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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    60 Setembro 2021  
 
 
PSICANÁLISE EM PANDEMIA

NASCE UM CORPO, NASCE UM TEXTO [1]



DANIELA ATHUIL [2]



Num movimento simples, a mãe se curva, coloca o bebê nas costas e enrola um pano ao redor dela e do bebê. Em diversos países da África, a criança é carregada constantemente no corpo da mãe até dois anos. Ao ritmo de seu caminhar, a mãe canta, conversa e escuta sua criança. Fala-se com ela o tempo todo (Szejer, 1999).

Falar à criança, em respeito ao sujeito criança, é fazer a aliança entre corpo e linguagem. O corpo, testemunho ativo da formação do sujeito, desde cedo, antes da fala, como nos disse Dolto (2002), é lugar de linguagem. Abriga a palavra, em seus acontecimentos corporais.

Na ausência da palavra, quem paga é o corpo. É o corpo que dói, que sofre, que adoece. Enquanto não tem palavra, fica um não reconhecido, um deserto, desabrigo. Formam-se buracos de palavras.

Criar palavras para dizer o indizível, é conter o buraco que se abre em cratera, engolindo a vida. E isso se faz junto. Pensar, refletir, ouvir, contemplar, são atos que se realizam no mundo e com os outros.

Eduardo Galeano nos lembra em seu poema “Tecidos”, que

Quem escreve, tece. Texto vem do latim “Textum”, que significa tecido. Com fios de palavras, vamos dizendo, com fios de tempo vamos vivendo: os textos são como nós, tecidos que andam.

Nasce um corpo, nasce um texto. Iniciado por outros, com frases inacabadas, mensagens enigmáticas de experiências transmitidas, esquecidas ou silenciadas. Texto que continuaremos a escrever incessantemente ao longo da vida.

A partir de um ponto situado fora do sujeito, por um Outro que oferece um contorno, uma figuração, precipita-se o surgimento de algo, a saber, a construção do humano. Organicamente inacabado e dependente, mas cuja presença desencadeia um processo de troca, uma comunicação mais ou menos satisfatória e problemática.

Dolto (2002) afirmava que a criança pequena, em idade pré-verbal, pode funcionar como uma fita magnética. Assim ela registra fonemas e até palavras e frases, pedaços de linguagem que podem reaparecer vários anos mais tarde. Algo do que não pode ser dito escapa e ressurge como palavra cifrada. O que não foi dito não se esquece.

Portadoras de uma porosidade, as palavras carregam uma dimensão ambígua, impossibilitando sua aderência à realidade. A criança leva em seu caminho uma mensagem cifrada e esta tem efeitos sobre o seu corpo. Mesmo indecifrável, o corpo lembra. À semelhança de um palimpsesto, imagem evocada por Szejer (1999), pode-se fazer reaparecer traços da escrita anterior. E isso acontece porque a mensagem tem um sentido que foi apagado, forcluído.

A linguagem, portanto, opera como sustentáculo dos estímulos às pulsões de vida, mas também daqueles que apagam o sujeito, de acordo com o que se compreende daquilo que se diz ou que se oculta do sujeito.

Uma criança, a quem nunca foi dito nada sobre a experiência de seu nascimento, quando esteve entre a vida e a morte por várias vezes, diz na frente de seus pais numa das sessões comigo: Se eu não me cuidar eu vou morrer de novo, não é?

Quando o traumático não escoa, não encontra representação, há o risco de apagamento do sujeito. O que se repete é algo que não tem um lugar. Recorro aqui às palavras de Dolto (2002) sobre a importância de se falar à criança sobre seu drama: é como desfazer um feitiço, a anti-vida que está relacionada com ele (o bebê) e que impede as pulsões de vida de serem mais fortes que as pulsões de morte do indivíduo (p. 26).

Le Poulichet (1996), em sua pesquisa sobre os diferentes tempos da experiência analítica, considera que os acontecimentos traumáticos agem como restos diurnos, mas diferentemente do sonho, não produzem um trabalho de ligação, desencadeando uma espécie de pesadelo interminável. O perigo de não-representação, lança o sujeito num vazio absoluto, puro estado de desamparo.

De um diálogo tecido entre a analista e a adolescente que não sai de casa, muitas vezes nem de seu próprio quarto, faço um recorte:

-Não tenho medo de morrer, acho que tenho mais medo é de viver, sabe? Porque morrer é um dia só.

- E viver é todo dia. Dá trabalho, não é mesmo?

É assim que, aproximando seu rosto da tela por onde nos vemos e por onde realizamos suas sessões, a paciente me confidencia em voz baixa aquilo que não pode ser dito aos pais.

- Eles vão se assustar se eu falar essas coisas.

O que é dito pela adolescente me mostra o que foi excluído da novela familiar: lutos não realizados, depressões e um suposto suicídio. Um manto de silêncio recobre a casa. O que era segredo, silêncio, retorna e pede para ser falado.

Ainda na sessão, surge a associação entre a nossa conversa e uma série da Netflix que ela quer me indicar: A maldição da residência Hill [3].

A cena evocada pela paciente é um diálogo entre a mãe e seus dois filhos pequenos na hora de dormir:

- E se eu tiver um pesadelo?
- Podemos lidar com qualquer sonho que tiver
- E se eu sonhar que você nos manda para o escuro e nos machucarmos?
- Machucarmos muito! E se eu ficar tão triste e com tanto medo do escuro lá fora, que eu ponho veneno em mim, por anos e anos, até meu sangue virar veneno?
- E meu coração quebra bem no meio, e não consigo sentir nada feliz...até eu não aguentar mais e... eu ter que morrer? Você nos acordaria de um sonho assim?

