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NOTÍCIAS DO SEDES
LUTO COLETIVO E PANDEMIA 2: RESSONÂNCIAS DE UM ENCONTRO TEÓRICO-CLÍINICO
CAMILA FLABOREA[1] No dia 24 de junho, o Departamento de Psicossomática Psicanalítica nos trouxe uma bela e necessária live intituladaLuto coletivo e pandemia. Como palestrante, Carla Penna, psicanalista carioca, estudiosa da interface entre fenômenos sociais e psíquicos [2]. O que passo a narrar é fruto do impacto e das reflexões disparadas por sua fala, tão consistente quanto mobilizadora, ancorada em anos de trabalho e pesquisa num campo que busca conectar o plano individual das experiências ao coletivo.
Aquela sessão começou com um silêncio arrastado. Ficamos assim, ela e eu, por uns bons minutos. Ela me pergunta: Você está aí, digo que sim, que estou; ela fala: Tive um sonho e desde aquela noite um verso do Cartola não me sai da cabeça, digo que estou ouvindo, ela canta, baixinho, sua voz de soprano... Deixe-me ir, preciso andar, vou por aí a procurar, rir pra não chorar…
Guardei minha identificação em silêncio. Tenho procurado frestas para respirar ou ao menos tentar encontrar alguma saída para a falta de sentido. Meu estado quase constante é o espanto. E ele não cessa de pedir trabalho psíquico em forma de fala, de sonho ou de silêncio - nas múltiplas tentativas de conexão e recolhimento, no balanço da administração possível dos dias e das horas.
E ela continuou: não me lembro direito do sonho, mas me lembro disso: Eu estava num elevador. Estava presa, tentava resgatar alguém que não conheço, acho que uma moça, não sei bem, outras pessoas me ajudavam. Quando achávamos que tínhamos conseguido, percebemos que era uma armadilha. Estávamos presos, num elevador cenográfico, parados, no mesmo lugar. Fazíamos tanto e não saímos do lugar. O tempo era circular. [3]
Me lembrei, de chofre, do ensaio de Julián Fuks intitulado Falência do tempo [4]. Ele fala de um “inchaço do presente” ... o tempo do sonho era circular, e minha paciente estava presa nele.
Mas já há algum tempo tenho me perguntado se de alguma forma não estamos todos, mais ou menos, presos nele, nesse tempo circular.
Estabilizado no platô de aproximadamente mil mortos por dia, o Brasil vive uma realidade que é um tronco com vários ramos. Carla Penna nos chama a atenção para dois desses ramos: o luto como fenômeno individual e simultaneamente coletivo, e os traumas gerados nessa pandemia.
Percebi desde cedo a solidão de quem é internado com Covid e, aos poucos, fui entendendo também que o ritmo das mortes, a proibição de aglomerações e o risco de contágio alterariam de forma contundente nossos rituais de cuidados e despedida. Imediatamente me perguntei como essas famílias poderiam lidar com esse isolamento e fazer esses lutos. Tudo tão rápido, tudo tão solitário. Intuía que era um campo delicado e finalmente encontrei uma fresta nas palavras desse dia, um respiro e um caminho possível de pensamento e metabolização. A saída de minha circularidade intrapsíquica.
Depois de uma introdução brilhante, Penna chega ao tema propriamente dito ao enunciar que “as consequências sócio-políticas desses processos de luto não feitos adquirem uma configuração especialmente relevante se a própria morte tem relação com situações políticas.”
Ora, a essa altura já podemos dizer com facilidade que a tempestade é uma só, mas os barcos são muitos. A desigualdade e a política mortífera que rege nosso país neste momento está escancarada. O rei está nu. Nós estamos todos nus, certificados por nossos privilégios, munidos de silêncios sobre o genocídio dos povos originários do Brasil, sobre a escravatura e o decorrente racismo estrutural, e sobre a desigualdade - que desde sempre nos assola, mas que hoje decide quem vive e quem morre de Covid-19.
Penna compara esse estado de coisas aos desaparecidos que nos assombram e esgarçam cada vez mais o laço com o Estado. E é assim que ela liga o luto individual ao luto coletivo, chegando ao luto transpessoal, aquele que demanda uma elaboração pessoal sobreposta a uma elaboração coletiva: “É preciso que haja uma legitimação da culpa ou responsabilização do Estado, seguida de uma reparação”. Ou seja, testemunho e reparação, na medida do possível.
A convidada finaliza dizendo que precisaremos de tempo para cuidar de tudo o que está em jogo e que algo do irrepresentável permanecerá. Mas que, ao mesmo tempo, é preciso criar espaço e tempo para a elaboração coletiva, ainda que o espaço público hoje só possa ser virtual. Sugere como abordagem possível para esse trabalho o sonhar social, que, grosso modo, pode ser definido como uma técnica terapêutica para grupos, que busca trabalhar e elaborar os sonhos individuais num nível coletivo. Como talvez o sonho, proposto aqui como exercício, possa ser pensado num nível coletivo.
E com a citação de Bernardo Toro, um filósofo latinoamericano, a representante do Sedes, Éline Batistella, nos diz que há chances de que a humanidade esteja se movendo “do paradigma do acúmulo para o paradigma do cuidado”.
Se encontrarmos uma brecha para o cuidado, uma fresta que se abra para a coletividade, com esperança madura (nas palavras da convidada), já não terá sido tudo em vão. E quem sabe nossos mortos poderão descansar em paz, se, ao retomarmos o rio do nosso tempo, seguirmos em direção a reparações e melhores dias. [1] Psicanalista. Aspirante a membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, integrante da equipe editorial deste Boletim. [2] https://www.youtube.com/watch?v=-PsHJRW2ikU [3] Todo o material clínico aqui narrado é estritamente fictício.
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