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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    60 Setembro 2021  
 
 
PSICANÁLISE EM PANDEMIA

TRAUMATISMO E MORTE


A escrita do traumático. O face a face com a morte



RENATA UDLER CROMBERG[1]



A morte é seca, disse um coveiro filósofo.

530 mil mortos. É um deserto árido. Acordar todos os dias com a certeza de uma desconcertante tragédia em curso e não conseguir ter muita noção do que é isso, este impalpável número de mortos do dia, a certeza deles, muitos. Torcer para serem menos e com tudo isso rearranjar o espaço psíquico interno para a vida e o vivo, o cuidado com o corpo e com a alma, as ligações com o dentro e o fora. Sentir conforto para poder confortar, cuidar autocuidando-se. Repetir o mantra e reza coletivos – álcool gel, máscara e distanciamento social –, mas sair na rua sem acreditar que não podemos mais ver a expressão dos rostos das pessoas e ter que perscrutar as expressões dos olhos. Manter o espaço autopoiético, auto criativo vivo e em ligação com os outros, suportar os momentos de inevitável tristeza e escapar do sem saída da melancolia a que o clima de destruição incita.

Difícil falar e analisar o que ainda está em curso na trágica pandemia no mundo e no Brasil. Mas difícil não falar do que é passar uma pandemia num país governado por Bolsonaro, que adotou uma política de negação da gravidade e das possibilidades de estancar a mortandade que o coronavírus desencadeia, espalhando-se pela população, e que deixa a boiada da destruição fazer terra arrasada da cultura, da educação, da ciência, dos índios, dos negros, das mulheres, das florestas e dos mares.

Mas se é difícil falar do atual, é possível evocar o passado para conferir alguma inteligibilidade ao presente; talvez assim seja possível sair do susto traumático e tecer pontos de contato que possam figurar e nomear o horror para tirar-nos do ódio impotente e da sensação de loucura esquizoparanoide que cinde o espaço externo e interno.

Escolhi três formas de aproximação evocando três experiências traumáticas e genocidas na história do século passado. Duas delas ocorreram poucos anos após a pandemia de gripe espanhola (1918-20), que durou uma década até terminar totalmente, dizimando entre 17 a 50 milhões de pessoas (mais mortos do que os deixados pela Primeira Guerra Mundial), mas que ficou emudecida sem homenagear suas vítimas no horror catastrófico do tempo entreguerras. As três situações dizem respeito a três dos problemas que enfrentamos agora no Brasil: a fome, o genocídio simbólico paulatino (dos dissidentes nos campos da cultura, da ciência, da educação, dos direitos humanos e das questões de sexualidade) e o feminicídio – que, aumentado na pandemia, coloca o país como um dos que mais mata mulheres no mundo.

1) Fome como política de Estado – Holodomor produzido por Stalin no comando da URSS, na Ucrânia. Holodomor é matar pela fome. Essa foi a política de Estado de Stalin para os ucranianos e caucasianos entre 1931 e 1933. Essa fome como instrumento de extermínio pelo bloqueio de alimentos trouxe um número enorme de vítimas: 4,5 milhões de pessoas estimadas na Ucrânia e mais 3 milhões nas demais regiões soviéticas. Esses são os números estimados depois das investigações realizadas após 1989 – quando se levantou o segredo de Estado dessa ação deliberada de extermínio pela fome visando ao povo ucraniano enquanto entidade sócio-étnica. A fome dizimou e deixou um legado de dor com marcas físicas e psicológicas profundas em numerosas famílias que nunca tiveram direito de expressar seu luto até 1989. O filme A sombra de Stalin, de 2018, traz o registro deste holocausto.

2) Os expurgos genocidas de cientistas como política de Estado – A política da fome abriu caminho para o Grande Terror de 1934 a 1939, com centenas de milhares de assassinatos e desterros. Desde o começo da década de 1930, o Congresso Soviético foi empoderado para estabelecer as linhas mestras dos futuros inquéritos sobre a natureza do homem e da sociedade, com novos limites ditados por razões mais políticas do que científicas ou intelectuais. Não são apenas as teorias que são criticadas, condenadas ou proibidas: ser publicamente identificado como teórico ou pesquisador que não estivesse trabalhando dentro do paradigma estreito estabelecido pelo Partido era um bilhete para o completo esquecimento profissional ou para possibilidades ainda mais ameaçadoras. A conexão entre investigação científica e ortodoxia política era tal, que cada erro no campo da metodologia de uma pesquisa era transformado inescapavelmente num erro político.

