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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    39 Setembro 2016  
 
 
NOTÍCIAS DO SEDES

IV COLÓQUIO DE PSICANÁLISE COM CRIANÇAS


JULIA EID [1] [2]


Os Colóquios de Psicanálise com Crianças vem sendo realizados desde 2009, e desde 2012 a cada biênio, pelo Departamento Psicanálise com Crianças do Sedes. Cada Colóquio propõe um tema chave sobre o qual os trabalhos apresentados irão se debruçar, dentro de diferentes eixos que são desdobramentos do tema principal. Diferentemente dos eventos anteriores em que o tema principal fora baseado em texto-chave da obra freudiana (100 anos do caso Hans; 100 anos da dinâmica da transferência) a escolha do tema-pilar deste colóquio se deu de uma forma diferente. Nesta 4a edição, o eixo central do colóquio - a sexualidade da criança - foi escolhido a partir das inquietações que nosso grupo - o setor de eventos do mesmo departamento - vinha experimentando dentro dos diversos espaços de trabalho que ocupamos.

Se a sexualidade da criança teve uma função disruptiva à época de seu desvelamento, o que pensar da sexualidade da criança na atualidade? A criança-anjo da era vitoriana hoje transborda sexualidade. Assistimos a uma brutal sexualização da infância: concursos de beleza, sutiãs para meninas, salto alto para bebês, coaching infantil, entre outros. Como pensar os desdobramentos da subjetividade em tempos da "ditadura da criança" e do enfraquecimento dos adultos?

Como pensar as transformações do lugar da criança na família, na sociedade e na cultura? Que marcas esta tão atual cultura do narcisismo tem produzido nas crianças desta época? De que maneira o corpo da criança vem circulando numa cultura em que (quase) tudo se tornou mercadoria?

Neste início do século XXI retomamos um importante questionamento de Freud: anatomia é destino? Vivemos um rompimento do paradigma da questão de gênero e uma grande abertura para pensar sobre todas as suas definições. Acompanhamos famílias que abrem espaço para que as crianças façam suas escolhas, ou ainda a instituição do gênero neutro e a criação de um pronome neutro em alguns países. Como pensarmos uma mudança de identidade de gênero numa criança de dois anos? Como escutar o pedido da criança sem levá-lo necessariamente ao pé da letra? O tempo do futuro instalado na antiga pergunta "o que você vai ser quando crescer" parece ter sido encurtado. O que permanece de nossas teorias sexuais para a prática atual? Se a sexualidade transbordante de hoje ocupa mais espaço, sabemos que não há necessariamente maiores recursos simbólicos para processá-la. Os instrumentos que a psicanálise têm dão conta destas questões?

A partir de tantos questionamentos, lançamos a convocatória para o envio de trabalhos que aconteceriam em sessões coordenadas com mesas simultâneas. Dentro daqueles que recebemos, 40 trabalhos foram selecionados pela comissão científica. Além disso, convidamos palestrantes tanto de dentro quanto de fora do nosso departamento para nos ajudar a pensar sobre questões tão importantes para a clínica psicanalítica com crianças.

Na 6a feira (26/08) à noite abrimos o evento com a mesa A sexualidade da criança na história e na cultura com as psicanalistas Maria Cristina Perdomo e Daniele John. Perdomo, psicanalista e professora do Departamento de Formação em Psicanálise, articulou os pensamentos de Freud, Laplanche e Silvia Bleichmar, ancorando os alicerces fundamentais da teoria freudiana e organizando um eixo de pensamento a partir do qual podemos pensar as transformações que vêm acontecendo no que diz respeito ao exercício da sexualidade. Esta ideia se amplia a outras mudanças culturais da contemporaneidade: a família, diz ela, estaria em desordem (citando Roudinesco) ou em uma outra ordem?

Ainda na 6a feira à noite, Daniele John, psicanalista e professora convidada do Departamento Psicanálise com Crianças nos apresentou vinhetas clínicas de alguns pacientes que estavam com 12 anos - idade que ela define como "limbo": não são mais crianças, ainda não são adolescentes. As situações clínicas expressam este delicado momento que esses jovens atravessam em que o corpo, mais do que nunca, é desobediente. Daniele falou ainda sobre crianças trans e levantou algumas questões: no diagnóstico dessas crianças que realizam a transição ainda na infância é levada em conta a possibilidade de a criança estar alienada no desejo parental? Ou seja, que um menino que se reconhece como menina poderia estar satisfazendo um desejo dos pais? É possível escutar essas crianças sem ter que rapidamente rotulá-las de trans e encaixá-las no gênero com o qual declaram identificar-se? Daniele chama a nossa atenção para o fato de essas crianças, ao fazerem essa transição (ainda sem intervenção química), se identificam com algo muito estereotipado. Será que é possível, nos dias de hoje, deixar algo em suspenso?

