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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    54 Junho 2020  
 
 
TEATRO

KIMVN TEATRO DOCUMENTAL
MEMÓRIAS, RAÍZES E TEATRO MAPUCHE NO CHILE DE HOJE-
MITSP2020


LÚCIA HELENA NAVARRO [1]


A arte está em processo de retornar ao que lhe é próprio, a vida.
John Cage [2]



Gostaria de contar sobre a proposta de teatro documental do grupo teatral KIMVN, que traz para a cena a voz e a ancestralidade do povo Mapuche, conectando lutas por direitos atuais com as dos seus antepassados e, também, com a violência vivida na ditadura civil-militar chilena.

Nas manifestações de rua no Chile, iniciadas em 18 de outubro de 2019, é possível ver as bandeiras Mapuches que ali se encontram, com três listras largas: azul, verde e vermelha. "Os maus-tratos e a discriminação estavam velados para a população chilena, mas agora muita gente levanta a bandeira Mapuche; parece que toda a gente quer se encontrar com uma origem que nos negaram” [3], diz Paula Gonzáles Seguel, uma das diretoras e fundadoras do grupo KIMVN.

Conheci Paula em uma Roda de conversa sobre Memórias, raízes e teatro Mapuche no Chile de hoje, que fez parte da 7a. edição do MITsp 2020 (Mostra Internacional de Teatro de São Paulo), dia 07 de março pela manhã, no Centro Cultural Oswald de Andrade, com mediação de Maria Fernanda Vomero. Paula é atriz, diretora e dramaturga chilena Mapuche, formada em teatro pela Universidade Mayor, fundadora da Companhia KIMVN teatro documental, em 2008, junto com sua irmã, Evelyn González Seguel, psicóloga e música.

Inicialmente nomeado Teatro KIMEN, que significa emmapuzungun: Me conheces?, é renomeado em 2016Teatro KIMVN, que significa conhecimento [4]. Companhia multidisciplinar que busca promover a valorização da língua, cosmovisão e cultura do povo Mapuche e dar visibilidade à violência histórica que viveram, promovendo a defesa e o respeito aos direitos humanos por meio das artes.

No aniversário da companhia, Paula comenta que “o melhor desses dez anos é sentir que nosso trabalho artístico tem sentido, que somos uma voz importante para dar visibilidade às injustiças e demandas do nosso povo Mapuche e não apenas esses, mas também de outros povos. Tem sido transcendental nesses anos nos darmos conta da importância de recuperar nossa memória, nosso patrimônio imaterial, língua, música e cultura, e reconhecer dessa maneira a identidade mestiça trazida em nossos corpos latino-americanos” [5].

Encontro-me, então, no primeiro sábado de março, num dia ensolarado, no Centro Cultural Oswald de Andrade, no bairro do Bom Retiro e tenho o enorme prazer de escutar uma moça, pequena, de cabelos longos e pretos, falar sobre seu potente trabalho de teatro documental.

Paula inicia a Roda de Conversa respondendo a perguntas sobre a situação atual do Chile. Conta que a revolta popular nas ruas continuava; aconteciam, ao mesmo tempo, festas, encontros, bebedeiras, resistências e tiros. "A cidade encontra-se em grande efervescência e caos; a polícia está brutal, atira nos olhos dos jovens que se sentem heróis". Trata-se de movimento da sociedade civil insatisfeita com a política neoliberal; as manifestações iniciaram-se com os estudantes e foram se estendendo para outros grupos da população.

Conta que 90% da população chilena tem origem Mapuche, ainda que não se reconheçam como tais. O mesmo deu-se com ela. Nasceu na cidade de Santiago, pois sua avó, Rosa Marileo Inglés, mudou-se quando criança para se tratar de uma doença, e a tradição indígena não foi transmitida para sua mãe. Foi esquecida. Assim se passou com muitos outros jovens chilenos, 3ª geração Mapuche, netos de avós que, em sua maioria, migraram de modo forçado.

Foi aos 14 anos que, pela primeira vez, conectou-se com suas origens indígenas. Em uma viagem, percebeu-se profundamente tocada pela sonoridade do canto Mapuche, "que aqueceu meu coração”. Essa experiência sonora ficou guardada em segredo com ela até que pode frutificar por meio de novos reencontros.

