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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    59 Julho 2021  
 
 
ARTE E PSICANÁLISE

O PÉ DE FEIJÃO E A PIA


ANA TATIT[1]


Por que um pé de feijão nasce em uma pia de lavar louça, onde escorre a água dos pratos, copos, panelas? Que luta é essa pela vida, pela germinação e crescimento em situação tão adversa?



O PINTOR E O ANALISANTE


O que sente um pintor diante da tela em branco? O que sente um analisante antes do início de sua sessão? São essas perguntas que me mobilizam e que me impulsionam a escrever essas reflexões. Como artista e analisanda não posso deixar de relacionar a angústia do pintor diante da tela e a sala de espera do consultório analítico.

O pintor, diante da tela em branco, sente um tipo de emoção muito específica, própria de alguns artistas, e só de alguns, que sofrem antes do início da pintura, e também durante o processo de construção, como se fosse um trabalho de parto que se estende até o nascimento do bebê – dores que vão se transformando – piorando e amenizando, mas que ainda assim não cessam logo em seguida à sua completude. Não dá para não parir/pintar, não tem escolha, tem sim que haver a expulsão e isso se dá com sofrimento. Momentos de prazer existem, são pequenas sensações de realização, duram pouco e logo são substituídas novamente pela angústia.

São dez anos de um trabalho profundo de análise com uma média de três sessões por semana vividos sob muita tensão, sempre. Principalmente nos primeiros anos de trabalho, saber que era o dia de análise, aquele conhecido “frio na barriga” se manifestava repetidas vezes; suspiros “do nada”; dor de barriga e idas ao banheiro, várias; mãos geladas, constantes. Antes de entrar na sala do consultório e nos primeiros minutos estando lá dentro, tempo de silêncio, é quando a angústia grita mais alta ainda. O coração palpita forte, meu corpo permanece rígido e imóvel e a cabeça se pergunta: por onde começar? O mesmo sentimento diante da tela em branco... por onde começar? Mas dada a primeira pincelada assim como a expressão da primeira palavra/frase, o branco da tela e o silêncio do consultório são interrompidos - imprime-se uma marca, inicia-se uma conversa. Essa marca alivia, em certa medida, pois pode ser vista na tela e ouvida pelo analista; pode ser uma marca superficial, pode ser aproveitada, pode ser posta de lado, sobreposta, pode inclusive desaparecer se não for interessante, ou, pode ser incluída no diálogo que se segue, ser estrutural, reaproveitada, transformada e ressignificada provocando certo sentido. Nada é de antemão garantido. A primeira pincelada/palavra é provocativa, incita outras. Afasta o Grande Silêncio, não interessa sua qualidade, ela será inevitavelmente transformada no decorrer da sessão (atelier/consultório). Essa inscrição tem uma função importante – a de dar início. Seria racional e controlador tentar preservá-la, impedi-la de ser transformada - acabaria não resultando nem em uma pintura nem em uma sessão de análise. O começo serve de base ou estímulo e, principalmente, como superação do vazio, da condição do nada. Ninguém faz Arte nem Análise sem derrubar essa barreira; aquele que ultrapassa o bloqueio, por mais humilde que seja a criação, entra em contato com sua própria subjetividade.

A sala de espera... minutos infinitos... solidão... expectativas... a sessão já começou? Sim para mim; como disse, “dia de análise” desperta a angústia logo cedo, aumenta durante o translado da casa para o consultório, há um pico alto na sala de espera, acelera ainda mais ao ouvir a frase “vamos lá?” e finalmente transborda no ato do encontro, do deitar-se no divã e dar início à conversa.

O atelier... não se trata de “hoje estou inspirada, vou lá”, de forma alguma! O ateliê é o espaço de trabalho, e o trabalho é árduo, constante, responsável. Com ou sem vontade deve ser como qualquer outro trabalho, é um ofício, precisa de dedicação diária. É claro que sendo artista sou a própria empregadora e empregada, há mais autonomia e flexibilidade, o que não torna o trabalho leve e agradável necessariamente.

