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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    60 Setembro 2021  
 
 
PSICANÁLISE EM PANDEMIA

A ESCRITA DO TRAUMÁTICO. O FACE A FACE COM A MORTE


EVA WONGTSCHOWSKI [1]



Pandemia? Vou tomar a liberdade de falar de uma brasileira, que viceja aqui nas nossas plagas, nesta terra onde há palmeiras, onde “canta o sabiá”, e “as aves que aqui gorjeiam, não gorjeiam como lá” (1).

No site do CNJ, Conselho Nacional de Justiça, consta que no Brasil há 30.982 crianças em situação de acolhimento abrigadas em 4.533 unidades, sendo que 5.154 estão aptas a serem adotadas. O acolhimento se dá por situação de risco, negligência, de abandono, maus tratos, entre outras violações de direito. De 0 a 6 anos são 7.997 crianças. O SNA – Sistema Nacional de Acolhimento registra um número muito maior de crianças abrigadas no Sudeste em comparação ao Norte do país; nossa hipótese é que a emigração do Norte para o Sudeste – parte mais abastada do país - desorganiza as famílias. Não é pouco lembrar que as condições de adoção e abrigo de bebês melhoraram substancialmente nos últimos anos, mas ainda há muito por fazer pela nossa infância e adolescência.

Segundo os dados do Instituto Água Viva, a cada minuto morre uma criança por conta da água contaminada, a cada 5 minutos uma criança morre por má nutrição. 23 milhões de pessoas não são servidas por água potável. Banheiro de uso exclusivo para cada família é raro. Paredes externas das casas são construídas por materiais não duráveis; o número de moradores das unidades domiciliares é superior ao adequado. Nossa população gasta excessivamente com aluguel. De acordo com os dados da Folha UOL em 2021, houve um salto na taxa de pobreza extrema no Brasil. Em janeiro de 2021 12,8% dos brasileiros passaram a viver com menos de R$ 246,00 ao mês (R$ 8,20 por dia), segundo o cálculo feito pelo FGV Social com base nas pesquisas nacionais por amostra de domicílios. A cada ano de ensino regular cursado aumenta em 15% o salário futuro e em 8% a chance de conseguir um emprego. Em Santa Catarina, durante a pandemia, só 2% dos alunos deixaram de receber material para atividade escolar. No Pará foram 42%. Hoje 35% dos jovens brasileiros não trabalham nem estudam. Em maio de 2021 o custo de vida nas cidades brasileira variou até 14% segundo a pesquisa Custo de Vida Nacional realizada pela Mercer Brasil. As maiores vítimas da violência são jovens do sexo masculino, entre 15 e 29 anos (são 53% do total de homicídios), sendo que pretos e pardos somam 75,5%; 68% das mulheres assassinadas são negras (dados da Folha UOL). Essa é uma das pandemias brasileiras: muitos órfãos, perda da liberdade democrática, da expressão, da associação, de ir e vir, do direito de propriedade.

Ferréz, nome artístico de Reginaldo Ferreira da Silva, nascido em 1975, transforma em literatura todas essas estatísticas. Escritor, poeta, rapper e empreendedor cultural brasileiro, morador do Capão Redondo, publicou 10 obras entre 1997 e 2015. Trabalhou como balconista, auxiliar geral e arquivista. Ferréz nos leva pelas ruas, casas, comércios onde o “futuro fica mais pra frente, bem mais pra frente”. Capão Pecado é um marco da literatura batizada de marginal, e se constitui num “cartão postal do fim e do fundo do mundo”. A segunda edição é de 2.000, onde se lê “entra ano e sai ano o sistema na favela continua o mesmo, claro, com algumas adaptações. Alguns conseguem edificar uma casa, outros perdem a sua na enxurrada, poucos progridem, muitos regridem. Estamos no lixo, mano... não temos muitas oportunidades por aqui, a não ser o tráfico, o roubo a banco, o futebol e o pagode; fora isso você tem que se sujeitar ao salário mínimo e esperar que alguma coisa boa aconteça...” O único jeito é crer em Deus (um dos livros de Ferréz se chama Deus foi almoçar) fazendo a revolução ideológica, montar formas de ataque, conseguindo espaço aos poucos, pois temos força sim, mano. Somos a maioria, é só usar nossas cabeças, estudando, nos informando, esperando a virada, e quando ela chegar, vamos dizer: aí a favela, toma conta de ponta a ponta”. Ler Capão Pecado equivale a olhar pelo buraco da fechadura das estatísticas, nos conta sobre o coração e os desejos dos habitantes de Capão Redondo, mas sobretudo da injustiça social e dos modos que o ser humano foi inventando para tentar sobreviver à brutalidade e ao aperto da vida. “Capão é um livro de mano a mano, é ácido, violento. É um grito”.

