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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    57 Novembro 2020  
 
 
TEATRO

SOBRE O GRANDE INQUISIDOR


ISABEL MARAZINA [1]

Recentemente participei como comentadora de uma encenação feita pelo Ágora Teatro, adaptada para o formato virtual e protagonizada por Celso Frateschi, com direção de Roberto Lage, sobre o célebre monólogo “O grande inquisidor”, um trecho do romance Irmãos Karamazov, um dos pontos altos da novelística dostoievskiana.


Sem me aprofundar na peça propriamente dita, que teve, a meu ver, achados muito interessantes na forma em que se armou o espaço cenográfico, entendo que uma das questões que retornou e que origina essas reflexões tem a ver com a maneira em que Dostoievski abre e analisa brilhantemente o discurso autoritário e os seus meandros, coisa que na atualidade está colocada de forma pungente num Brasil assolado pelas práticas ultradireitistas em todos os níveis de gestão e sociabilidade.

Uma das primeiras observações possíveis é uma regularidade sempre presente em qualquer discurso autoritário, que consiste na desumanização daqueles que se tornam o seu objetivo de domínio. É possível hoje acompanhar com clareza os processos de rebaixamento e desqualificação exercidos sobre os povos que foram despojados de sua condição de humanos para servir de pasto aos interesses predatórios de seus conquistadores.

Assim aconteceu com os indígenas das Américas, no chamado “Descobrimento”, hoje entendido como o maior genocídio da história humana, que eliminou mais de 90% da população nativa sob o brutal empuxo dos “civilizadores” europeus. Se existe um analisador preciso sobre esse processo, o encontraremos na Junta de Valladolid, o conhecido debate no qual se enfrentaram em 1550, no Colégio San Gregório de Valladolid, duas concepções antagônicas sobre a conquista. Uma delas protagonizada por Frei Bartolomeu de las Casas, que defendia a existência de uma alma semelhante entre indígenas e europeus, tese que imporia limites ao abuso e à exploração e sobretudo, à escravização dos “naturais”. A outra, cujo representante era o teólogo Gines de Sepúlveda, considerava os indígenas como seres inferiores, portanto passíveis de um domínio absoluto dos espanhóis sobre eles. O que se definia, enfim, era a possibilidade do colonizador de dispor de um exército de escravos para toda a conquista e exploração do Novo Mundo.

Queria me referir a uma cena maravilhosa no filme que se chama justamente Valladolid, de 1992, realizado pelo dramaturgo Jean Claude Carrière sobre esse encontro. No meio da acirrada discussão, o teólogo propõe uma prova: os índios, se tiverem uma alma semelhante, apreciarão os divertimentos cortesãos. Fazem vir uma companhia de bufões que se apresentam fazendo suas graças e palhaçadas para o grupo de indígenas trazidos por Frei Bartolomeu. Obviamente, os nativos não compreendem nada e observam assombrados essa insólita exibição. Sepúlveda aponta triunfalmente a prova da índole animal dos seres em questão... Embora tão trágica, a cena é efetivamente de uma comicidade irresistível, mas muito ilustrativa para pensar como todo um aparelho ideológico se coloca a serviço da necessidade de justificar o domínio.

Não é menos impressionante nos defrontarmos com os inumeráveis discursos que reduziram a raça negra a tenebrosas condições infra-humanas, amplamente denunciadas por numerosos autores e políticos, um deles - e não menor - Frantz Fanon, que deixa uma obra esclarecedora, em sua dupla condição de psiquiatra e militante.

Mas queria trazer um parágrafo do extraordinário texto de Louise Murat, O homem que se achava Napoleão. Uma história política da loucura, que pode nos ajudar a compreender o discurso do Grande Inquisidor.