Utilizar-se das linguagens artísticas, como uma “terapia”, um descarrego, relaxamento para expressar subjetividades está ao alcance de todos. Poderia até afirmar que realmente fazem muito bem aos indivíduos, pois além destes efeitos prazerosos, desenvolve a criatividade muitas vezes adormecida em nós. Mas não é disso que estou falando aqui. Estou falando da arte como um embate; embate interno entre o desejo da expressão livre (livre associação) e o controle indesejado, incontrolável que torna inibido o caminho da expressão “pura”. Pura entre muitas aspas, tantas que essa palavra chega a ser inadequada; quem sabe sua escolha tenha sido feita para criar um paralelo entre o desenho da criança e o desenho do adulto. Aquilo presente nas concepções das crianças – não se resume inteiramente nas palavras inocência, espontaneidade, liberdade, apesar da presença dessas qualidades, mais conhecidas e repetidas; o desenho da criança é pura essência, ele fala dela em linha direta. Ninguém olha verdadeiramente um desenho de criança, dificilmente alguém compreende sua complexidade. O adulto se atém à espontaneidade, à beleza de sua simplicidade e, principalmente, ao tema de maneira superficial, frequentemente caindo em interpretações que fazem sentido para ele, o adulto. Incorrem em suposições errôneas, nomeiam as formas conforme o limite de seus próprios repertórios, muitas vezes desapontam a criança, se adiantam no lugar de perguntar para ela, a criança, o que está representando com seu traçado. Posso afirmar, com certeza, que não há um traço no desenho da criança, por mais insignificante que nos pareça, que não tenha um valor, um sentido que compõe com os demais traçados. A criança não decora sua produção, ela narra uma história. O desenho da criança fala, é preciso saber ouvi-lo. Já os pintores, são poucos os que dão conta de cada centímetro quadrado da tela sem contradição ou embromação. A maioria de nós, incluindo alguns artistas maiores, preenche espaço.

Que estado é esse, que causa o que estou aqui nomeando como angústia, vivido pelo artista e pelo analisante? Estou me baseando na minha própria experiência, no sofrimento presente diante de que “tudo pode acontecer” na tela, na sessão. Não é do vazio que se iniciam os dois trabalhos; no meu caso, há uma busca pelo relevante, há um direcionamento inicial na busca, por exemplo, de um assunto. Há o início de alguma intenção. Não é qualquer tema que vale a pena, não é conversa para ser jogada fora, não é o nada, o absolutamente supérfluo. Não dá para iniciar uma conversa descrevendo a macarronada que comi no dia anterior, ou pintando o macarrão para depois deixar “acontecer” outras associações mais significativas, se a macarronada e o macarrão não me afetaram em nada, não causaram nenhum tipo de afeto. Seria um começo sem perspectiva de futuro, é uma marca (pincelada/palavra) que não fala de mim, que inclusive trará um novo problema, o desejo de apagá-la e iniciar novamente. Se a tela recebeu um sinal gráfico, deu-se início a uma conversa. O artista/analisante verá e escutará sua marca/fala e dela virá o ato iminente, o que se pede a partir daí. A iniciativa do artista e do analisante pode vir não somente de um único traço/palavra, evidentemente; eles se estendem, formam frases, parágrafos, narrativas, etc., assim como das pinceladas podem aflorar outros gestos, outras cores e relações entre formas, manchas etc. Não interessa o que emerja, um diálogo será iniciado, mesmo que só a macarronada tenha sido permitida revelar-se naquele determinado dia - ficaremos com ela!

