja porque a interpretação e a teorização permitem recuperar uma lógica subjacente à insensatez, uma razão na sem-razão, a fala do louco tende a ser reinvestida. Ela reencontra um grau de validez como algo que remete a uma história, e que merece e requer ser ouvido e considerado. Nesse sentido, o delírio de um psicótico equivaleria, para sua compreensão, a um sonho.
O paradoxo é que o sintoma surge como uma via possível para que o aparelho psíquico em conflito obtenha certo equilíbrio. Ou seja, ele cumpre uma função de formação de compromisso. Os sintomas não se contentam mais em traduzir o "mau funcionamento" de um órgão ou de um aparelho: eles exprimem uma mensagem que se dirige a um destinatário, ainda que o conteúdo da mensagem não seja conhecido pelo emissor.
Os sintomas neuróticos são, portanto, uma mensagem cujo sentido emana do inconsciente. A neurose é o resultado da emergência de um desejo inconsciente que deflagra um conflito cuja solução se busca através de uma defesa que acaba sendo patógena. Os sintomas expressam as ramificações desse desejo, não acolhido (recalcado), e os diferentes mecanismos de manifestação que eles utilizem darão lugar às diferentes neuroses.
Recuperar a história ocupa um lugar fundamental em uma análise. Como psicanalistas, conduzimos o paciente a historizar a repetição, tornando-a lembrança. Estabelecemos relações entre o passado que se rememora e sua repetição. Como o trabalho de rememoração inclui necessariamente vencer as resistências e mobilizar os recalques, o preenchimento das lacunas da memória consciente desfaz a defesa patógena tornando desnecessária a produção de sintomas.
Aqui tentamos sintetizar o que seriam as primeiras formulações teóricas por meio das quais Freud começou a explicar o sintoma e dar fundamento à psicopatologia e à clínica psicanalítica em seu conjunto. Em sua concepção, tributária a uma compreensão do funcionamento geral do psíquico, o conflito, em suas diversas formulações possíveis, é presença e até condição constitutiva de tudo aquilo que se possa considerar humano.
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[1] Psicanalista. Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, professora do Curso de Psicanálise e co-coordenadora do curso Clínica Psicanalítica: Conflito e Sintoma.
[2] Psicanalista. Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, professora do Curso de Psicanálise e co-coordenadora do curso Clínica Psicanalítica: Conflito e Sintoma.
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