“O que é o delírio? perguntam Gilles Deleuze e Felix Guattari em O anti-Édipo. É o investimento inconsciente de um campo social histórico. Deliram-se as raças, os continentes, as culturas’. Delírio do qual pode se dizer, mais que do bom senso, que é certamente a coisa mais partilhada do mundo... E o que é o delírio quando o Dr. Samuel Cartwright inventa em 1851 a drapetomania, conceito forjado a partir do grego drapetos (fugitivo) e mania (loucura) para estigmatizar a “doença” dos escravos negros do Sul dos Estados Unidos desejosos de se libertar da servidão, ou quando os médicos soviéticos substituem a palavra dissidência pela expressão paranoia crônica? A ditadura militar argentina não chamou de Loucas as Mães que toda quinta-feira se reuniam para reclamar pelos seus filhos desaparecidos? A HISTÓRIA DA LOUCURA PODE NÃO LEVAR EM CONTA A LOUCURA DA HISTÓRIA?”

Entendo que Murat nos dá um caminho esclarecedor quando toma a concepção deleuziana, rompendo com vários eixos de pensamento “natural” no campo das subjetividades. Deleuze aqui propõe o delírio como condição da subjetividade humana “muito mais que o bom senso” e concordamos com sua proposição, na medida em que permite que trabalhemos a visão da realidade como uma interpretação, assujeitada portanto às circunstâncias histórico- políticas, afastando por tanto qualquer possibilidade essencialista.

O grande mecanismo de captura que o pensamento autoritário nos propõe é exatamente o absoluto, o essencial de sua posição. O Inquisidor o coloca com clareza: “Nós sabemos o que é bom para eles (os humanos)... eles são frágeis, ovelhas perdidas, incapazes”... A Verdade está do lado dele, que fará qualquer coisa para sustentar essa proposição. Fundamentalmente, eliminar todo esboço de dúvida e diferença. Por séculos o grande mecanismo molar da Igreja Católica (assim como todos os dispositivos das religiões monoteístas) trabalhou no sentido de assegurar a infalibilidade do seu máximo representante, o Papa, e daqueles aos quais o Papa conferia poderes. Galileu bem o soube, instado a calar-se sua descoberta frente a uma Igreja que sustentava teoria distinta e que não podia errar.

Creio que a escolha de personagem que Dostoievski faz é muito inspirada. Poucas vezes, na longa trajetória de domínio e terror da Igreja Católica, houve uma instituição que assumiu tão clara e brutalmente uma posição de poder como a Inquisição. E também exibiu uma tamanha eficácia para remodelar imaginários sociais de acordo com o que as circunstâncias exigiam. Não é o objetivo desse trabalho, mas não posso deixar de me referir ao extraordinário texto de Federici, Calibã e a bruxa, que, numa ampla análise dos mecanismos de subjetivação que darão suporte à passagem do feudalismo ao capitalismo, inclui o destacado papel da Inquisição na extensa caça às bruxas, reformulando o lugar das mulheres das comunidades feudais ao lhes impor o papel de reprodutoras de força de trabalho (crianças e sustentação do lar).

Mas... por que seria necessária essa posição de saber infalível? Porque ela captura os humanos mortais - como expressa claramente o jovem La Boètie nos idos de 1500-1548, mais precisamente em seu Discurso da servidão voluntária - de forma a se submeterem voluntariamente ao capricho e a concupiscência do tirano?

Quais são os mecanismos pelos quais essa servidão se efetiva? Podemos nesse momento recorrer ao texto freudiano e nos perguntar se de alguma maneira aqui encontramos a relação que Freud analisa entre o líder e a massa, uma relação que articula um líder, como Ideal do Eu e os integrantes da massa, com ele identificados... mas não nos parece suficiente. Inclusive porque há no texto freudiano certa concepção da massa que segue a indicação de Le Bon que nos parece preconceituosa, em relação ao grau de irracionalidade que atribui ao indivíduo em situação de massa. Certamente Freud segue o espírito da sociologia da época, mas há algo interessante que podemos destacar, quando Gabriel Tarde, em um trabalho intitulado “Os crimes das multidões”(2015) se pergunta sobre o tipo de laço social existente na massa, “uma pessoa de mil caras” e aponta a simpatia, fonte de imitação e princípio vital dos corpos sociais. A simpatia forma multidão. E essa multidão, composto social primitivo, recebe adjetivações bem concretas: “selvagem (...) instável, tal como as mulheres e as crianças, mostrando tendência a se contradizer” . Se tomarmos o ponto de vista histórico-político, entendemos que uma concepção desse porte precisa ser relacionada com o momento social europeu, cujo clima era de profunda desconfiança em relação ao aumento dos protestos operários, as repercussões do caso Dreyfus, o anarquismo, que reviviam o medo do despotismo das massas e a necessidade de compreender qual era sua essência e movimento. Aqui me parece surgir um movimento semelhante ao que apontávamos quando falávamos da degradação do objeto que se precisa dominar. As massas eram profundamente ameaçadoras para os iluministas europeus - fundamentalmente franceses – por que estaria ali presente o fantasma da convulsão incontrolável da ordem social? Quando surgem os imaginários dos “feios, sujos e malvados”?