Em 2020 José Falero edita seu primeiro romance aos 33 anos, Os supridores. De servente de pedreiro a escritor. Nascido em Lomba do Pinheiro, periferia pobre de Porto Alegre, conta que ficou feliz que seu livro tenha sido recebido no circuito literário. Mas mais feliz ainda que as pessoas de Lomba do Pinheiro leiam e gostem dele. Conta que se dependesse das instituições formais nunca teria se tornado um leitor. Falero relata ao Portal GZH livros: “por volta dos vinte anos fui desafiado pela minha irmã a realizar um fato inédito na minha vida: ler um livro inteiro. Ela disse que minha opinião não valia nada, pois eu nunca tinha lido um livro” (crítica que não procede, mas...). “Peguei um livro emprestado que era sobre lobisomem. Nunca mais parei de ler. Que mecanismo era aquele que me fascinava?” Passou a ler sobre teoria literária e gramática. Depois de jornadas extenuantes como servente de pedreiro, se debruçava horas a escrever. Escrevia e jogava fora. Não sabia como melhorar. Com o tempo foi se tornando mais seletivo nas leituras e não encontrou em nenhum livro a vida que era vivida na Vila Sapo da Lomba de Pinheiro. Foi postando seus textos e começou a conhecer “uma pá de gente, igual a mim”, diz. Seu livro não é só um romance, é um texto de sociologia, economia, antropologia. Conta as entranhas da origem da criminalidade, da violência; discorre sobre a ganância da elite, mas também sobre solidariedade, dignidade. É um belo tratado sobre administração, trabalho em equipe, trabalho em rede. Tal qual Capão Pecado nos ensina como o sofrimento contínuo do corpo e da alma são traumáticos, empobrecedores, humilhantes. Rasgam o corpo e deixam marcas fundas.

Anis Shivani, poeta e crítico literário, citados por Belluzzo e Galípolo em Escassez na abundância capitalista, escreve um texto a respeito das peripécias neoliberais. O neoliberalismo, diz, pressupõe um estado forte, operando exclusivamente em benefício dos ricos e poderosos, sem qualquer pretensão de neutralidade e universalidade. “Em vez de reivindicarem a proteção social como um direito legítimo os cidadãos se sentem culpados, vexados e deprimidos por sua dependência dos programas sociais”. Belluzzo e Galípolo continuam: “convencidos de sua liberdade, os indivíduos livres entregam seu destino aos grilhões da concorrência e às ilusões da meritocracia. Transtornados por suas culpas, os perdedores acomodam-se aos suplícios da exclusão e da desigualdade. Ferréz e Falero conhecem o assunto de cor e salteado.

Referências Bibliográficas

Belluzo, L.G; Galípolo, G. A escassez na abundância capitalista. São Paulo, Contra Corrente, 2019.
Dias, G. Canção do exílio, Primeiros cantos. 1843. Domínio Público.
Falero, José. Os supridores. São Paulo, Todavia, 2020.
Férrez. Capão pecado. São Paulo, Labor Texto Editorial, 2000.





[1] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.




 
 
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