SIMONE DE PAULA [1]
Este ensaio pretende apresentar, a partir do olhar psicanalítico, a condição do significante, como o operador de linguagem que se faz silencioso quando não revela o significado matricial da estrutura do sujeito, mas se faz presente na manutenção da cadeia associativa de pensamentos. Ainda que o significante pareça falar em alto e bom som quando se atrela ao imaginário e serve para dar corpo a uma fantasia de identidade com a qual o ser falante se apresenta ao mundo, ele opera na materialidade simbólica.
O filme A ghost story (David Lowery, 2017) traz elementos que podem funcionar nessa hipótese do sentido silencioso do significante e por isso ajuda a ilustrar essa questão.
A história começa nos apresentando C e M, um jovem casal que compartilha momentos íntimos e outros bastante solitários. Moram em uma casa nitidamente afastada da cidade e parece que vivem a vida toda ali, ele com sua música, ela com suas expectativas de ir além daquele universo. Num instante tudo isso se desmonta, C sofre um acidente de carro em frente sua casa e morre. A partir daí, acompanhamos a vida de M sem C, o pós-morte de C, agora num corpo fantasma, e o destino da casa em que viviam.
O diretor e roteirista David Lowery escolhe contar a história por trás dos fatos, o que faz o enredo acontecer. Não exatamente cenas de segredos daquela história, mas os fios que tecem a trama da realidade. É a cadeia significante que monta o tecido sobre o qual os sentidos das cenas da vida são percebidos. Não é um filme de terror, mas assombra, traz sombra onde havia luz e ilumina o obscuro. Trata da subjetividade e o que pode estar contido nisso. Um filme menos para ser contado e mais para ser visto, vivido, sentido, ouvido, que diz daquilo que toca particularmente quem está diante dele.
Com um estilo fragmentário, deixa a cargo do espectador o ato de completar as lacunas que aparecem. O diretor trabalha apenas com alguns momentos particulares, pedaços da vida do casal. São cenas que ele quer mostrar, não o que precisaria mostrar para compor o quebra-cabeça de sua narrativa. Aqui, vão faltar peças e esse jogo é brilhante, porque faz parte da condição imaginativa, querer mais, querer tudo, e ele não nos dá. Ele já abre o filme com a frase de Virgínia Woolf – “ Whatever hour you woke, there was a door shutting”, mostrando que há interrupções, rupturas, e elas promovem o fim.
O começo do filme nos apresenta cacos de conversa do casal, a rotina, os desencontros. M conta que mudou muitas vezes de casa e que deixou em cada uma delas um bilhetinho, com pensamentos ou poemas, como uma forma de se despedir e deixar a marca da sua passagem por lá. Esses bilhetes, diz ela, ficavam entre vãos, frestas, nos batentes das portas ou assoalhos do chão. Isso toca C, desperta nele um não saber. Depois de sua morte, sem ter para onde ir, ele volta para a casa em que viviam e permanece lá, no ponto em que o não saber o fixou. A fantasia é marcada na busca de retomar a vida com M, agora impossível. Ele a acompanha enquanto ela vivencia seu luto. E, quando ela vai embora da casa em que viveram, deixando um bilhetinho no batente da porta, a busca de C passa a ser pelo significante deixado por ela, como um segredo, o que ela teria a dizer para aquela casa, sobre eles, quando ela deixou aquele lugar? É menos sobre estar atrelado a ela e mais sobre se prender ao que ela deixou e o marcou quando apontou algo de si no que foi escrito.
Escolho esse ponto particular do filme que me suscitou a seguinte questão: o que deixamos para trás, e ao mesmo tempo nos prende, no momento em que decidimos seguir em frente? Acredito que esse é o ponto fundamental da montagem fantasmática em que um sujeito se atrela a um Outro como determinador da sua condição de existir.