Se entendemos essa concepção, também podemos pensar em que tipo de liderança seria complementar a um agrupamento volúvel, pueril, instável e rebaixado em seu entendimento, presa de pulsões primárias e intensificadas. Tão conhecido... “Mão firme”, “Ordem cerrada”, etc. A promessa da salvação.

Relembro das palavras finais de um filme que recomendo para quem se interesse pelos jogos e vicissitudes do poder. O leão no inverno, filmado em 1968, com Peter O`Toole e Katherine Hepburn nos papeis de Henrique II da Inglaterra e Leonor de Aquitânia, sua consorte. Trata da sucessão do trono de Henrique e culmina quando ele desterra sua mulher para a Abadia de Salisbury, onde ela ficará até a morte de seu marido, em 1189. No momento em que ela sobe ao barco que a levará para o exílio, ele lhe fala, sabendo que essa mulher que nasceu no berço do poder entenderia, sobre a eternidade que confere o poder. “Nós somos eternos porque poderosos”.

Creio que esse filme nos ensina que, quando se trata de atingir a eternidade, não há limite que preste. Talvez, exatamente ali, surge uma articulação à qual precisamos prestar atenção, e da qual O grande inquisidor nos fala claramente. Ele diz, nos parágrafos finais de sua alegação frente a Cristo, um Cristo mudo e atento:

Saibas que não tenho medo de ti. Saibas que também estive no deserto, que também vivi à custa de raízes e gafanhotos, que também estimei a liberdade com que abençoaste os homens, e que também estive me esforçando para entrar nas filas dos teus eleitos, dos fortes e dos poderosos. Mas despertei do meu delírio e me recusei desde então a colaborar com a loucura. Afastei-me e ingressei na legião daqueles que corrigiram tua obra....

Os teus eleitos, os fortes e poderosos. Quais eram esses eleitos? De que poder ele fala? Talvez da possibilidade de suportar a liberdade, muito mais aterrorizante do que viver de raízes e gafanhotos? Talvez da queda dos imaginários que pretendem curar o desamparo, como se isso fosse possível? Abrir o espaço da irmandade como caminho para uma construção social coletiva, será esse o próprio terror? Os fortes e os poderosos do seu discurso são os que podem sonhar com essa construção, exatamente porque não se veem como poderosos sem os indispensáveis outros do laço social. A fala do inquisidor é uma fala ressentida, amarga, alimento do ódio que o possui quando se enfrenta com aquele que em um momento foi sua ilusão e ao qual renuncia por covardia. Mas essa é a fala da sua verdade.

Para que esse engodo não apareça, ele vai alimentar um povo de infelizes, que o enxergam no cume da sua arrogância e a ele se submetem numa aliança determinada a manter longe qualquer limite. Eles são pobres e miseráveis, mas se sentem protegidos por um semblante do pai que lhes diz o que têm que fazer para não morrer queimados. Ou seja, para alcançar os céus, onde nada lhes será negado. Nada mais infantilizado que a promessa da vida eterna, e consequentemente, nada mais poderoso na captura da subjetividade. Porque todos tememos a morte. Todos trememos frente a essa pavorosa mutilação de um corpo que definha até sumir. O Real nos apavora de um tanto que ou imaginamos que vamos poder com ele, ou procuramos alguém que nos diga que sim, é possível dominá-lo. Henrique II se sente imortal porque o poder está na sua mão, e aí tudo vale para preservá-lo.