Não estamos desacompanhados em um consultório no momento da sessão, podemos até sentirmo-nos sós, mas o analisante por si só já é a sua própria companhia e, claro, há um interlocutor na escuta, o analista, e é nesta relação de transferência que acontece o trabalho. No caso do artista, que conversa consigo mesmo o tempo todo, também há um interlocutor presente, a tela, que conversa, dialoga, instiga, aceita ou rejeita, discute, cobra verdade, profundidade, ação e reação, enfim há um diálogo profundo e doloroso, que vem da criação propriamente dita, aquela que diante de seus olhos emerge, como a aparição de uma baleia que atravessa a superfície do mar e se torna nítida no ar. É preciso ouvir o que a pintura está dizendo, é muito importante ouvi-la, porque ela pede, ela encaminha pelo menos uma nova intervenção: uma ação como a escolha de uma cor da paleta, um lugar na tela onde deve ser revisado, o detalhe de uma figura, a destruição de registros agora indesejáveis, desequilibrados, que perderam o sentido conforme o processo foi se desenvolvendo. Como é difícil abrir mão do que parecia tão adequado, bonito, sensato! Quando o artista e o analisante se encontram no turbilhão do exercício da expressão, o ato do trabalho, há como que um mergulho sem volta. O que é um mergulho sem volta? É uma entrega verdadeira, o que poderíamos chamar de absorvição do tempo, espaço, objeto e sujeito (os). O tempo da sessão, na análise e na pintura, delimitam a dedicação do analisante e do pintor, com maior intensidade e tensão, pois inclui o ato da exposição e expressão, aquele ato que carrega os afetos internos, íntimos que são postos para fora. São sempre verdadeiros pois foram simbolizados através das palavras e das pinceladas, sendo assim saíram do registro do inconsciente para o consciente (seria isso?). O analista ouviu e a tela marcou. Ao longo do tempo da sessão analítica (tempo determinado a priori) e da sessão artística (tempo indeterminado), vão sendo acrescidas novas simbologias, os desejos, as fantasias vão sendo externalizadas, podem aparecer boas conexões que fazem sentido ou frustrações inevitáveis. Controle e espontaneidade, liberdade de expressão e confinamento da mesma, aceitação e rejeição, esforço em despir-se das armaduras e segurança nas defesas..., mas o que o analisante e o pintor buscam nesse encontro? Não saberia responder pelos outros, nem para os outros, quem sabe tenho alguma pista a partir da minha experiência: uma boa sessão de análise me faz sair pensando por muito tempo e, consequentemente o trabalho continua – novas associações, lembranças, ressignificações, perguntas...;uma boa sessão de pintura também me faz sair pensando, e me dá saudades de vê-la novamente, de reencontrá-la no dia seguinte com um olhar de distanciamento, como se fosse possível um olhar de fora de mim mesma para o objeto criado. E ambos os trabalhos continuam, com determinação e persistência, mas sempre a tensão está presente. Mas quando as sessões terminam, há um alívio imediato porque saímos do espaço de trabalho. É preciso romper com o consultório/atelier. É preciso “sair do barato”! É tudo muito intenso portanto deve ser interrompido e, mesmo que saiamos refletindo o que lá se passou - o que é muito natural que aconteça - é preciso aliviar a quantidade de afeto ali depositado e exposto.

Os pares - inibição e espontaneidade, frustração e realização – são, por assim dizer, conteúdos presentes em permanente debate, próprio ao artista que faz Arte e ao analisante que faz Análise. É na ação que se passa no atelier e no consultório onde essas dualidades se manifestam com a maior intensidade pois estão em busca de uma representação, de um desejo de externar-se, de tornarem as fantasias visíveis e audíveis. Há uma cobrança proporcional às necessidades do artista/analisante, pois nesses espaços algo tem que aparecer para acontecer. O desejo por uma expressão espontânea e livre, é tão veemente que causam sofrimento; o artista não deseja pintar com a cabeça, com a razão, com o controle descontrolado, nem tampouco deseja pintar sob efeito de drogas, que poderiam amolecer essa coisa tirana (chamada superego) que se impõe no meio do caminho. Um dos aspectos do sofrimento pode estar justamente aí nesse conflito. Se há inibição, há frustração, pois intui-se que algo verdadeiro deveria emergir e fica nítido quando isso não acontece. Não que seja falso, mas a conversa/pintura soam superficiais, não rompem nada, não acrescentam, não convencem. É claro que, no meu caso, há muita exigência, há forte cobrança de minha performance com a pintura e com a análise. Não me venham com “relaxa e deixa acontecer”! A cabeça de quem cria não é relaxada, é atenta, está sempre tentando captar aquela “coisa” inexplicável que pode ter a ver com a intuição, que pode liberar a fantasia, o desejo. A cabeça é conflituosa, pois está em luta querendo agarrar o que é fugidio, o que lhe escapa - e quer fazê-lo não com a razão que persiste em manter o controle. É preciso, por outro lado, esquecer-se do conflito, mesmo que por pequenos instantes, (e isso acaba acontecendo) e é no esquecimento que o sujeito sonha, devaneia, a palavra escorre e as pinceladas fluem libertas. A gente sente esses momentos, é o salto para dentro, o mergulho mais profundo, é quando a gente está lá, só lá. É quando as associações livres realmente acontecem, o controle se distrai e um pensamento leva a outro, uma cor leva a outra e ambas as construções evoluem. Nesses pequenos instantes plenos, justamente quando o analisante e o pintor estão intimamente ligados à sua análise e à sua criação, quando estão de fato interiorizados, são os momentos que eles têm abertura para ver e ouvir, e assim promover o diálogo com a pintura e com o analista. Abre-se uma clareira no obscuro, algo faz sentido e a excitação finalmente é parcialmente aliviada, traz uma sensação de prazer como um momento de esvaziamento. Mas dura pouco, daí a necessidade de aceitação de um nível mínimo de tensão necessário para viver, a isso Freud chamará de princípio de constância.