"Minha avó era xamã. Venho me vinculando aos poucos a essa espiritualidade, pois nasci desenraizada. Fui formada em música clássica, tocava violino. Houve um esquecimento de nossa origem, como aconteceu com muitos outros chilenos” [6].

No seu processo de formação em Artes Cênicas, com influência de seu professor Alfredo Castro, que via o teatro como uma ferramenta política, descobre que “a memória toma um sentido político quando posta na cena teatral” [7]. Ao final da faculdade, inicia com sua irmã um projeto de escutar as histórias de mulheres Mapuches, no Centro Cerimonial de Los Pueblos Originarios Mawidache <[8] , na periferia de Santiago. Nesse local mulheres Mapuches se encontram nasrukas, para compartilhar o mate e as sopaipillas (pãozinho frito chileno). Durante 7 meses, escutou, gravou e transcreveu todos os relatos, organizando uma dramaturgia sobre as memórias dessas mulheres, entre lembranças de rituais, histórias sofridas e pequenos contos. Desse projeto nasceu a primeira peça, ÑI PU TREMEN - mis antepassados (2008), que foi encenada pelas próprias mulheres, primeiramente nesse parque, Comuna de El Bosque (sul de Santiago), que além de abrigar uma comunidade indígena, promove e resgata a cultura Mapuche. Paula Gonzáles diz que, a partir desse momento, tomou para si a responsabilidade de trazer sua herança ancestral à visibilidade.

Em seguida, realizam GALVARINO [9], história de seu tio que foi exilado da ditadura militar. No entanto, essa montagem teve o efeito doloroso de reabrir feridas familiares e parou de ser encenada.

A obra TREWA. Estado/Nación el espectro de la tración (2013), surge de distintos eixos relacionados a situações de violência. O primeiro é estabelecido a partir de um convite do diretor da CIIR, Centro de Estudos Interculturais e Indígenas, para trabalhar junto a uma equipe de pesquisadores das Ciências Sociais. Nesse projeto conhece a pesquisa da antropóloga Helene Risor, sobre a PACI - Patrulha de Atenção a Comunidades Indígenas , um programa ambíguo da área de direitos humanos criado no primeiro governo de Sebastian Piñera. Trata-se de uma polícia comunitária que se vincula com a comunidade para ajudar as pessoas, andam desarmados; porém, quando ocorre um conflito territorial com quem está fazendo resistência, esses policiais, também chamados de carabineros, são enviados para reprimir as mesmas pessoas a quem tiveram de se vincular afetivamente. A dramaturgia da peça foi tecida com fragmentos de uma entrevista, anônima, com um carabinero de origem Mapuche, e aspectos recortados de outros dois eixos. Fragmentos das memórias de um dos atores, que viveu a violência do Estado durante a ditadura civil-militar, são mesclados com o assassinato de Yudy Macarena Valdés Munõz ocorrido em uma comunidade Mapuche do Sul do Chile. A partir de entrevistas com seu marido Rubén Collio, engenheiro ambiental, Paula resgata aspectos da história de luta dessa comunidade. O casal, recém estabelecido na região, percebe a violência das empresas australiana RP e a chilena de distribuição elétrica, Saese, em função de uma represa e terras da região. Começam a conscientizar e articular uma resistência da população local, o que leva ao assassinato de Macarena. Assim, TREWA foi construída por meio de uma dramaturgia cruzada, inspirada em fatos reais de violência que ocorreram no passado e no presente.

Devido ao convite do dramaturgo David Arancibia, começa uma nova pesquisa. Arancibia havia escrito uma crônica baseada em fatos reais de violência que aconteceram em comunidades Mapuches de Araucania, e em acontecimentos de desaparecimento de uma criança, baseado em uma cena deTerror e miséria do Terceiro Reich, de Bertold Brecht [10]. Nesse processo de pesquisa, Paula Gonzáles viaja para Cañete onde conhece Blanca Melin, que participa das reinvindicações políticas e territoriais no sul do Chile, encontrando outra história que repete a mesma violência contra o povo indígena da crônica de Arancibia. Desse entrecruzamento histórico nasce a peça ÑUKE. Una mirada íntima hacia la resistência mapuche (2016). Nessa peça, pretendeu situar o interior do conflito Mapuche [11], para que o público pudesse dar-se conta de que o que ocorre fora, sucede também no interior da família.