O Grande Inquisidor tenta convencer o Cristo do ilusório de sua proposta de liberdade para ovelhas que só querem ser encerradas para mitigar seu desamparo. Nesse sentido, Vladimir Safatle faz uma afirmação muito instigante quando considera a proposição freudiana do desamparo como um fator estrutural, como um verdadeiro ato político. Político na medida em que desarma as promessas de acabar com o desamparo que geralmente alicerçam o poder totalitário.

E esse poder, não está certamente referido ao URVATER? Aquele que pode com a morte, com o limite, que atravessa as barreiras que os mortais comuns nem ousam imaginar? Lacan propõe que o mito do Urvater expõe a impossibilidade que todo sujeito tem de aceder ao gozo absoluto, porque o pai primordial assassinado o levou ao túmulo. Nós fazemos, através do sintoma neurótico, uma tentativa de encontro com o gozo, uma forma de satisfazer a pulsão de ordinário impossível ...

Mas eis aqui que alguém ousa encarnar essa figura. Dono e senhor do gozo. Ele retorna desde os obscuros porões da aliança civilizatória que o assassinou, mas não apagou sua marca de completude.

Ali que reside a sinistra inteligência do perverso e também o seu fascínio. Ele promete eternidade. Nenhum ditador se propôs a ser politicamente correto. Isso é para fracos, que precisam de outros, dessas bobagens democráticas... quanto mais ele burla o limite do tecido social, mais cresce seu fascínio, porque aumenta seu poder imaginário. E, vale um aviso, também aumenta seu poder real.

Pensar formas de combater sua hegemonia nos levaria outro trabalho, mas fica a indicação que o próprio inquisidor nos faz quando ameaça o Cristo com a fogueira. Ele sabe que se, ao modo de Antígona, existem seres que não cederão em seus desejos, dispostos a levá-los até às últimas consequências, seu império fatalmente se derruba.

Mas também podemos recolher a sugestão que os autores da adaptação da peça teatral fizeram. Sem esquecer que o diretor e protagonista sempre fala no plural quando se refere ao trabalho realizado. Na montagem, o lugar de Jesus está sendo ocupado pela câmera.

O espectador tem a perspectiva que a figura de Jesus teria. Um Jesus calado, profundamente atento, que não responde às diversas propostas do inquisidor. Todas elas destinadas a amedrontá-lo, a afirmar sua potência imaginária sobre um interlocutor que precisa temer e pedir pela sua vida. Lentamente, o silêncio abre o caminho para um discurso que no final, revela sua verdadeira condição. Patética, trágica, talvez.

Ocorreu-me que ali tínhamos outra chave para pensar em como lidar com a inflação imaginária que se alimenta dessa captura da potência desejante para colocá-la a serviço do terror ou da indignação que, como seu nome o indica, despoja de dignidade. Quase estamos frente a uma posição analítica no sentido forte da abstinência. Isso vale como uma forma de pensar estratégias para enfrentar uma oferta de captura semelhante, tão vigente hoje nas nossas condições de vida no país.

Finalmente, entendo que algo do carinho de Dostoievski pela condição do grande/pequeno inquisidor aparece no seu desfecho. Apesar das repetidas ameaças, quando Jesus se levanta e se afasta, após beijá-lo, ele o deixa ir.

Bibliografia:

Federici, Silvia - Calibã e a Bruxa. Editora Elefante, São Paulo, 2017.

La Boétie, Etienne - Discurso sobre a servidão voluntária. Editora Martin Claret, São Paulo, 2010.

Murat, Laure - O homem que se achava Napoleão. Editora Três Estrelas, São Paulo, 2012.

Safatle, Vladimir - O circuito dos afetos. Editora Autêntica, São Paulo, 2016.

Tarde, Gabriel – A opinião e as massas. Editora Martins Fontes, São Paulo, 2005.





[1] Psicanalista. analista institucional, doutora em Saúde Pública pela FSP-USP. Foi diretora da Clínica do Sedes Sapientiae e supervisora clínico-institucional das Redes de Saúde Mental de Santos e São Paulo. Foi professora do Curso de Agentes de Saúde Mental do Instituto Sedes Sapientiae e do Curso de Extensão de Psicopatologia e Saúde Pública da FSP-USP.




 
 
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