Lowery trabalha nitidamente com a questão do tempo e como ele opera nos espaços ocupados pelos seres humanos. Opta por não definir demais as coisas. Escolhe nomear os personagens principais apenas com uma letra - ele é C e ela é M. Nos créditos, os outros personagens são apresentados apenas pelas suas funções. De C e M, não sabemos suas profissões, relações familiares ou sociais. Não temos índices que nos levariam a formar um juízo crítico sobre eles. Essa opção, em fazer evanescer a identidade, tirar os elementos imediatos que possam ser agregados como forma de definição daquelas pessoas, nos ajuda a encontrar sujeitos mais do que personalidades. Sob nossa perspectiva psicanalítica, essa escolha colabora para mostrar que o que vemos não nos dá o conforto do entendimento sobre o que se passa nos espaços de não-saber dos personagens. Vemos manifesto aquilo que é verdadeiramente o operador de linguagem, o significante, que faz silêncio, porque não diz o que ele mesmo significa.
A fotografia bem cuidada comunica, faz mais do que apenas ilustrar beleza estética. Filtros amarelos e azuis traduzem cenas do presente e passado, além de estados de ânimo mais quentes/ensolarados ou frios/nublados. Esse é o ganho subjetivo de estabelecer relações significativas entre o que se vê e aquilo que isso pode dizer. Mas nem tudo no filme é assim. Ele pede para que se entenda a lógica do que está em cena mais do que os sentimentos que os personagens vivem no antes e depois da morte. Além disso, o diretor usa o formato de tela de 1.33:1 – quadrado - com bordas arredondadas, fazendo referência ao modo de revelação de fotografias antigas, um apontamento sobre o tempo, uma referência ao passado. Aqui vemos o limite do que pode ser dito, mostrado, informado. Ele não utiliza as atuais wide screen, formato de telas amplas que simulam mostrar mais, para que tenhamos a impressão de ver tudo. E isso, é mais uma boa sacada sobre a questão da borda que inclui uma parte e deixa de fora outra. O aspecto nostálgico está aparente quando simula uma imagem de foto antiga. E o aspecto real, caracteriza o que foi cortado, o que não entrou naquele frame, naquele fragmento de cena, mantém algo fora.
Lowery apresenta ainda as questões do tempo não apenas cronologicamente, ou seja, a relação entre presente e passado. Ele traz também a condição física de velocidade e ritmo no registro e edição das imagens. É o tempo tanto nas alterações do ambiente como no movimento de cena. Ora temos uma lentidão gritante, ora uma longa cena em que a ação do personagem segue o tempo real daquele ato. Em outros momentos, ele usa o recurso de mexer na velocidade, fazendo tudo passar muito rápido em cena, recurso comum de acelerar o tempo no cinema. Temos muitas elipses, condição própria de narrativas. Lowery opta ainda por cenas paradas, estáticas, em que não acontece nada. Também estende a duração do plano depois que a ação do personagem acabou, nos mantendo ali, olhando para o tempo através da imagem. Com essas opções estéticas e narrativas ele usa o chamado efeito Kuleshov, que permite que a cena não nos diga muito, mas que pela própria angústia em busca de sentido, somos levados a interpretar o que o diretor queria com aquilo que mostra. Esse é um grande ponto sobre a relação do sujeito com o grande outro, ou seja, aquele Outro do discurso. Nada é dito além de letras, imagens, sons, materialmente falando. É o olho vendo e o ouvido escutando. Mas imaginamos que o Outro disse algo, e nós, enganchados nessa suposição do dizer, nos entendemos como aquele para o qual o outro diz e tendemos saber como interpretar. Assim como o bilhete de M, ficamos na posição de C, buscando no vão do sentido encontrar a significação do que vemos.
E ainda tem mais, para o personagem de Casey Affleck, C - após sua morte, no corpo de um fantasma -, Lowery usa um recurso técnico de registro, com mais frames, tornando seus movimentos mais lentos em cena. Porém, ele está no mesmo ambiente com personagens vivos na velocidade normal com que estamos acostumados a ver na tela. Essa mudança de cadência entre vivos e morto cria um estranhamento no olhar do espectador, que vê o fantasma nem tão integrado assim. É a mesma e outra cena ao mesmo tempo.