Na discussão com o público, as questões de gênero rapidamente tomaram conta do auditório! Vemos como estamos apenas começando a pensar sobre este tema tão pulsante, tão polêmico e tão urgente! Um dos pontos levantados diz respeito aos embates entre psicanalistas e psiquiatras no que concerne ao diagnóstico e intervenção clínica nestes casos. Fomos todos dormir de cabeça quente...

Sábado foi um extenso dia de trabalho. Começamos com Luciana Pires e Luis Claudio Figueiredo na mesa Como pensar o complexo de Édipo hoje. Em sua fala, Luciana procurou destacar o que seria a célula mínima que sustenta o complexo de Édipo e cita Bleichmar: é o modo como cada cultura pauta os limites da apropriação do corpo da criança pelo adulto. Vemos que quando o foco é a sexualidade da criança, Silvia Bleichmar é repetidas vezes evocada.

Luciana relatou o caso de uma mãe que opta por criar um/a filho/a sem revelar ao mundo o sexo da criança, justificando sua escolha pelo seu desejo de que esta criança viva uma liberdade ilimitada. A psicanalista, acompanhada pelo público, questionou como cresceria uma criança que teria, desta forma, sua sexualidade negada? Que marcas isso pode produzir?

Luis Claudio Figueiredo procurou desmembrar a experiência cultural da metapsicologia, defendendo que não se trata de fazer uma nova psicanálise para compreender os novos fenômenos culturais. Colocou que o conceito de complexo de Édipo se sustenta ainda hoje, na medida que pode ser descolado da cena histórica em que se originou. Ao mesmo tempo, apontou que a problemática edipiana opera exatamente entre o atemporal e o histórico, entre o metapsicológico e o cultural. O psicanalista sublinhou a relevância da obra de Melanie Klein para pensar o complexo de Édipo e, a partir dos conceitos de posição paranóide e posição depressiva, fez uma análise sobre o que um sujeito deve atravessar para ser capaz de suportar/sustentar uma triangulação, o que só seria alcançado na posição depressiva. Em suas palavras, o espaço triangular é fundamental para que se forme um psiquismo autônomo e capaz de se separar e de se inserir nos processos coletivos, destacando assim a dimensão ética do atravessamento do Édipo e da posição depressiva, apontando que a possibilidade de incluir e excluir nos livra dos absolutos. Para tanto, é fundamental que cada filho seja capaz de assassinar os pais na fantasia e fazer o trabalho de luto subjacente, o que levaria à elaboração da posição depressiva.

Diante das novas configurações familiares, Luis Claudio colocou que o analista deve levar em conta como se estabelece o espaço triangular (deste sujeito/família) e como ele pode ser ocupado pela criança, adolescente ou adulto, afirmando que nada disso tem a ver com gênero. Acrescentou que, independente da configuração familiar que esteja em jogo, a pergunta que devemos fazer é: os pais de hoje são capazes de sobreviver ao parricídio? Em que medida as novas configurações familiares colocam em jogo a possibilidade do crime e da sobrevivência?

Apontamentos extremamente contundentes que nos auxiliam a recuperar o pensamento clínico diante de tantas questões tão mobilizadoras.

Entre uma palestra e outra, as mesas simultâneas trouxeram experiências vivas e inquietantes, enriquecendo o encontro e alimentando nossos pensamentos com a preciosidade e singularidade da experiência clínica. Conheça aqui a programação completa: http://www.sedes.org.br/Departamentos/Psicanalise_crianca/coloquio2016/programa.html

A última mesa do dia contou com a psicanalista Marcia Porto Ferreira e com o psiquiatra Alexandre Saadeh, coordenador do Ambulatório de Transtornos de Identidade de Gênero e Orientação Sexual do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas de São Paulo. A partir do referencial psiquiátrico, Saadeh detalhou o trabalho de avaliação e acompanhamento de crianças e adolescentes sob o seu serviço. Já Marcia trouxe em sua fala a importância de podermos aguardar um devido tempo necessário à criança/jovem, sem nos precipitarmos rumo a uma intervenção médica que silencie justamente o que não pode ser resolvido no corpo. Muitas questões ficaram em aberto, e esta mesa final revelou um embate direto entre a psiquiatra e a psicanálise. Ficamos todos com a certeza de termos apenas iniciado o debate acerca destas questões tão fundamentais.




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[1] Psicanalista, coordenadora do setor de eventos do Departamento Psicanálise com crianças; aluna do Curso de Psicanálise do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.
[2] Com a colaboração de Ligia P. Silber Rabinovitch, psicanalista, coordenadora geral do Departamento Psicanálise com crianças.




 
 
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