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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    54 Junho 2020  
 
 
LITERATURA

DRUMMOND E O CLARO ENIGMA DOS SONHOS [1]



KAREN CUNSOLO [2]



O tempo é a minha matéria. O tempo presente, os homens presentes
a vida presente

Carlos Drummond de Andrade



Apresentação

Sigmund Freud, em sua aventura rumo aos EUA, em 1909, teria tido uma epifania ao observar um funcionário do navio lendo a Psicopatologia da vida cotidiana. Ali, teria percebido que sua obra poderia extrapolar as conferências da comunidade médica e se consagrar através dos tempos.

Com este artigo, pretendo estabelecer relações entre a obra de Freud e a poesia de Carlos Drummond de Andrade. O poeta é mais um dos autores declaradamente impactados pelas descobertas da psicanálise, e sua inquietude diante da angústia dos homens chama a atenção do leitor mais atento.

Como jornalista aspirante a psicanalista, me propus o desafio de, pela primeira vez, abrir mãos dos fatos e observar a poesia, certa de que a objetividade, além de inatingível, não pode ser a única lente utilizada para compreender as causas e consequências do sofrimento humano.

Poesia da vida cotidiana

Carlos Drummond de Andrade foi um poeta da vida cotidiana. Ao observar as janelas, as bananeiras e o bonde que passa “cheio de pernas”, o autor mineiro chama a atenção para a nossa “vida besta” e angústia de viver num “mundo caduco” - expressão bastante adequada para o entreguerras, momento histórico em que sua obra emergiu, assim como o movimento modernista brasileiro.

Seu sensível olhar para o banal pode ser interpretado como uma certa desesperança diante do curso da história - talvez não seja mais o caso de cantar santos, cavaleiros e heróis salvadores. Ao mesmo tempo em que abandonamos algumas crenças, evoluímos com as ciências: este foi um período em que a humanidade questionou e descobriu muito a respeito de si própria - a historiadora Lilia Moritz Schwarcz chama o início do século XX de “tempo das certezas”.

A fé nesses homens incríveis e suas máquinas maravilhosas é o sentimento da virada do século. Sentimento esse que foi solapado por uma guerra e que, tanto na ciência quanto nas artes, deu lugar a novos olhares sobre o homem e seu lugar no mundo. Nesse contexto, para muito além do banal, Drummond cantou a angústia:

existe apenas o medo, nosso pai e nosso companheiro

ou

Meu Deus, por que me abandonaste
se sabias que eu não era Deus
se sabias que eu era fraco

Como diversos outros artistas de seu tempo, Drummond foi um leitor de Sigmund Freud. Em Os sapatos de Orfeu, biografia do poeta, o escritor José Maria Cançado revela que Drummond decidiu publicar, no terceiro número de sua Revista, em 1926, “a histórica conferência de Sigmund Freud proferida nos Estados Unidos sobre a sua descoberta do ‘inconsciente' e a capacidade da psicanálise para elucidar um pouco das nossas pulsões”.

Além dela, a conferência número 18, realizada em 1916, resume importantes descobertas de Freud acerca da fixação dos traumas na infância e sua importância na formação dos sintomas. No centro destas observações está a confirmação da existência do conceito central da psicanálise, o inconsciente – que, aqui, começa a deixar de ser um adjetivo para ser um substantivo.

Um dos casos apresentados é o da solitária paciente obsessiva que criou um extenso ritual para dormir – ritual esse que revelava seu desejo inconsciente de apartar os pais no momento de intimidade, dentro do quarto vizinho. Esta mulher apresentava grande sofrimento por não conseguir se livrar da angústia causada pelo ritual excessivo, mas ao mesmo tempo desconhecia o sentido de suas ações.

Freud compara o caso ao de uma paciente anterior, de Bernheim, que, hipnotizada, foi incumbida de abrir um guarda-chuva cinco minutos após despertar, e assim o fez, mas não tinha a menor ideia do motivo que a levou a realizar tal ação.