No mito primordial da origem do social e da cultura elaborado por Freud, os irmãos se uniram para matar o pai tirânico que detinha todas as mulheres do clã para si e expulsava os filhos varões da horda; depois, arrependidos, instituíram a proibição do assassinato do pai e o tabu do incesto, além da refeição totêmica a simbolizar o ato assassino e a ingestão das boas propriedades do pai. Para analisar a institucionalização do totalitarismo nos anos 30 (na Alemanha nazista e na União Soviética) ocorrida sem protesto substancial dos membros da sociedade, Belkin (1989) elabora o conceito de Édipo social; afinal, o fenômeno da cumplicidade no totalitarismo inverte a fórmula freudiana. Nele, os filhos juntam-se ao pai para matar-se (o artigo em jornal de Pedro Hallal, que correlaciona o número maior de mortos na pandemia com as cidades suicidas, de eleitorado predominantemente bolsonarista, ilustra isso). O Eu do homem soviético estava recheado de valores totalitários do regime e o papel de juiz intrapsíquico do supereu foi invertido para aceitar aquilo que, em condições normais, seria considerado moralmente inaceitável. O processo tende a afastar a relação do eu com o Isso, destruindo a integridade psicológica da personalidade individual. Como resultado, o supereu não sofre com os pecados do eu. A partir disso, os cidadãos eram capazes de delatar colegas, amigos e família e cometer crimes em nome do Estado, livres de punição do mundo externo e de culpa no mundo interno. A própria consciência era erodida e as pessoas viviam em um mundo de ilusões e irrealidade enquanto participavam da destruição da herança cultural do passado. Os perigos que enfrentavam os cidadãos soviéticos no resultado da experiência stalinista eram sérios, porque as promessas não realizadas do regime produziram formas extremas de comportamento. Rebelar-se contra o Sistema era agir de forma criminosa conforme definido pelos valores daquele Estado; comportar-se lealmente significava agir de forma criminosa, realizando as demandas do regime totalitário. A única escolha além dessa, que foi feita por muitos, era ficar apático e indiferente.

3) Estupro e o feminicídio como política de Estado – Os crimes de profanação, os crimes mais bárbaros, foram possíveis em Ruanda, como na Iugoslávia, nos anos 90 do século passado, graças à desigualdade extrema entre as partes presentes, milícias armadas contra civis desarmados. Ninguém escapa à ameaça das guerras sujas da limpeza étnica, muito menos as mulheres, o alvo principal. A violação é, por excelência, o crime de profanação contra o corpo feminino e, através dele, contra toda a promessa de vida da comunidade no seu todo. É uma tentativa de invadir o espaço histórico do outro, enxertando na sua árvore filial a criança do inimigo “étnico”; uma tentativa de intervir contra o elo de ligação, de quebrar a continuidade, seccionando-a por meio da violência através do ventre das mulheres: desta forma, a sexualidade dos homens da família é destruída e privada do seu efeito de produção de futuro. Na Bósnia Central, no Vale da Morte, no campo de concentração de Omarska, as mulheres foram vítimas de um crime oculto de guerra entre 1992 e 1995: a violação maciça. Muitas engravidaram e sofreram com o ódio que sentiam de seus filhos. Estima-se que entre 20 mil e 50 mil mulheres tenham sido violadas e torturadas só no ano de 1992. Muitos homens também foram violados, mas achar seu testemunho é mais difícil, provavelmente pela ferida de gênero. Soldados sérvios de 18 anos foram forçados a estuprar e muitos pediam desculpas no ouvido das vítimas enquanto faziam o que lhes impunha o dever de batalha. É difícil compreender as causas, no mundo contemporâneo, do uso criminoso da sexualidade com fins de destruição moral e política do inimigo coletivo. O filme A vida secreta das palavras [2] , de 2005, traz esse holocausto.

