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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    47 Setembro 2018  
 
 
NOTÍCIAS DOS CURSOS

O CÉU COMO SONHO[i]


Tanya Volpe Spindel[ii]

 

A conta dos dias, 2014. Tanya Volpe.

 



O inferno dos vivos não é algo que será; se existe é aquele que já está
aqui, o inferno no qual vivemos todos os dias, que formamos estando
juntos. Existem duas maneiras de não sofrer. A primeira é fácil para a
maioria das pessoas: aceitar o inferno e tornar-se parte deste até o
ponto de deixar de percebê-lo. A segunda é arriscada e exige atenção e
aprendizagem contínuas: tentar saber reconhecer quem e o que, no meio
do inferno, não é inferno, e preservá-lo, e abrir espaço

Ítalo Calvino, As Cidades Invisíveis[iii]

Flectere si nequeo superos, Aqueronta movebo
Já que no céu nada alcanço, recorro às potências do Inferno
Virgílio, Eneida, VII, 312 [iv]



Em 2014, inspirada em um trabalho do fotógrafo italiano Luigi Ghirri chamado Infinito, decidi fotografar o céu todos os dias do ano, aonde quer que eu estivesse, como ele o fizera em 1974. Não sabia, então, porque ele o nomeara assim e qual o conceito que havia por trás de sua criação. Resolvi chamar meu trabalho de A conta dos dias, porque minhas fotos tinham, em um primeiro momento, o sentido de marcar o tempo, ou talvez, idealmente, de torná-lo mais lento, como se eu o detivesse em um enquadramento.

Fui fotografando sem qualquer teorização prévia, e à medida que os dias iam passando decidia, intuitivamente, por qual caminho seguir. Em janeiro, elementos da paisagem urbana entraram inadvertidamente nas fotos, porque demorou para que eu encontrasse em São Paulo, na minha redondeza, um pedaço limpo de céu. Fios, torres, quinas de telhados estavam sempre sorrateiramente em um canto, por mais que eu girasse a câmera. As únicas regras que me impusera eram fazer uma foto todos os dias, sem importar o horário, e utilizar a lente da câmera em seu ponto inicial (30 mm), sem o truque do zoom.

Aos poucos fui conseguindo limpar os meus céus e, mais tarde, incorporei algumas marcas, para mim incontornáveis. Exemplos concretos delas se encontram, em um caso, no enquadramento de céu de março, onde incluí a arquitetura romana, singela homenagem às pinturas e à arte italiana, que formaram nosso olhar para a beleza; em outro, uma noite escura de outubro, alguns dias depois, outra noite escura, que me incomodam olhar ainda hoje, tempos depois, porque me remetem às incertezas vividas junto a um leito de UTI, onde vida e morte estavam por um fio, e só às altas horas conseguia sair e olhar para o céu (só para constar, conto que a vida ganhou essa batalha). Fotografei durante o ano todo, e o trabalho ficou parado, sem um destino preciso.

Ao escolher A interpretação dos sonhos como tema de minha monografia, as fotos do céu voltaram a me ocupar e comecei a perceber a possibilidade de uma ligação entre meus dois trabalhos, entre minhas vidas diversas: fotógrafa e estudante de psicanálise. O tempo, a memória, os traços deixados nela, a imaginação, os vestígios do dia pareciam-me, intuitivamente, ligar os dois projetos e construir um sentido.

Como A conta dos dias tinha em sua gênese a questão da passagem do tempo, os textos que lemos em aula - "O tempo que passa e o tempo que não passa" (Silvia Leonor Alonso) e "Sobre transitoriedade" (Sigmund Freud) - apontavam-me um caminho de reflexão e convergência. Logo descobri que o contraste dos nomes dos dois trabalhos - afinal eu numerava, o que o infinito não faz - distanciou-me significativamente da obra de Ghirri, mas de algum modo me aproximou da psicanálise.

Luigi Ghirri (1943-1992) é considerado um fotógrafo excepcional. Em 1982 foi eleito um dos 20 maiores fotógrafos do mundo na feira Photokina de Colônia, Alemanha. Foi professor, crítico, curador e autor de muitos textos de reflexão sobre o caráter da imagem no mundo contemporâneo. Segundo Quentin Bajac "(...)(talvez) ele tenha sido um dos primeiros, no início dos anos 1970, a considerar - de maneira bastante lúcida - sua prática não como produção de evidências fotográficas, mas muito mais como um empreendimento sistemático de indagação do mundo e suas representações" (...) "empenhou-se, ao longo da vida, em pensar imagens não mais entendidas como simples representações, mas consideradas signos". [v]

