RENATA UDLER CROMBERG [1]
Naquela manhã de sábado, 3 de outubro de 2020, eu e muitas pessoas de todo o Brasil nos colocamos à frente da nossa agora costumeira telinha de celular ou computador para assistir à fala de Silvia Alonso. De saída uma certeza: de que assistiríamos, como sempre acontece com o fruto das reflexões dessa psicanalista e pensadora ímpar da psicanálise, a um passeio profundo e encantador pelos meandros da constituição psíquica entre vários tempos, entre vários autores, entre problemáticas históricas e singulares difíceis de serem pensadas porque próximas ao impensável e uma abertura final ao desejo vivificante. Mais uma vez, a inquieta e apaixonada busca de Silvia nos caminhos psicanalíticos confirmou a beleza de seu estilo.
"A vida quer viver..." Reflexões sobre os efeitos subjetivos da des-humanizacão e as proteções do psiquismo é o nome da conferência que ela proferiu na Jornada continuada Faces da desumanização que a SIG, Sigmund Freud Associação Psicanalítica, sólida e prestigiada instituição de Porto Alegre, promoveu. Em breve deverá ser publicada pela revista da SIG, conforme anunciado no dia pela apresentadora Karen Wondracek, diretora científica da instituição e será também disponibilizada em 2021 na internet, ao fim da Jornada que dura todo o ano de 2020. O mais incrível é que, tendo sido escrita antes da pandemia, antes deste ainda inacreditável ano de 2020, sob o mal-estar de 2019, o texto apresentado ressoou tão atual, apontando que a pandemia é um componente a mais de um mal-estar civilizatório que já estava e continuará a estar com seus impasses após a passagem dela. Apresento como aperitivo um resumo do seu roteiro de viagem e portos de passagem, a partir do texto de sua conferência.
Como é que nos tornamos humanos? Como é que nos reconhecemos humanos? Qual o lugar do outro nestes processos de humanização e des-humanização? Silvia percorre o longo caminho que vai da condição de ser biológico à de um ser inserido no mundo da linguagem, da cultura, do simbólico que só é possível a partir do reconhecimento pelo Outro. A pulsão e o Eu serão a partir daí os dois fundamentos da vivência de humanidade no fluxo do tempo pela narrativa histórica que inscreve um devir, para cada ser singular. Fundamentos que estarão presentes como eixos e balizas nos caminhos da reflexão da autora. Nos jogos de poder e dominação, o racismo, o colonialismo, a misoginia e outros processos que fazem parte da humanidade não reconhecem o dominado como humano semelhante, eliminando qualquer vivência de ressonância empática, dando ao outro um imenso trabalho para existir e manter a identificação com o humano, fazendo desaparecer a compaixão e abrindo o caminho para a crueldade e a violência. Alonso escolhe situações limites de retirada de humanos do mundo do humano para refletir sobre os efeitos subjetivos e as proteções da sobrevivência psíquica.
Na segunda parte de sua conferência se pergunta o que nos faz viver, de onde surge o desejo de preservação da vida. Silvia se pergunta o que acontece com a sobrevivência do psiquismo nos processos de des-humanização, nas situações limites, o que acontece com o que fica atacado no psiquismo e como ele se protege. A partir de três autores, Ana Berezin, Marcelo Vinãr e Nathalie Zaltzman, ela exporá as situações dos judeus nos campos de concentração e o antissemitismo, a situação da tortura dos presos políticos nas ditaduras militares latino-americanas no século passado e os processos totalitários do século XX, em especial na Alemanha e União Soviética como material de seu percurso reflexivo. Ao analista, cabe um lugar no trabalho com traumatizados em situações limites, semelhante à figura do vigia que vem do trabalho de Berezin, para mim a mais forte metáfora de sua conferência. Nos trens que transportavam os judeus para os campos, um dos prisioneiros era levantado no alto pelos outros, para que pudesse olhar pela grade do respiradouro, que ficava a dois metros e meio de altura, para que narrasse o que via. Os prisioneiros tinham necessidade de saber onde estavam, que terras atravessavam, quem as habitava. Entre os vigias eram mais apreciados aqueles que se referiam com assertividade a um mundo verdadeiro, um mundo que não era o do horror, mas que se ligava ao mundo dos condenados por signos indecifráveis.
Um relato do estilo: "algumas mulheres estão reunidas junto à estação, nos olham de esguia, uma tem uma criança nos braços que indica o vagão, vou mostrar minha mão -diz o vigia- pela abertura". Ou seja, o vigia era alguém que estava na fronteira, registrava o que está no mundo de fora, mas também deixa marcas neste mundo de fora. Os condenados que estavam dentro do trem, perante este relato, podiam pensar: "alguém guardará a memória e contará aos netos: eu vi os judeus passarem pela estação". Então, o vigia reinstalava uma circulação entre os dois mundos: o dos condenados e o dos livres. Atravessava a fronteira entre o horror e a vida. O terapeuta, quando trata das situações traumáticas, como o vigia, reconstrói a ponte entre aquele que sofreu o trauma e outros mundos possíveis, o que permite que o psiquismo continue seu trabalho, que o desejo volte a fluir, e que se possa novamente sentir e pensar na vida. O reconhecimento da possibilidade de morte e de saber que a própria vida está nas mãos do outro também constituem proteções psíquicas nessas situações limites, uma vez que a recusa ou renegação da morte levariam o sujeito à morte psíquica. A memória, o sonho e a alucinação recuperam um fluxo do tempo que se contrapõe ao tempo do traumático, que é um tempo morto, onde a dor permanece ferozmente imóvel desfazendo pela compulsão à repetição a trama simbolizante. Para que algo do futuro possa ser avistado, algo do passado tem que ser recuperado, seja no sonho, seja na alucinação, seja na lembrança. De Zaltzman, a conferencista toma o conceito de pulsão anarquista no campo das pulsões e de identificação sobrevivente no campo dos caminhos do Eu para responder sua questão sobre de onde surge a força para manter a integridade narcísica, para se manter vivo quando o outro já o considera morto e exterminado. Quando a morte é colocada como única identidade possível, o que permite sobreviver é a força de um fluxo que vem da pulsão de morte, a pulsão anarquista, cuja função é encontrar uma saída quando o sujeito está fechado num destino de morte, como resistência ao outro totalitário. Será ela que não permitirá entregar-se à recusa ou à denegação da morte, o que levaria à própria morte. Já o conceito de identificação sobrevivente aponta para o trabalho da cultura nas experiências limites, que amarra o destino individual e a evolução do grupo humano. Ele seria a instância de "lucidez psíquica", menos ilusória que o "superego civilizatório".
