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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    51 Setembro 2019  
 
 
CINEMA

DESLEMBRANÇAS, VERTIGENS E LEMBRANÇAS ENCOBRIDORAS. AS TRAMAS DA MEMÓRIA


MARIA SILVIA BORGHESE [i]

 
Visitei a Itália, pela primeira vez, já adulta. Terra dos meus quatro bisavós paternos, onde nasceu meu avô. Sabia que, também eu, era cidadã italiana. Porém, não havia, até então, pensado neste país com qualquer predileção ou destaque. Pelo menos, era assim que eu me conhecia/desconhecia, lembrava/deslembrava naqueles tempos. Sabia de minha origem europeia, como muitos de nós, brasileiros, o sabemos. No entanto, minha surpresa ao chegar foi imediata. Minha familiaridade com aquele lugar ia muito além do fato de me saber descendente de europeus. Italiano não é uma língua difícil para os brasileiros, pois a imigração italiana para nosso país foi significativa ao final do século XIX e início do século XX. Contudo, eu compreendia perfeitamente tudo o que os italianos me diziam e minha intimidade com a língua italiana chamou a atenção dos próprios italianos com quem eu conversava. Aos meus ouvidos, era uma língua absolutamente familiar, aconchegante, e me dei conta de que a compreendia quase tão bem quanto a língua portuguesa, minha língua materna.


Naquela primeira noite na Itália, ainda no banho, fui invadida por lembranças e mais lembranças. Meu avô, pai e tios falaram italiano durante a minha infância, época de meu convívio mais intenso com a família de meu pai. No início de minha adolescência, meus pais se separaram e, com a perda do convívio, deslembrei da língua italiana. Na época da separação de meus pais, quase no mesmo dia em que meu pai saiu de casa, meu nonno faleceu. Esses dois acontecimentos difíceis e doloridos, ao mesmo tempo, roubaram de mim a língua italiana. Seus traços e construções haviam sido perdidos, deslembrados, para serem recuperados, assim de chofre, naquele meu primeiro dia em terras italianas. Nessa mesma noite, sonhei com meu avô, com as festas italianas que ele fazia, os jogos de tombola nas noites de ano novo, os almoços em longas mesas no caramanchão do quintal. Eu havia habitado um pedaço da Itália durante toda minha infância na casa dos meus avós paternos e, agora, lembrava-me vividamente das conversas em voz alta, das risadas e do italiano calabrês que eu ouvira enquanto crescia.

Curioso como funciona nosso aparelho de memória. Uma vez incorporada a italiana que se perdera em mim no início da adolescência, a experiência tão vívida de minha primeira viagem à Itália passou, ela também, a repousar tranquila em algum canto do meu psiquismo e eu passei a me conhecer italiana como sempre havia sido, como se a lacuna mencionada acima nunca tivesse existido.

Esses caminhos e descaminhos da memória, que me fazem quem Eu sou hoje, retornaram recentemente, depois que assisti a dois filmes:Deslembro (direção de Flávia Castro, 2019) e Democracia em Vertigem (direção de Petra Costa, 2019). Na verdade, é sobre a experiência de assistir-lhes que desejo escrever neste artigo, mas não poderia fazê-lo sem contar essa parte de minha história, pois a experiência de viajar nas nuances da narrativa do outro possui valor e potência.

Para onde havia ido a italiana que habitava em mim? Nosso psiquismo, nos diz Freud, é um aparelho de memória: ninguém contesta o fato de que experiências dos primeiros anos de nossa infância deixam traços não erradicáveis nas profundezas de nossa mente (Freud, 1893)[ii]. Lembramos e deslembramos de acordo com nossas possibilidades de sobrevivência psíquica, nossas ancoragens identificatórias forjam o Eu sobrevivente. Assim, seguimos enfrentando a dor e a delícia de ser quem somos – daquilo em que nos tornamos.

Ainda Freud: quando consigo relembrar um acontecimento por muito tempo após sua ocorrência, encaro o fato de tê-lo retido na memória, de que ele causou em mim, na época, uma profunda impressão. Surpreendo-me ao esquecer uma coisa importante, e talvez me sinta ainda mais surpreso ao recordar alguma coisa aparentemente irrelevante ... Pode-se, na verdade, questionar se temos mesmo alguma lembrança de nossa infância: ‘lembranças relativas a nossa infância’ podem ser tudo o que possuímos. Nossas lembranças infantis nos mostram nossos primeiros anos não como eles foram, mas como nos apareceram nos períodos posteriores em que as lembranças foram despertadas. Nesses períodos do despertar, as lembranças infantis, como que costumamos dizer, não emergiram: elas foram formadas nessa época. E inúmeros motivos, sem nenhuma referência à precisão histórica, participam de sua formação, assim como da seleção das próprias lembranças. (idem)