Ora, se a paciente hipnotizada não sabe de onde vem a ordem, e a outra paciente, já analisada pelo método de associação livre, em estado de consciência, também nada sabe sobre o motivo de seu sintoma, quem está no comando? Para Freud, são fatos como esses que confirmam a existência de processos psíquicos inconscientes. O conceito freudiano de inconsciente fundamenta a psicanálise como uma importante resposta à psiquiatria clínica tradicional daquele tempo, que, segundo Freud, “só conhecia uma psicologia da consciência” e não sabia como interpretar os sintomas não claramente expressos pelos pacientes.

Drummond e o inconsciente

Drummond, que lia Freud, que amava Shakespeare, que bebeu na fonte da mitologia e dos mais primitivos sentimentos humanos...

Uma das bases da teoria freudiana é o dedicado trabalho de observar a capacidade do inconsciente em produzir narrativas. Segundo o autor, a interpretação dos sonhos é “o mais seguro alicerce da psicanálise” e uma das importantes provas da existência do inconsciente.

O escritor e filósofo Luiz Alfredo Garcia-Roza chama o sonho de “o discurso do desejo”: trata-se de uma ação do inconsciente para expressar conteúdos reprimidos que falam em nome do desejo do sujeito. Para isso, escolhe o sono profundo e deforma esses conteúdos, criando roteiros muitas vezes intrincados e de complexa interpretação. Ainda segundo Garcia-Roza: “O sonho que recordamos após o despertar e que relatamos ao intérprete foi submetido a uma deformação cujo objetivo é proteger o sujeito do caráter ameaçador dos seus desejos. O sonho recordado é, pois, um substituto deformado de outra coisa, de um conteúdo inconsciente, ao qual se pretende chegar através da interpretação”.

Freud escolheu o ano de 1900 para publicar o que, no futuro, passou a ser o mais importante livro de toda a sua obra. Mesmo tendo terminado de escrevê-lo em setembro de 1989, teria considerado muito representativo “inaugurar o século” com tais descobertas.

Carlos Drummond de Andrade nasce em 1902 e tem sua juventude marcada pelo movimento modernista brasileiro. Desde o início, como vimos, sua obra trata de questões existenciais - do homem cantando seus conflitos muito mais do que seus grandes feitos, como aconteceu nas escolas literárias que precederam o Modernismo. Para o professor Antonio Candido, Drummond “nivela o Eu e o mundo como assuntos de poesia”.

De certa forma, a poesia drummondiana conversa com a psicanálise também neste sentido, o de dar protagonismo à subjetividade humana, aceitando o risco da exposição e do julgamento moral em nome da cura pela palavra. Ainda segundo Antonio Candido: "O constrangimento (que poderia tê-lo encurralado no silêncio) só é vencido pela necessidade de tentar a expressão libertadora". Esse “eu todo retorcido”, nas palavras do poeta, é um sujeito imperfeito, repleto de marcas, e, acima de tudo, sensível à sua realidade e fruto de sua história:

Tenho carinho
por toda perda minha na corrente
que de mortos a vivos me carreia
e a mortos restitui o que era deles
mas em mim se guardava.

O sonho na poesia

Um dos livros mais celebrados de Drummond é coletânea de poemas Claro enigma, de 1951. Nela, o poeta revela as diversas faces de seu desencanto diante de um mundo em constante guerra, como em “A um varão, que acaba de nascer”:

Todos vêm tarde. A terra
anda morrendo sempre,
e a vida, se persiste,
passa descompassada

Retrato desse mesmo pessimismo, o poema “Sonho de um sonho” é quase um lamento do eu-lírico diante da imposição da realidade sobre o que se deseja. À luz da psicanálise, pode ser interpretado como uma expressão da impotência do eu diante de todo o universo que não se apresenta durante a consciência.

Sonhei que estava sonhando
e que no meu sonho havia
outro sonho esculpido.

No trecho acima, o poeta me fez pensar no conceito de condensação, segundo o qual diversas ideias do pensamento inconsciente desembocam em uma única imagem no conteúdo manifesto, isso é, o relato do sonhador. Aqui, um sonho tem diversos outros “embutidos”, no que ele vai chamar, na sequência, de “infindável cadeia”:

Os três sonhos sobrepostos
dir-se-iam apenas elos
de uma infindável cadeia
de mitos organizados
em derredor de um pobre eu.
Eu que, mal de mim! sonhava.