A série chama menos atenção pelas cenas de mortos e assombrações e mais pelo terrorífico contido nos diálogos, como este acima lembrado pela adolescente. Os dramas e tragédias que habitam nossos porões familiares, ali deixados como se pudessem adormecer para sempre, assombram, perturbam e insistem, impedindo o acesso ao campo simbólico.

O irrepresentável surge com a força do traumático e pede sustentação nas imagens produzidas pelo inconsciente do analista. Le Poulichet (1996) fala da importância da transferência como lugar psíquico que dá figura ao que não cessa de se produzir sem se tornar passado. É desse encontro, desse lugar de passagem que o analista ocupa, que os acontecimentos podem se ligar à fala e ao silêncio, criando impressões inéditas e assim fazer surgir a presença do desejo.

Volto a março de 2020, Carnaval ainda nas ruas e já tínhamos circulando entre nós os primeiros casos da COVID 19. As medidas protetivas nos privariam dos encontros, dos abraços e beijos por tempo indeterminado. Rostos metade cobertos por máscaras, nos dificultariam o reconhecimento. Tocar a maçaneta ou apertar o botão do elevador deixariam de ser gestos automáticos e desimportantes. A ameaça poderia estar em qualquer superfície, ao alcance dos dedos.

2021 e ainda não sabemos o que fazer com os nossos mortos. Já passamos a tenebrosa marca de 500.000 no Brasil. Um vírus que se faz visível nas mortes, potencializado pelas ações genocidas de um presidente inescrupuloso e sua necropolítica e negacionismo em curso. Negar a possibilidade do adoecer e da morte é negar a dimensão subjetiva e coletiva do humano.

Na tensão máxima entre vida e morte, ofertar espaços de compartilhamento da dor e do sofrimento é urgente. Sem reconhecimento, sem palavra, o sujeito caminha para a perda de si.

A paciente está no oitavo mês de gestação. Acabara de perder seu pai por COVID, e diante da proximidade do nascimento de seu primeiro filho, me interpela: como vou dar à luz ao meu bebê nesse mundo, onde tudo aqui agora é dor, e lá fora não há nada de bom para mostrar?

Como vamos fazer esse reencontro com o mundo, que compromissos podemos reestabelecer com a natureza, com as relações, com a nossa humanidade?

Eis o trabalho de ligação, con-fiar, fiar juntos um novo tecido, uma nova superfície onde se possa ins/escrever algo que um dia poderá dar um sentido para a experiência, lá onde, pela ação do trauma, ela só existe como fragmento sensorial, pura intensidade: a experiência de quase morte.

Que possamos cumprir nossa função primordial como coletivo, esse esforço civilizatório de testemunho e reconhecimento da dor e sofrimento, de produção de sentidos para o enfrentamento das forças desumanizadoras das práticas do atual governo que concorrem com o vírus em sua letalidade. A lição mais profunda que a pandemia trouxe foi justamente a ideia de que cuidar de si é cuidar de todos. E este é um pacto incontornável.

E no caminho das produções de sentidos, a arte, a literatura são como trincheiras. É sobre isso que James Wood, no ensaio A coisa mais próxima da Vida (2017), nos fala: sobre seu encontro inaugural com a literatura, na infância e especialmente na adolescência e sobre a importância da ficção na vida contemporânea. A descoberta dos romances e contos que o marcaram, como espaços completamente livres, capazes de nos fornecer ressurreições admissíveis... já que permanecem sendo o jogo do não completamente. Os personagens não morrem completamente. Eles voltam para nós – ei-los de novo, naquele romance, pela segunda ou terceira vez que o lemos (pp. 33 e 34).

Como no conto “O beijo”, de Tchékhov, ao qual ele voltara diversas vezes, maravilhado com a ideia de que uma história sempre produz outras mais. Numa espécie de luta contra a invencibilidade do tempo, as histórias seriam para Wood, puro excesso de vida tentando ultrapassar a morte (p. 41).

Aos pais e bebês que acabaram de nascer, aos que chegarão ao mundo em breve, aos que partiram sem as devidas despedidas, aos que sentem o peso do mundo desses tempos sombrios em seus corpos, às crianças e aos adolescentes que não cessam de nos interpelar sobre a morte, é preciso falar, é preciso nos emprestar, nos oferecer como fiadores de palavras, de falas e fazeres que funcionem como uma rede que amortece a queda, como um tecido que envolve e segura o bebê junto ao corpo. Recuperar a trama do tempo, engendrar movimentos, ritmos, abrir espaço para composições singulares, onde todos os corpos possam e devam ser reconhecidos.

É preciso entoar o canto da vida, com agulha e linha:

“É sua vida que eu quero bordar na minha. Como se eu fosse o pano e você a linha. E a agulha do real nas mãos da fantasia. Fosse bordando ponto a ponto nosso dia a dia. E fosse aparecendo aos poucos nosso amor”

(Trecho da música A linha e o linho, de Gilberto Gil).

BIBLIOGRAFIA:

DOLTO, F. (2002). Tudo é linguagem. São Paulo: Martins Fontes.
LE POULICHET, S. (1996). O tempo na psicanálise. São Paulo: Jorge Zahar.
SZEJER, M. (1999). Palavras para nascer: A escuta psicanalítica na maternidade. São Paulo: Casa do Psicólogo.
WOOD, J. (2017). A coisa mais próxima da vida. São Paulo: SESI-SP editora.





[1] Escrito para Raias poéticas, julho de 2021.

[2] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, integrante da equipe editorial deste Boletim, do grupo de trabalho e pesquisa O feminino e o imaginário cultural contemporâneo e do grupo de intervenção e pesquisa clínica Da gestação à primeira infância.

[3] Uma antologia de terror criada pela Netflix, cujo roteiro é inspirado no livro de Henry James, escritor norte-americano, The Turn of the Screw.




 
 
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