Até artistas geniais expressam a angústia diante da tela em branco. Matisse escreveu: “nunca comecei uma tela sem sentir medo”. Picasso comentou que sua alegria era ter garantida a base, o início. Após quebrar a tirania do branco o fluxo o conduzia, o desenho se redesenhava, a obra se construía através de camadas de borrões e grafismos que desapareciam ou se corrigiam, deixando atrás alguns rastros do caminho – poderíamos pensar em marcas mnêmicas na tela?

Talvez entre os leigos seja preciso reforçar que a pintura fala, apesar da solidão do ato de pintar, é ela que (ou quem!) dita os próximos passos, ela pede que se siga adiante ou que destrua o que foi feito, ela pede um tipo de textura, uma mancha, uma determinada cor, uma forma, criando assim as relações. Há como que algumas recompensas quando isso acontece, quando flui. Aquela expectativa muito intensa da sala de espera e da tela em branco parece que encontra minimamente a satisfação – é aí, nesse ponto, que acontece a criação.

Depois vêm o silêncio e o distanciamento da tela, tão necessários para um “olhar de fora”, menos “possuído”.

Quando acontece a manifestação autoral é porque a técnica e a razão sucumbiram à expressão. Entendam aqui a técnica enquanto aprisionamento da criação, ela não pode determinar um fim nela mesma. Ela ampara o pintor pela sua própria vivência, pelos anos de experiências, porém, o pintor deve se sentir livre, pois caso contrário ele se prenderá ao absoluto conhecido, tornando-se executor de ideias prévias, a fim de evitar os impasses criativos. Os que a colocam em primeiro plano apelam a procedimentos premeditados, sequências decoradas de domínio técnico, de combinações de cores já experimentadas, de desenhos repetidos – esse tipo de conhecimento é controlado e o controle leva à inibição e não conduz à liberdade. O espaço do inusitado é imprescindível, sem ele o artista não embarca no desconhecido. Se assim me lembro bem, Freud anunciava as regras da técnica analítica, entre elas a associação livre. Se me fossem apresentadas às regras da análise, com certeza estas me causariam fortes inibições. A busca pela liberdade, no entanto, “não conduz necessariamente a resultados inquestionáveis, mas as mil soluções à disposição brotam naturalmente de um interior livre, daquela mesma fonte onde bebe a criança saudável, tão evidente pra ela como distante de nós. As crianças ao invés de se enredarem na teia escolhem o papel da aranha.” (José de Moraes).

Lembram do pé de feijão nascido na pia?

 



[1] Artista-educadora, ministra aulas de artes, música e jogos e brincadeiras no curso de pedagogia do Instituto Singularidades. Nesta mesma Instituição coordena o curso de pós-graduação lato senso A arte de Ensinar Arte. Publicou os livros paradidáticos 300 Propostas de Artes Visuais, Editora Loyola, 2003; coleção Brinco e Canto (4 volumes), Editora Melhoramentos, 2015; Brincadeiras para tirar o bumbum da carteira, Editora Melhoramentos, 2019. Fez dez anos de análise.




 
 
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