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NOTÍCIAS DO DEPARTAMENTO
PANDEMIA FORA DA BOLHA, OS JÁ CONFINADOS
Daniela Athuil[1] Enquanto prepara a comida e chama atenção dos filhos que bagunçam as panelas, Janaína [3] atende minha ligação. Com o celular apoiado entre a orelha e o ombro semi levantado, me diz que sua vida está toda “amontoada”. Liga a câmera e me mostra o cesto de roupa cheio, os brinquedos espalhados pela casa. Aqui sempre foi tudo eu mesma, só que agora com criança em casa o dia todo, fica tudo amontoado. Arrumo até o chuveiro, só não me olho mais no espelho. Tô enorme, apareceu até um fio de cabelo branco. Já arranquei, inclusive. Na casa de Janaína não tem homeschooling nem home-office. Distanciamento social e isolamento também são um desafio. Sua casa, separada a uma pequena distância de muitas outras numa viela, tem dois cômodos. Tem dia que falta água também. Paraisópolis tem cerca de 100 mil habitantes espalhados por 21 mil domicílios em uma área de 10 quilômetros quadrados. A densidade demográfica é mais que o dobro da vizinha Morumbi: 10 mil habitantes por quilômetro quadrado [4].
Bel vive sozinha com o filho de 4 anos que é asmático. Só sai de casa mesmo para ir ao mercado ou farmácia pois teme que se ele pegar o vírus não vai resistir. Relembra a perda de seu primeiro filho que nasceu morto há seis anos e a de um irmão assassinado. A mãe órfã de seu primeiro filho me fala de sua dor sem consolo: não posso perder mais um. Me conta que as ruas estão lotadas. Aqui ninguém para não, quem tem trabalho tá na rua, quem não tem tá também. Se eu não morrer do vírus vou morrer é de ficar em casa.
O que eu sinto é uma exaustidão, doutora . Assim Josefa nomeia o que sente no corpo depois de inúmeras perdas familiares. A morte mais recente foi de sua irmã. Morreu assim, rapidinho. Não deu nem 7 minutos. Teme ser a próxima a morrer, por isso não dorme. O medo faz vigília nas suas madrugadas. A vida média[5] dos moradores em Paraisópolis é 10 anos mais curta do que a dos moradores do bairro vizinho, o Morumbi[6].
Até o início da pandemia, meu trabalho às sextas-feiras pela manhã acontecia em Paraisópolis, no Projeto Einstein/Comunidade, que mantém uma parceria com o Grupo de Pesquisa e Intervenção na Primeira Infância do Departamento de Psicanálise do Sedes. Assim como outras colegas do grupo, já há alguns anos atendo famílias compostas na sua maioria por mulheres, gestantes, mães e seus filhos pequenos. Muitas delas vítimas de violência física e/ou psicológica de seus parceiros. Famílias expostas repetidamente a um cotidiano de violência social. Trabalho que sempre nos convoca a pensar, como psicanalistas que somos, nosso posicionamento metodológico e ético. Coloca-nos também o desafio de compreender e articular as histórias singulares dos sujeitos que nos procuram com as estruturas que as sustentam e com as quais se entrelaçam: a cena social e política próprias ao nosso tempo e as características da comunidade a qual pertencem.
Em março deste ano, com a chegada da pandemia, os atendimentos presenciais foram suspensos e, assim como no consultório particular, nos propusemos a continuar os atendimentos on-line e a assumir novos casos em função do aumento da demanda.
Aqui a internet é que nem o leite da creche, doutora, mais falta do que tem. Mas a gente tenta. Paraisópolis fica na região onde mais tempo se espera por uma vaga na creche[7]. Muitas crianças vão à escola também para se alimentar.
O que eu tenho pra falar não posso falar daqui ; me revela uma outra paciente, referindo-se à falta de privacidade . Vou esperar o dia da faxina e te ligo de lá. Não ligou, foi dispensada pela patroa. Trata-se de um caso de violência doméstica, agravado pelas condições impostas pela pandemia. Estudos apontam um aumento de 40% dos casos desde o início da quarentena [8].
A partir das falas de algumas pacientes durante os atendimentos sou tomada por um pensamento sobre o que é viver e morrer nas comunidades. Morre-se como se vive. Rapidinho, amontoada, confinada, invisível. A morte, não representada para os que ficam, deixa o luto suspenso. Para quem se foi, a violência e o descaso de terem sido mal-enterrados, na expressão de Zygouris (1995). A naturalização da morte, o “E daí”, ecoa a cada vez que o noticiário atualiza o número de vítimas pela Covid-19, e evidencia, como diz Zygouris (1995), a crise da civilização: “não sabemos mais muito bem o que fazer dos mortos” (p. 55).