No campo sonoro, o filme é bastante silencioso, os personagens conversam em tom baixo, sussurrando inclusive, isso mostra intimidade e delicadeza. Os sons diegéticos, aqueles que acompanham as ações, estão ali no limite do necessário. A ambiência nem sempre pede um som manifesto, apenas silêncio. Esse trabalho, associado à trilha sonora bem composta por Daniel Hart, coloca a angústia em cena durante todo o filme. Não há muitos diálogos, há pouco a falar, porque tudo ali parece não ter palavras para dizer. Ora são duas pessoas que não conseguem se comunicar, ora são tão próximas que não há por que buscar palavras para preencher alguma falta, um vazio entre elas que precisaria ser eliminado. Essa condição que nos é mostrada durante cenas do filme em que o casal está se relacionando, toma uma proporção muito maior após a morte de C, pois aquilo que não foi dito, agora não tem mais espaço para ser falado. E, em face disso, o que está inscrito do não-dito, nas palavras escritas no pedacinho de papel que M colocou no batente na porta, pode significar tudo que se deveria saber da completude.
A escolha da neutralidade nos cenários e figurinos acompanha todo minimalismo que o filme busca. Nesse sentido, usar para o fantasma o icônico lençol com furos no lugar dos olhos é acertadíssimo. O que sustenta aquele pano? O que o véu encobre? Essas são questões importantes para a psicanálise, pois evidenciam que a relação que estabelecemos com o mundo é uma relação fantasmática. Criamos algo que aparentemente nos sustenta no mundo e isso tem a ver com essa relação articulada entre significante, sujeito e Outro. Os furos no lugar dos olhos podem ser pensados como as bordas do olhar que disfarça o vazio que há por baixo daquele véu, nos fazendo acreditar que há algo a mais do que apenas um sujeito fazendo funcionar o ser que já não está mais ali. Esse fantasma, o do filme, não ganha ares de personagem além da própria síntese do fantasma, ele é esse espectro que acompanha a vida de quem outrora fez parte da vida dele. E nós, não estaremos na mesma condição? A dimensão agigantada do fantasma é uma sutileza inteligente, conquistada pela opção de colocar a câmera em ângulos que elevem o personagem, e no volume excessivo do tecido que cobre o ator. O fantasma tem peso, consistência, presença, intensidade, mesmo que ele seja apenas um espírito por traz do pano, dando corpo e campo à fantasia de um ser existindo debaixo da roupagem escolhida.
M, interpretada pela atriz Rooney Mara, vive seu luto muito quieta. Segue a vida, tem algumas atividades, processa o que ficou dos dois naquela casa. Reencontra o que deveria rever, seleciona o que fica e o que vai, se solta e segue seu caminho, carregando o que poderia desse encontro. É interessante ver como os fragmentos que nos compõem, e o que tentamos reunir em uma relação com o outro, contar uma história de dois, completa, não é possível. Como uma reta não existe, apenas um segmento de reta com começo e fim marcados por dois pontos, assim funcionam os encontros de dois.
A obsessão do fantasma de C aparece justamente quando M se desliga dele ao final do seu luto. C quer saber dela quando ela o deixa para trás. O que o abandona é justamente o que o faz querer perseguir um elemento que pode dizer sobre ele e esse enigma é o que o mantém ‘vivo’. O que ela, esse Outro, teria a dizer sobre ele? Esse universo mítico da origem, do momento inicial em que o Outro, que era nosso par perfeito, pode seguir sem nós, se separar, parece que é o ponto ao qual nos alienamos, nos atamos sem saber como seguir sem isso. Existimos sem o que o Outro nos causa, determina de nós? Sob a lógica da alienação e separação, a união e despedida de C e M, apresentadas sob a forma de viva e morto, ilustra o impossível de conseguir atingir o ponto do par perfeito, do objeto adequado que definiria o ser.
A partir disso, quando C não consegue mais prender M ao seu sofrimento, fica fixado ao que está inscrito sobre a história deles. Ele está preso à casa, ao bilhete, ao dito que não diz, pois segue escondido em uma fresta do batente, selado com tinta bege, sem nenhum destaque. Ninguém, além dele mesmo, sabe que há algo ali, uma marca do passado, da presença de outrem. Ninguém pode fazer por ele o que é dele, desenterrar esse significante-mestre que o fez existir.
