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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    39 Setembro 2016  
 
 
CINEMA

ALICE ATRAVÉS DO ESPELHO, O FILME – UMA PEQUENA
RESENHA PSICANALÍTICA


RENATA CALIFE FORTES [1]



Nas salas de cinema desta grande cidade que não para, vale a pena assistirmos o novo filme de James Bobin sobre a segunda parte da obra de Lewis Carroll: Alice Através do Espelho [2]. No filme, o simpático Chapeleiro Maluco – ao deparar-se com um objeto de lembrança de seu relacionamento com o pai – começa a crer que sua família, antes tomada como morta, está viva. Diante desta possibilidade de reencontro, o Chapeleiro entra em enorme estado de apatia. Tomado pelo sentimento de culpa e vislumbrando a possibilidade de reparação, o Chapeleiro precisa resgatar seus familiares. Alice é convocada a ajudar o seu amigo. Ela e os amigos do Chapeleiro entendem que a única forma de reencontrar aquela família é apropriando-se do tempo e retomando os caminhos do passado.

Ah, o tempo! Como dizia o poeta:

És um senhor tão bonito
Quanto a cara do meu filho
Tempo tempo tempo tempo
Vou te fazer um pedido
Tempo tempo tempo tempo
Compositor de destinos [3].

Em sua saga para ajudar o amigo, Alice depara-se com o personagem do tempo que no filme é um senhor muito bonito e, por vezes, é também o vilão da história. O senhor Tempo diz à protagonista que não há como controlá-lo, nem há como voltar ao passado. O próprio tempo tenta explicar a Alice aquilo que Freud descreveu, ao longo de sua obra, sobre Princípio do Prazer e Princípio da Realidade [4]. É preciso esperar, adiar o prazer, para ter resultados mais seguros. Adiar, esperar faz parte da nossa educação pulsional.

Alice, entretanto, traduzindo a angústia humana diante do tempo e do passar incessante das horas, não aceita a existência do impossível. Ferraz [5], ao propor a recusa do tempo, de sua processualidade e de sua concretude aponta diversos caminhos psíquicos que o humano utiliza para diminuir tamanha angústia.

Alice utiliza-se de um deles: a recusa da impossibilidade de controlar o tempo. Tomada pela atmosfera de onipotência narcísica que o espectador deseja ver em seus heróis, Alice controla o tempo, condensa gerações e espaços dentro de um único cenário. O senhor Tempo tenta avisá-la e, afirmando ser invencível, alerta sobre a necessidade de aprender com ele, explica sobre o perigo de passado e futuro se encontrarem.

Sobre a invencibilidade do tempo já falamos. Destacamos, porém, o relacionamento de Alice e sua mãe; esta última, angustiada com o próprio envelhecimento, perturba-se com a jovialidade da filha.

O senhor Tempo alerta: passado e futuro não podem encontrar-se. Podemos pensar este alerta sob a ótica do princípio da inércia [6]. Freud, no Projeto, ainda atravessado por uma visão de neurologista, postulava esta tendência dos neurônios a dissiparem toda energia até torná-la zerada. No decorrer de sua obra, desenvolve o conceito de pulsão de morte [7], como um lugar inorgânico, onde não há desejo. Quando passado e futuro se encontram, não há espaço para o desejo, não há desejo. Faz-se uma tentativa de parar o tempo, porém, é o sujeito que cessa.

Acompanhando o delírio de Alice, voltamos ao infantil. Lá, nas reminiscências dos personagens, encontramos a rivalidade das irmãs (Rainha Branca e Rainha Vermelha). Elas disputam, inicialmente, o amor da mãe e, depois, a coroa do pai. Continuamos nos meandros psicanalíticos freudianos, observando as relações pré-edípicas e homossexuais da primeira infância e, no segundo momento, o desenvolvimento da feminilidade freudiana [8]. A coroa era um representante simbólico da autorização dada pela figura paterna à pequena rainha. A pequena Rainha Branca estava, a partir de então, autorizada a governar e a gozar. Caricata e inquietante de ver, a Rainha Vermelha vestida de toda sua maldade, reivindicando um lugar de amor.

Curioso observar que na obra freudiana a ascensão à feminilidade passa pela aquisição fálica. A potência fálica – o caráter ativo do sujeito - naquela época era considerada pela psicanálise freudiana como um dispositivo da masculinidade. Para ascender-se feminino, faz-se masculino. No lugar de chapéu, recebe-se a coroa. Freud não pode dar continuidade a este tema em sua obra. Além de julgar o feminino como algo extremamente enigmático, também ele foi vítima da invencibilidade do tempo. Os estudos sobre feminilidade se deram no final de sua obra, quando encontrava-se doente e com as dificuldades do avanço da idade.

O Chapeleiro Maluco, por sua vez, quer reencontrar o pai. Havia discutido com o patriarca antes do evento que culminará com o desaparecimento da família. Acredita que a sua agressividade na rivalidade paterna tenha destruído seus familiares. A reparação, bem como uma nova validação de sua identidade, garante que tanto pai quanto filho sejam detentores do falo, ou ainda detentores do chapéu.

Por fim, ao final de cerca de noventa minutos, o filme tem seu desenlace e os espectadores do tempo e do filme precisam separar-se desta viagem onírica de Alice. O Chapeleiro, em seu último diálogo com Alice acerca do sonho e da realidade, diz: “Quem pode dizer o que é um e o que é outro?”.

Saímos com esta frase do cinema. Quando Freud apresentou sua obra sobre os sonhos, lá em 1900 [9], já dizia que o sonho era a realização de um desejo. Alice através do espelho é um sonho, onde o desejo humano de termos o tempo sob controle é oferecido ao expectador. Sonho compartilhado, naquele momento somos todos Chapeleiros Malucos. Mas corra, o tempo não para, e você pode estar atrasado!




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[1] Psicóloga, administradora de empresas, psicanalista com especialização pelo Sedes Sapientiae, aspirante a membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.
[2] Através do Espelho foi publicado em 1872 por Lewis Carroll na Inglaterra.
[3] Música: Oração do Tempo, de Caetano Veloso.
[4] Freud, S. Formulações sobre os dois princípios do funcionamento psíquico. In Obras Completas, v.10, trad. Paulo Cesar de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
[5] Ferraz, F. A Recusa do Tempo. In Tempo e Ato na Perversão. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2010 – 2a ed.
[6] Laplanche, J. & Pontalis, J.B. Vocabulário de Psicanálise. São Paulo: Martins Fontes, 2001 – 4a. ed.
[7] Freud, S. Além do Princípio do Prazer. In Obras Completas, v.14, trad. Paulo Cesar de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
[8] Freud, S. Sobre a Sexualidade Feminina e Feminilidade. In Obras Completas, v.18, trad. Paulo Cesar de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
[9] Freud, S. A Interpretação dos Sonhos. In Obras Completas de Sigmund Freud: edição standard brasileira. Rio de Janeiro: Imago, 1996.




 
 
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