A pandemia destaca a presença de dois Brasis. Um deles poderia se chamar Brasil Paralelo[9], o da negação, do culto às armas e à violência, do descaso com as minorias, da necropolítica, do anticientificismo, da falsificação do debate acadêmico e tantas outras operações corrosivas que ameaçam a democracia. Um exemplo do outro Brasil, que tenta sair da crise com suas próprias pernas, é Paraisópolis. Sem políticas públicas efetivas para conter a pandemia, a comunidade se organizou coletivamente conseguindo o resultado surpreendente de registrar metade da taxa média de mortalidade pela Covid-19 na cidade [10]. Liderada pelo G10 (grupo que reúne líderes comunitários de 10 favelas do país), o modelo de auto-gestão elegeu 420 presidentes de rua, cada um responsável por 50 famílias. As ações de enfrentamento da crise de pandemia incluem alimentação e renda básica para as famílias mais prejudicadas, escolas transformadas em áreas de isolamento, capacitação de moradores em primeiros socorros e criação de 60 bases de emergência com ambulâncias, enfermeiros e médicos contratados. Prova de que é possível gerenciar uma crise de forma eficiente e humana. Se a crise da pandemia, na forma como é conduzida em nosso país, aprofunda ainda mais as marcas da desigualdade social e do desamparo, ela também revela a potência do coletivo e das ações solidárias.
O que podemos diante desse cenário? Como tecer o vínculo diante de tantas faltas, e agora mais uma: a falta do corpo presente do analista?
Elas de lá, eu daqui, no entre das telas, esse não lugar das conexões frágeis que falham a todo momento, desligando-nos a um só golpe.
Não desistimos. Buscamos novamente o fio invisível que nos conecta, voltamos a nos ligar. Você está ai? Congelou. Conexão fraca. Reconectando... Voltamos. Achamos novamente a passagem secreta! Rimos.
Assim vamos tecendo um diálogo, entrecortado pelas intermitências do sinal. Uma escuta atenta atravessa e alcança o outro, num movimento permanente de construção de laço, de busca do fio invisível que sustenta o sujeito e que se ergue contra o vazio e o desamparo. Algo vai se estabilizando na relação apesar das flutuações da conexão. Mesmo dia, mesmo horário. Posso te chamar? Já estou por aqui. Te escuto. Até semana que vem.
Josefa narra sua história de múltiplas perdas e inventa, em sua espontaneidade poética, a palavra exaustidão. Estaria me contando sobre a dimensão não alcançável por mim de sua vida exaurida, abatida, moída, derrotada? Palavras sobrepostas para dar conta de suas múltiplas feridas? É sobre perdas mas é também sobre sentir, pensar, partilhar e inventar. Operações possíveis a partir da escuta do inconsciente.
Outras conexões e deslocamentos vão se estabelecendo com o relato de sonhos. E com sonhos também imaginamos e inventamos futuros. Ao lado de seu bebê de 6 meses, Antônia me conta assustada que acordou com as mãos em seu pescoço. No sonho ela tentava tirar o filho de um poço fundo, puxando-o pelo pescoço. Uma outra pessoa ao lado, no sonho, observava. Usava na cabeça um capacete.
Nossos atendimentos sobreviverão às cenas de catástrofe que enodam vida e morte? Sobreviveremos ao impacto de nos vermos tão próximos dos abismos que tragam vidas? O mundo seria um moinho de gastar gente, na expressão de Darcy Ribeiro (1995)?
Para pensar essas questões me remeto novamente a Radmila Zygouris (2003) e ao conceito de vínculo em análise. Como característica da espécie humana ele não se reduz ao conceito de transferência, não pertencente exclusivamente ao campo da psicanálise. Portanto, excede o campo. O vínculo em análise, ainda que criado por este dispositivo, existe de modo autônomo. É um fluxo, e como fluxo não se repete.
A ideia de fluxo, diz ela, fala de uma composição feita de singularidades em presença, onde cada sujeito tem sua própria voz, seu próprio ritmo, o que ela chamou de “o próprio do sujeito”. O campo da análise é então afetado, transformado por esse estar junto de dois corpos que sentem, porém separados pela tensão dialética entre analista e analisando. Dito de outro modo, é no encontro com a alteridade do outro que pode advir, para além da repetição, algo novo.
Em outro sonho Antônia cozinhava em panelas grandes, vazias. Era panela pra todo lado. Mas não tinha um grão de arroz. Lembrou-se da mãe baiana, cozinheira de mão cheia, que mesmo vivendo em situação de muita pobreza, nunca deixou faltar comida aos filhos e nem às crianças da vizinhança que muitas vezes faziam fila na porta de sua casa, atraídas pelo cheiro. Depois da sessão me manda uma receita de pudim de mandioca. Memórias afetivas em fluxo engrossam o caldo de nossas conversas. Com tão pouco pode-se fazer os acontecimentos falarem e assim inventar um sentido para a vida. A função do trabalho associativo e interpretativo vai além de buscar o material suporte das inscrições fundadoras da infância. Desconstrução e reconstrução de outros sentidos menos sintomáticos e mais abertos e porosos, eis o nosso trabalho interminável.