Essa peça acontece no interior de uma RUKA, que é um espaço sagrado para os Mapuches, “onde atores, músicos e espectadores compartilham o mesmo espaço, gerando uma atmosfera íntima que convida à reflexão em torno da violência histórica exercida contra o povo Mapuche” [12]. A Ruka circula desde 2016, em uma itinerância por diversos espaços de Santiago, o Centro Cultural Estación Mapuche, o Museu da Memória e dos Direitos Humanos, o Espaço de Memória Villa Guimaildi. No artigo, KIMVN teatro documental. A cena como lugar de resistência [13] , Carla Dameane Pereira Souza faz uma reflexão sobre a visualidade cenográfica da obra ÑUKE, citando a didascália que introduz o texto dramático: " Una ruka mapuche aparece como acto de resistencia el centro de la ciudad [14] . Na Ruka montada no Museo da memória, em novembro de 2018, ocorre o evento de lançamento do livro Dramaturgias de la Resistência: teatro documental KIMVN Marry Xipantv , em meio a grande comoção e protestos devido ao assassinato, pela polícia, do jovem Mapuche Camilo Catrillanca, em decorrência de “uma tensão político-étnica presente no Chile desde sua criação como Estado nacional” [15].

No mês de março de 2020, o grupo KIMVN estava programado para reapresentar a peça TREWA e lançar o primeiro disco homônimo da banda da companhia UL KIMUN canto à sabedoria, no espaço Matucana 100, em Santiago, assim como tinha uma programação agendada com o Sesc-SP. Essas atividades foram canceladas em função da pandemia.

UL KIMUN canto à sabedoria é um concerto musical que está baseado nas obras musicais criadas pela companhia para acompanhar as dramaturgias, convertendo-se em uma linguagem fundamental das criações cênicas, ao longo dos 14 anos de existência do grupo. Integra a música Mapuche, a linguagem mapuzungun, com instrumentos latino americanos e clássicos. A composição e direção musical são de Evelyn González Seguel co-fundadora de KIMVN TEATRO, junto com sua irmã [16].

ÜL KIMVN (Canto a la Sabedoria)



[1] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, onde pertence ao GTEP e ao Grupo de intervenção e pesquisa clínica: da gestação à primeira infância. Integrante do coletivo Escuta Sedes.

[2] Citado por Celso Favaretto na palestra “Ainda: Para além (ou aquém) da arte”. II Jornada de Filosofia, Arte e Estética da UNICAMP. Organizada pelo Grupo de Estudos em Estética e Teoria da Arte (GEETA) e o Centro de Pesquisa em Psicanálise. Acesso no youtube.

[3] Roda de conversa em 07 de março de 2020, no Centro Cultural Oswald de Andrade. As transcrições das falas da roda de conversa são da autora desse texto.

[4] Fonte: Facebook, KIMVN Teatro.

[5] Entrevista com Paula Gonzáles Seguel. In: Culturizarte, 19 de novembro 2018, na web. Companhia KIMVN Teatro completa 10 anos dando visibilidade às diversas problemáticas sociais, políticas e culturais do povo mapuche . Tradução livre da autora desse escrito.

[6] Idem, Roda de conversa de 07 de março de 2020.

[7] Artigo na internet. Paula Gonzáles, Diretora Mapuche: “Uso o teatro para visibilizar e denunciar a violência contra nosso povo”, de Paula Huenchumil, 27 de março de 2019.

[8] Gonzáles Seguel, Paula. Dramaturgias de la Resistência: teatro documental KIMVN Marry Xipantu, 2018, pp. 35-36.

[9] Apresentada em diversos CEU de São Paulo, em 2014, na IX Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo.

[10] In: Ibid cit., Entrevista Culturizarte, 19 de novembro de 2018.

[11] In: Fundación Teatroamil. Artigo de Carla Alonso Bertaggia. Ñuke és también la historia de mi familia por el lado materno. Data: 01/07/2016.

[12] Museu de la Memoria y los Direchos Humanos, Santiago. ww3.museodelamemoria.cl

[13] Dameane Pereira Souza, Carla. KIMVN teatro documental. a cena como lugar de resistência. In: Sala Preta - Revista USP, vol.19, no.1, 30 de agosto de 2019.

[14] Gonzáles Seguel, Paula. Dramaturgias de la Resistência: teatro documental KIMVN Marry Xipantu, 2018.

[15] Ibid. cit. Dameane Pereira de Souza, p.180.

[16] In: Ibid.cit., Entrevista Culturizarte, 19 de novembro de 2019.




 
 
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