Pobre eu, que, tanto em Freud quanto no poema, não é senhor nem de sua própria casa, ou seja, não domina nem sequer conhece os seus desejos.

A referência aos “mitos organizados” ao redor do sonhador também aparece na literatura psicanalítica. Freud mostra que muitos dos elementos presentes em sonhos remetem a importantes símbolos comuns à nossa espécie, independentemente do sonhador. Esses símbolos também estão presentes nas artes, nas religiões e nos mitos. Ao tratar dos processos oníricos, Freud cita Nietzsche, segundo o qual no sonho “prossegue atuando uma antiquíssima porção de humanidade, à qual dificilmente temos acesso por via direta”.

Essa “antiquíssima porção de humanidade” é chamada por Freud, em outra ocasião, de “pré-história do desenvolvimento humano”: para ele, o conflito psíquico é constituído de uma combinação entre frustração exterior e frustração interior – supondo que essa frustração interior tenha se originado de obstáculos externos reais na pré-história da nossa espécie.

Drummond, munido do sentimento do mundo, me leva a compreender que, ao redor de um único e complexo eu, há uma série de dores comuns à espécie.

Sonhei que os entes cativos
dessa livre disciplina
plenamente floresciam
permutando no universo
uma dileta substância
e um desejo apaziguado
de ser um ser com milhares,
pois o centro era eu de tudo

Todo sonho é sobre o sonhador. O eu-lírico se vê como “o centro de tudo” e, dentro da narrativa produzida por seu inconsciente, tem seu “desejo apaziguado”. No inconsciente, o desejo não conhece o não, e a premissa é a busca pela satisfação.

Se o desejo desconhece o não, o Eu busca acomodar as frustrações. Tomo um outro poema como uma espécie de alegoria do conflito entre Princípio de Prazer e o Princípio de Realidade, na qual Drummond coloca a realidade brasileira no papel de agente repressor do desejo do sonhador:

Eu estava sonhando.
E há em todas as consciências um cartaz amarelo:
"Neste país é proibido sonhar".

Em linhas gerais, Freud me explica a poesia de Drummond em sua inquietude, profundidade e interesse pela humanidade. De certa forma, tanto um quanto outro têm a palavra como ferramenta fundamental na busca pelo conforto, e, talvez, estejamos vivendo mais um momento histórico em que psicanálise e poesia são muito necessárias.

Estou preso à vida e olho meus companheiros.

Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considero a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANDRADE, Carlos Drummond. Antologia Poética. José Olympio, 1978.

ANDRADE, Carlos Drummond. Sentimento do Mundo. Companhia das Letras, 2012.

ANDRADE, Carlos Drummond. Claro Enigma. José Olympio, Record, 1987.

ANDRADE, Carlos Drummond. Alguma Poesia. Companhia das Letras, 2013.

CANÇADO, José Maria. Os sapatos de Orfeu: A biografia de Drummond. Biblioteca Azul, 2012.

CANDIDO, Antonio. Vários escritos. Ouro sobre azul, 2017.

FREUD, Sigmund. Conferências introdutórias à psicanálise. Companhia das Letras, 2014.

FREUD, Sigmund. A interpretação dos sonhos. Companhia das Letras, 2019.

FREUD, Sigmund. Estudos sobre a histeria. Companhia das Letras, 2016.

GARCIA-ROZA, Luiz Alfredo. Freud e o inconsciente. Zahar, 1987.

ROUDINESCO, Elisabeth. Sigmund Freud na sua época e em nosso tempo . Zahar, 2016.

SHWARCZ, L.M; COSTA, A.M. 1890-1914 – No tempo das certezas. Companhia das Letras, 2000.





[1] Este texto foi escrito como monografia do 1º ano do curso Clínica Psicanalítica: Conflito e Sintoma.

[2] Jornalista, aluna do 2º ano do curso Clínica Psicanalítica: Conflito e Sintoma.




 
 
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