Deslembro conta a história de Joana, a personagem principal. É, contudo, a história de Flávia, a diretora, que escolheu a ficção para nos brindar com a narrativa daquela que é também sua própria história deslembrada, suas próprias construções e identificações. Democracia em vertigem se apresenta como um documentário, mas é também a narrativa de Petra, diretora e narradora. Sendo assim, não deixa de ser um documento histórico, também referido à história de sua diretora/narradora. São dois caminhos diferentes escolhidos por estas duas mulheres. Pode-se até concordar ou discordar de suas narrativas, mas cada uma a seu jeito está ali na tela contando sua própria história.

Deslembro é poesia, Democracia em vertigem é prosa. Contudo, engana-se quem pensa que há objetividade na prosa. São dois jeitos de se contar. Os dois filmes são, a meu ver, as versões possíveis de quem os narra. E toda narrativa tem sua potência, pode nos capturar. Principalmente porque aquele caminho que pode ter ajudado o narrador a se curar – ao se contar –, coloca-nos diante de nossos próprios fios associativos, permite-nos vagar nas mesmas estradas e – bingo! – sim, nós nos encontramos por ali, em uma das esquinas da história, ou até mesmo no centro de uma de suas praças.

Ao assistir a Deslembro, vaguei nos recônditos primários da memória de Joana/Flávia, realidade psíquica em estado bruto; a câmera, colocada praticamente dentro de seu corpo, me colocou quase ‘lá’, ‘dentro’. Em Democracia em vertigem, Petra me conduzia pela mão em sua tentativa de construir uma narrativa histórica, mas caminhava, de certo modo, também perto da fronteira imaginária. Seu tom de voz neutralizado, monótono era, a meu ver, uma espécie de defesa a garantir continuidade e linearidade à sua narrativa.

De jeitos distintos, os dois filmes me provocaram fortes sensações, emoções e... memórias em mim. Embora, no primeiro, a maior parte da história fosse ambientada na clara e quente cidade do Rio de Janeiro, eu experimentei um frio atípico e descomunal, para além da temperatura real da sala de projeção. No segundo, experimentei um recrudescimento discreto de uma sensação de vertigem, restos de um episódio de labirintopatia recente – também despertada pelo próprio nome do filme –, tive fortes sensações de enjoo e, até, um pouco de náusea. Por caminhos bastante diferentes em cada caso, vi-me perdida em um emaranhado de lembranças, memórias há muito deslembradas.

Freud, nos trechos destacados acima, alerta para o fato de que nossas lembranças são apenas relativas, mas isso não torna a narrativa histórica menos importante. Em nossa história, encontramos nossos elos e ancoragens vitais e através de nosso discurso, daquilo que podemos contar, o Eu se empenha em tentar garantir um equilíbrio mínimo/possível entre as forças que nos habitam – constitutivas, mas também destruidoras. Assim, quais são os efeitos das narrativas e testemunhos em quem fala e em quem escuta/vivencia?

Em Deslembro, Joana teve sua vida interrompida pela ditadura civil-militar que se instalou no Brasil após o golpe de 1964. Após o desaparecimento de seu pai, o exílio a lançou junto à mãe para paragens distantes, para uma outra vida. Somente em seu retorno ao Brasil, após a promulgação da lei da anistia, vivendo novamente no Rio de Janeiro, ela começa a ter sua consciência invadida por imagens, sons, cheiros – estímulos que chegavam de dentro e de fora. As cenas são sutis e tocantes e a trama da memória, que havia sido esgarçada pelos efeitos traumáticos da interrupção de sua vida, começa assim a ser re-tecida. Sofrimento e reparação acontecem simultaneamente, conduzindo a personagem por terrenos esburacados e pontes implodidas na infância.

Existirmos, a que será que se destina? Acompanhar a adolescente se reconstruindo, virando mulher ao som de Cajuína, de Caetano, é um dos belos momentos que o filme proporciona, principalmente a quem, à época em que a história se passa, era ainda uma jovem universitária às voltas com seus próprios caminhos interrompidos e entrecruzados. Deslembro nos faz pensar em pessoas e suas vidas, em sofrimentos e traumas, nas dores singulares, mas que são também as dores de todos nós, na nossa frágil democracia brutalmente interrompida pelo golpe civil-militar. Impossível não se flagrar lançado ao jogo de lembranças e deslembranças de Joana. A narrativa tem força e sutileza, angústia e delicadeza. Não há preocupação em contextualizar historicamente a cena social e política, que não seja apenas para denunciar e desvelar os impactos traumáticos vividos e ainda não absorvidos por ela. E sua história vai nos falando a todo momento sobre a importância de retornar, retomar a história, poder se contar e recontar. A memória busca e encontra seus fios associativos, as ancoragens identificatórias se reorganizam, o sujeito pode se reencontrar, refazer suas lembranças e deslembranças, desatando alguns nós do traumático, recuperando-se nos caminhos possíveis, enfim.