Nara é costureira e agora faz máscaras para vender. A filha ajeita uma delas em seu rosto minúsculo, cobrindo mais do que a boca e o nariz. Isso diverte a mãe que diz que ainda não achou um molde tão pequeno. Agora deu de brincar de fim do mundo. Coisa do primo mais velho que gosta de assustar a coitada. Mas já disse que o fim do mundo não é nada não, é só um lugar muito, muito longe.
Nara tem a inventividade e a sensibilidade dos poetas. Dá à instabilidade do mundo um sentido outro, subversivo, de resistência, para que sua filha possa continuar brincando e se distraindo da finitude. Crianças levam a sério as brincadeiras. E quando amparadas por adultos de confiança, mesmo que tropecem no real várias vezes, encontram ali uma rede protetora.
Dar expressão ao vínculo, sem negar a tensão entre as pulsões de vida e morte, é permanecer, sempre que possível, ao lado da pulsão de vida. O fazer analítico, diz Zygouris (2003), consiste na mais ousada experiência sensível do pensar livremente, um pensar, que antes de mais nada, é um sentir anterior à formatação da linguagem. Dar livre curso ao “Isso pensa”. Ou, dito de outro modo, com a imagem usada por ela e que reproduzo aqui: “algo que despenca sobre nós, uma experiência fulgurante” (p. 61).
O longe é perto, o fim do mundo é logo ali. É aqui onde estou também. Estamos todos ameaçados pelo vírus, ainda que protegidos de formas muito diferentes. A tela é o longe perto. A partir desse não lugar, experimentamos e investimos num outro espaço de relação, nos olhando em pequenas janelas, ou nos ligando pelo som das nossas vozes. A experiência analítica nesse contexto remoto, de conexões instáveis e efeitos desconhecidos e ainda por vir, não deixa de ser uma aposta libidinal no laço, um esforço vital de sustentação do vínculo. É como ressignificar a brincadeira para a criança poder continuar brincando, atividade tão séria e importante para sua constituição como sujeito desejante. É preciso manter o fluxo do vínculo, suportar o horror das cenas, sem negar a possibilidade do adoecimento e da morte, mas não sucumbir. Trombar mas não morrer, deixar que a morte aconteça ao fim do tempo de viver de cada um, sem pressa, com dignidade, como é ou deveria ser para todos.
A possibilidade da morte está aí para todos, criando aproximação entre analista e paciente. Você está bem? Tem sido comum a muitos analistas a experiência de ouvir essa pergunta de seus pacientes no começo da sessão, muitas vezes acompanhada de um cuide-se, no final. No entanto, como cada um pode se proteger e se tratar vai depender do estrato social ao qual você pertence. As condições de vida (privilegiada ou precária) marcam diferenças e assimetrias na relação, inevitavelmente. No entanto, o trabalho do analista não o protege do impacto das falas e das cenas compartilhadas pelos pacientes nas sessões. Ao contrário, afetar-se pelas experiências é manter o corpo vivo do analista, deixar-se modificar pelo vínculo, mesmo quando a análise acontece virtualmente. Aí reside justamente a ação política da psicanálise, que ao sustentar esse fluxo contínuo do vínculo, legitima o sofrimento, denuncia a desigualdade e as cenas de horror em torno dela, dando voz ao sujeito para que ele possa reivindicar e construir caminhos mais plurais na sociedade.
O analista vivo, assim como o adulto para a criança, é via de acesso a uma zona protetora. Como diz Zygouris (2003), “um parceiro de confiança que possa esperar que o raio encontre a palavra, e a palavra é uma necessidade vital... a linguagem, nosso amortecedor” (pp. 62-63). Ele está junto no sonho, na sala de atendimento ou no fio invisível da tela, na sua passagem secreta, e com a rede protetora dos laços construídos não deixa desmoronar, não deixa o poço tragar o corpo. Atravessa junto o amontoado de dor e em sua função fundamental de testemunho, dá ao sofrimento um novo destino, o da experiência compartilhada, subjetiva.
Bibliografia:
Ribeiro, Darcy. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. Zygouris, Radmila. O vínculo inédito. São Paulo: Escuta, 2003. _______________. Ah! As belas lições! São Paulo: Escuta, 1995. [1] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, integrante do grupo de trabalho e pesquisa O feminino e o imaginário cultural contemporâneo, do grupo de intervenção e pesquisa clínica Da gestação à primeira infância e da equipe editorial deste Boletim. [3] Todos os nomes foram modificados, assim como alguns dados sobre os casos, a fim de preservar a privacidade dos pacientes. [5] O indicador foi criado pela Rede Nossa São Paulo a partir de dados fornecidos pela Secretaria Municipal de Saúde, referentes aos óbitos que ocorreram em cada ano. É calculado a partir da soma de todas idades ao morrer em cada bairro, dividida pelo número total de óbitos registrados no Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM), do Ministério da Saúde. [9] Uma referência à empresa brasileira de mesmo nome, que produz conteúdos audiovisuais, principalmente séries documentais e entrevistas com especialistas sobre temas políticos e econômicos com viés reacionário e negacionista.
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