Se o luto pela perda do objeto de amor de M se encerra quando ela pode deixar a casa, o processo de C, que vinha sendo negado enquanto ela estava ali, parece ter destaque. No trabalho de luto dela, há lembranças da vida dos dois, de situações e como aquilo foi vivido. Já C, não lembra a vida dos dois, ele apenas vê as coisas acontecendo, reage a elas quando apresentadas e não quando são recordadas. Essa é uma distinção interessante colocada pelo diretor do filme, pois o quanto é preciso um sujeito encarnado para recordar as suas experiências e memórias e o quanto o ser fantasma apenas reflete o que dele está ali, na presença da realidade presente, como um tempo que não se conta, um eterno presente. Ele está parado no momento mesmo em que surgiu, não tem vida, história, apenas uma marca inaugural.
Outras pessoas passam pela casa, ele convive com outros moradores tentando afastá-los, na busca em recuperar o passado perdido. A decadência do imóvel vai se apresentando no envelhecimento patente do ambiente. Sozinho, C vê outro fantasma na casa ao lado, também emoldurado pela janela, preso, esperando, como ele. Na conversa dos dois, que podemos acompanhar por uma legenda, pois não há som, não há materialidade sonora do significante naqueles fantasmas, não há corpo - são espectros, sombras do passado - fica nítido o esquecimento. Afinal, o que se faz ainda ali? Com essa questão, a fantasma (pois a diferença entre os lençóis sugere que é um espectro feminino) dá para C a dica sobre a ilusão em querer saber a verdade sobre ele e M, bem como a tolice em permanecer, sem admitir a morte, o fim. Porém, é algo que não se tem uma escolha, uma vez atrelado ao significante, àquela marca, só é possível se desvencilhar a partir do encontro com uma verdade sobre o sem sentido das letras inscritas.
É nesse tempo de luto de C que entendemos a repetição. C não desiste, insiste em conseguir resgatar o bilhete premiado, a palavra que revela o desejo de M para ele e que decifra o enigma dele. Quando ele finalmente consegue pegar o pedacinho de papel, uma escavadeira destrói a parede da casa, ele está exposto, sem teto, nem chão, nem paredes, nenhuma defesa que possa esconder a vulnerabilidade daquele ser. No susto ele perde o bilhete, não consegue acessar aquele ponto. Daí, o tempo passa rápido. É interessante a escolha do diretor nesse sentido, pois assim como nós, espectadores, C também vive lapsos de tempo, saltos temporais que denotam que ele não está em consciência o tempo todo, sobre onde ele está e o que o mantém ali. As coisas mudam e de tempos em tempos ele percebe a mudança. Na realidade, o lugar em que ele está posicionado é o mesmo, apenas a realidade desse lugar parece diferente, ilustrada pelo tempo e os elementos que dão referência a isso. Prédios são colocados no lugar da casa, uma grande cidade agora está diante dele, o futuro está ali. C não suporta e se joga para a morte, o fantasma quer morrer, não aguenta mais. Agora não há mais a fresta onde buscar o significante da sua existência fantasmática. Ele está diante do real. Onde foi parar o Outro? Sem Outro parece não haver lugar para o Um.
Nas cenas, o que deve estar em evidência são o Tempo e a Existência. Lowery nos coloca diante da repetição infinita, afinal, quando é verdadeiramente o fim?
E então, C é levado para o passado, uma espécie de início da civilização. Encontra elementos muito antigos, em personagens arcaicos. Significantes como o bilhete deixado por uma menina sob uma pedra, a morte inesperada num momento de paz e projeção de futuro, a dimensão da natureza, a incessante passagem do tempo. As cenas dele e M vistas como cenas de outros e em outros tempos. Deslocamentos mostrando o mesmo com aparência de diferente. Com tudo isso, somos levados com C ao momento em que o filme começa, ele ali acompanhando a vida do casal do qual outrora ele fez parte. A repetição de tudo, agora mais rápida. Após a morte de C novamente, vemos dois fantasmas, como o duplo que não nos acompanha somente em vida. Aqui podemos pensar que a repetição visa reviver o acontecido. Porém, o que recordamos não é verdadeiramente o que aconteceu, mas é a lembrança do que vivemos, experimentamos. Não é o fato mesmo, mas é o que se lembra dele. Dessa forma, C já sabe onde aquilo vai dar. E, no momento em que novamente as paredes serão derrubadas, C consegue pegar e ler o bilhete. Nós não. C se dissolve, se desmancha, não tem mais por que estar ali. A revelação faz com que aquele fantasma não tenha mais razão de existir.
Referências bibliográficas
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[1] Psicanalista e semioticista.