Silvia tece algumas conclusões e reforça o seu pensamento de que o trabalho de Eros como ligação intrapsíquica, como trabalho de memória, de figurabilidade ou de produção onírica recupera sempre algo das presenças perdidas e do fluxo do tempo, trabalho que é vital para a sobrevivência psíquica. Assim, ela pensa que, do lado de quem vive os processos de desumanização, a função da pulsão de morte anarquista seria importante junto ao trabalho da pulsão de vida no processo intrapsíquico de ligação. Já do lado de quem desumaniza, ela pensa que o império da pulsão de morte é total, ao agir no movimento desidentificante do outro como humano. O pensamento de Green sobre a função objetalizante, que mantém o investimento significativo da pulsão de vida, opondo-se à função desobjetalizante com a força de desinvestimento da pulsão de morte, apoia essas conclusões e reforça sua ideia de desidentificação do humano como eixo fundamental da crueldade. Quando a destruição que concebe o objeto como uma coisa se pratica em grande escala, o desinvestimento se comprova facilmente e é o único meio de prosseguir a ação sem se deixar deter pela culpa.
Silvia convoca Freud para concluir e fundamentar seu passeio reflexivo. A conferencista encontra nas reflexões freudianas sobre a Primeira Grande Guerra o ponto de inflexão para o desenvolvimento da compreensão sobre a agressividade e o ódio, bem como sobre o sadismo e a dominação, pela separação radical entre o mundo do humano e o desumano, mundo do terror que a guerra trouxe, e pela desilusão que a constatação da força do mal promoveu em Freud.
E finalmente, a conferência desabrocha na abertura desejante do fluxo pulsional para a vida através do feminino singular, sem pacto algum com o totalitarismo e com a moral coletiva, o que sempre fez das mulheres, sobretudo as sábias, que desafiam a inevitabilidade da morte com o vivo, criaturas perigosas para os dominantes. Silvia nos fala do filme de onde tirou o belo título de sua conferência: A excêntrica família de Antonia, filme de Marleen Gorris, diretora holandesa, de 1995. Diz Alonso: “Nele depois da Segunda Guerra, Antonia retorna à sua cidade natal, um pequeno vilarejo holandês junto com sua filha, e durante 50 anos, protagoniza uma história de quatro gerações de mulheres. No vilarejo, a violência, que certamente não se circunscreve às guerras, faz das mulheres seu alvo privilegiado. O que nos serve para ver como as lógicas de desumanização funcionam no cotidiano de nossas vidas, assim como as resistências a elas. Condenadas ao lugar do silêncio, da submissão, do abuso e do objeto da violência machista nas suas piores formas, Antonia, sua filha, sua neta e sua bisneta, vão enfrentando um a um os preconceitos de uma moral absurda que as desumaniza. A cada nova transgressão desta moral mortífera que se lhes impõe, a vida parece cobrar força e se abrir em caminhos, na maternidade por escolha, no amor, na sexualidade com força desejante, na não submissão aos ataques. E em cada passo, cada mulher parece retomar seu contorno, um feminino singular sem pacto nenhum com o totalitarismo que a moral coletiva lhes impõe. E a vida flui, e o fluxo do tempo acompanha sua leveza, mas a vida como ela é, entrecruzada de vida e de morte. Sucedem-se uma série de vinganças, de desgraças e de mortes no vilarejo. Antonia, interrogada pela bisneta sobre a morte, olha para frente e responde: tudo vai continuar porque a vida quer viver...”
No debate que se seguiu à conferência, pinço um momento emocionante que traduz a emoção dominante dos ouvintes causada pelo impacto desta bela travessia no barco psicanalítico, conduzido com firmeza e maestria em mares revoltos por Silvia Leonor Alonso. Mario Pablo Fuks comentou que Silvia, com sua conferência, havia sido para nós, seus ouvintes, como o vigia do trem que conduzia os prisioneiros judeus ao campo de concentração. O que para mim se traduziu na ideia de que ela manteve-se o tempo todo na janela da vida seguindo naquele sábado entre as sombras pouco luminosas do tempo angustiante do presente, apontando o vivo da história e os gestos aparentemente banais do cotidiano que fazem a vida querer seguir vivendo pelo vivo da vida, para além da submissão e dominação, desidentificando-se delas, na persistência e afirmação da vida que quer seguir vivendo em nós, através e com o outro.
[1] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.