Democracia em vertigem toma certamente um outro rumo. A câmera de Petra está sempre fora, buscando flagrar e compor uma narrativa acerca de momentos mais recentes da história de nossa democracia. Suas lentes buscam mais centralmente contar a história do golpe/impeachment impetrado contra a então presidente Dilma Rousseff. No entanto, Petra é a narradora do filme e se coloca, desde o início, assim implicada. Fala de suas esperanças, da alegria de acompanhar a posse de Lula para a instalação de um governo progressista e popular. A vertigem da democracia, que busca ressaltar, é a sua própria vertigem que se torna também a nossa. Os jogos e tramas construídos desde as negociações feitas antes da posse de Lula – o arcabouço/Frankenstein político impossível, criado para dar sustentabilidade ao governo – vão sendo contados com esforço e dificuldade, uma vez que é também impossível acompanhar e compreender os meandros sombrios das relações de governos dito populares com as forças econômicas que financiam e controlam nossa democracia.

Os efeitos de sua narrativa bateram forte dentro de mim, talvez por certos incômodos e discordâncias em relação aos caminhos escolhidos por suas lentes e pelo texto de sua narração, mas principalmente – e nisso seu testemunho é muito eficaz – porque acompanhar esse período histórico balança nossas convicções. O filme certamente me fez lembrar, ao mesmo tempo, do processo de redemocratização, do quanto acreditamos e apostamos, acreditamos que tínhamos condições de escrever uma nova história. No entanto, sombras do passado, as lacunas propositadamente construídas, a falta de memória e de elaboração dos tempos traumáticos da ditadura nos fazem tropeçar em fantasmas que sempre estiveram ali e aqui: as mesmas elites predadoras, que apoiaram a ditadura, haviam novamente se erguido e tramado em favor de seus interesses. Agora, desde dentro, imiscuída, promiscuída nas fendas abertas pelo PT para chegar ao poder e governar. Democracia em vertigem é um filme para mim essencialmente triste, minhas convulsões estomacais se transformaram em um choro ao final. Desalento, parecia que minha cabeça tinha se esvaziado - o pensamento realmente se paralisa quando a memória é impossível, quando ela remete a um trauma não ultrapassado. O Eu, assim, frágil, se recolhe no aquém das palavras.

Tamanho efeito tem seu valor. As duas narrativas, ao meu ver, são fundamentais. Testemunhar a sua própria história produz efeitos de ampliação e alargamento dos processos psíquicos e produz mudanças significativas em quem a escuta e acompanha. Em tempos de paralisia do pensamento, de acontecimentos violentos com potência traumática, necessitamos recuperar a fluência da memória, a memória processual. Assim como o trabalho da análise que visa a engendrar as representações, a arte de testemunhar e contar histórias também possibilita a retomada da dialética entre desejo e pensamento. Vemos que para ter pensamentos de desejo, é preciso, primeiro, ter pensamentos, muito simplesmente (Green, 1991)[iii]. Assim, as palavras e imagens lançadas provocam pensamentos, inquietações, elaborações.

Deslembro e Democracia em vertigem são instrumentos potentes. Assisti primeiramente ao último, carregando por alguns dias o mal-estar provocado em mim. Contudo, quando assisti ao primeiro, fui deslembrando e sentindo na carne, na pele, a história que era também a minha. Infelizmente, nasci em um tempo de violências silenciadas e suspensão de direitos civis, o que me deixou marcas profundas, algumas não ultrapassáveis. Os fantasmas da violência e da injustiça que pareciam vencidos pela redemocratização, na verdade, vem sendo reeditados desde tempos imemoriais da história de um Brasil violento e sangrento, que hoje pressiona para retornar.

Sobra desalento! Que, no entanto, apenas poderá ser ultrapassado coletivamente, pela retomada da circulação da palavra, da produção de pensamentos propriamente desejantes, da escrita e reescrita de nossa história, mais uma vez, ostensivamente interrompida. Precisamos seguir pensando e falando – sem tréguas – sobre isso.





[i] Psicanalista. Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.
[ii] FREUD, S. “Lembranças Encobridoras” (1893). In: Obras completas brasileiras. Edição Standard. Rio de Janeiro: 1974.
[iii] GREEN, A. e URRIBARRI, F. Do pensamento clínico ao paradigma contemporâneo. São Paulo: Ed. Blucher, 2019.



 
 
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