Procurando informações sobre o Infinito de Ghirri, aprendi que esse trabalho era o único que se diferenciava de todos os outros do fotógrafo. "A exceção a esse critério associativo e colecionador dos ícones é Infinito (1974), projeto em que todos os dias, durante um ano inteiro, Ghirri fotografou o céu numa sucessão de tomadas regulares, dispondo-as depois nas 12 folhas de um calendário. O céu é precisamente ausência de assunto, espaço onde o olhar não pode acompanhar uma evolução narrativa, deixando emergir a estrutura vazia do calendário. O passar dos dias é assim uma metáfora para representar um olhar ancestral, sem história, uma única e grande imagem que reflete a visão, entendida como condição mesma do pensamento." [vi]

Em texto de 1979, Ghirri comenta que nesse trabalho, no qual quis sublinhar a impossibilidade de traduzir um signo natural, ele criou um atlas cromático do céu: 365 céus possíveis. Mas ainda que seguindo um esquema preciso, como o de um calendário, o ano de 1974 era na verdade um ano não catalogável, não "reconhecível" a posteriori.

Já meus céus não são neutros, contam uma história, embora subjetiva. Trazem marcas e minhas lembranças, têm um histórico que posso acessar, pois foram catalogados - ainda que eu não soubesse no que se transformariam -, retomando a hora e o local em que foram fixados. Por conseguinte, disparam lembranças esquecidas. Silvia Alonso vem me socorrer novamente aqui: "O espaço do enquadramento é dado pelo próprio texto da lembrança, no qual se combinam traços. Traços que revelam as marcas de erotização e também os processos de luto vividos que deixaram as marcas do objeto ausente. Ou seja, há um passado que se cria e se recria em novas articulações". [vii]

Ao tentar finalizar e amarrar minha monografia, não pude deixar de fazer uma analogia com um dos processos de análise pelo qual passei, que teve características especiais e muito marcantes. Foi uma análise que durou aproximadamente dois anos e na qual tratamos de uma questão muito pontual e específica, que me tocava profundamente. Com ela tive de me haver com as minhas marcas constitutivas. Não sei expor claramente o que se passou, mas tenho em mim os resultados. Gratidão misturada com orgulho de ter chegado aonde cheguei.

Se fosse descrever com imagens, a impressão que me ficou seria, curiosamente, a de que eu atravessara as profundezas do inferno e conseguira sair. Do lado de fora, um pouco atônita, olhava o céu apaziguada comigo mesma. Eu havia renascido do outro lado. Meus céus começaram a ser fotografados no mês seguinte a esse renascimento. Recorro aqui a outro trecho do texto de Silvia Alonso: "Nesse 'outro tempo' que não respeita a cronologia, nesse tempo do só depois, há movimento - que retranscreve, que articula novos nexos, rearticula as inscrições do vivido - construindo sonhos no dormir, fantasias e pensamentos na vigília. Há movimento das dimensões pulsionais e desejantes que, misturando os tempos, produz novos sentidos."[viii]

E assim cheguei aonde nem imaginava que chegaria. E entendi porque não conseguia explicar, durante a elaboração deste texto, nem para mim mesma, nem para ninguém, porque queria tanto juntar os meus céus com os meus sonhos.

Tarefa árdua viver, separar o que vale do que não presta, quem e o quê merece nossa atenção, e manter-se sempre atento à questão de importância primeira: o destino que podemos dar aos nossos desejos.

(Agradeço a Isabel Marazina e a Sílvia Nogueira de Carvalho)



[i] Este texto é a terceira e última parte de minha monografia de finalização do curso Clínica Psicanalítica: Conflito e Sintoma I. Sedes Sapientiae, novembro de 2017.

[ii] Aluna do curso Clínica Psicanalítica: Conflito e Sintoma II, Sedes Sapientiae 2018. Aluna do curso de aperfeiçoamento da EEP: A escuta da subjetividade do paciente psiquiátrico: exercício psicanalítico , Instituto de Psiquiatria - Serviço de Psicoterapia, HCFMUSP.

[iii] Calvino, Ítalo. As cidades invisíveis. Trad. Diogo Mainardi. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.

[iv] Frase escolhida por Freud, como epígrafe, para abrir A interpretação dos sonhos em 1900.

[v] Quentin Bajac (curador) em "A fotografia como interrogação 1970 - 1979" no catálogo da exposição Luigi Ghirri: Pensar por imagens. São Paulo: IMS, 2013 p. 23 e p. 26.

[vi] "Pensar por imagens" no catálogo exposição Luigi Ghirri: Pensar por imagens - Ícones, paisagens, arquiteturas. São Paulo: IMS, 2013, p.18.

[vii] Silvia Alonso "O tempo que passa e o tempo que não passa" in Boletim Online: jornal digital dos membros, alunos e ex-alunos do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae. Edição 5, fevereiro de 2008.

[viii] Idem.




 
 
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