É preciso uma narrativa compartilhada para que os fantasmas do horror traumático possam se tornar apenas um murmúrio de fundo, no processo de resiliência que permite retomar algum tipo de desenvolvimento – apesar de todo o traumatismo e das circunstâncias adversas. Há uma reparação de uma ruptura. O traumatismo inscrito na memória passa a fazer parte da história do sujeito como um fantasma que o acompanha. A pessoa ferida na alma poderá retomar um desenvolvimento emocional, a partir do desvio pela violação traumática que rompe a bolha protetora de uma pessoa. É preciso construir paulatinamente um lugar onde a linguagem possa nascer como forma de curar a dor, resguardada, confinada ao segredo, ultrapassando-a. Os registros dos depoimentos de qualquer um dos traumatismos sociais – pandemia, matança pela fome, pela violência sexual, pelo racismo genocida, pelo terrorismo de Estado que silencia pela morte e confinamento – deve ser feito publicamente. Devem se constituir em monumentos, de circulação institucional e política, denunciando esse horror condenável, inaceitável, a ser combatido, falado, debatido para que cesse o pacto com a violação de qualquer direito da pessoa e com a vergonha de ter sido vítima.

A vida secreta das palavras é a busca incessante através dos fluxos invisíveis do sangue que corre nas veias, na pulsação dos afetos, dos caminhos de Eros; rio que torna possível, entre o silêncio e as palavras, a busca de uma fala que possa anular momentaneamente a dor e a morte, recuperando o sentido de ser e existir. Fala que é sempre em presença de uma escuta que se faz co-participante da criação de uma narrativa; uma fala que seja nascente de vida compartilhada no entre-dois, e depois, no entre-muitos, superação possível do traumatismo.

No campo da complexidade cada vez maior das nossas vivências num mundo globalizado, onde as informações nos invadem de todos os lados, de todos os lugares, propiciando um ambiente caótico, mas também transparências e possibilidades de discriminação de simbolizações possíveis, temos que traçar, com urgência, um binarismo essencial na vida social e política: há o campo democrático e o campo não democrático.

O campo democrático traz a complexidade da realidade que se traduz em diversidade, multiplicidade, horizontalidade, movimento e criatividade, que atravessa o campo conflitivo e que gera novas formas de convivência e solidariedade.

O campo antidemocrático é a simplificação da realidade que se traduz em eliminação da diversidade, na adoção de um modelo único de verdade, em uma verticalidade centralizadora e absoluta, e numa perversa erotização do ódio que elimina o diferente (colocado como opositor/inimigo). A morte do outro torna-se o instrumento político de um projeto paranoico de poder eterno e absoluto, um totalitarismo negador de todas as forças democráticas, que promove predação psíquica e social.

Quando Freud elaborou uma das polaridades que regem nossa vida pulsional, elaborou-as com a ajuda da literatura: pulsão masoquista e pulsão sádica. As literaturas de Sacher Masoch e do Marques de Sade serviram de objeto transformacional para a elaboração desses conceitos que dão conta das forças tectônicas de nossa natureza violenta e que as amansam para serem consideradas na mediação da cultura (amenizando seu impacto auto e hetero destrutivo). A arte, em todas as suas formas, tem este papel de objeto transformacional das forças construtivas e destrutivas da natureza, da nossa natureza humana, lançando-as no devir transformacional. No tempo da pandemia e do pandemônio louco do desgoverno no Brasil, as renúncias desencadearam os pequenos lutos que se tornaram, como as refeições, parte de nossa rotina (na formulação de Inês Loureiro). Felizmente as celebrações artísticas como o Raias Poéticas são também o alimento transformacional que gera novas aberturas, apesar da necropolítica, gera novos devires de um estar junto potente e criativo, que celebra a vida e o vivo que insiste pelas raias afluentes dos rios em que rimos e festejamos o estar juntos, alimentando-nos pelas nossas criações.

Cromberg, R. U., Traumatismo e Testemunho: a vida secreta das palavras. In Cassandra Pereira França (org) Ecos do Silêncio – reverberações do traumatismo sexual, São Paulo, Blucher, 2017.

Cromberg R.U., Psicanálise na Rússia. In Paulo Sérgio de Souza Jr (org.) A psicanálise e os lestes vol. 1, São Paulo, Annablume, 2017.

Loureiro, Inês, Caetanear – o que há de bom. In Pereira, Adriana B. & Coelho Jr., Nelson E. (orgs.) Sonhar - figurar o horror, sustentar o desejo, São Paulo, Zagodoni, 2021.

Hallal, Pedro, O negacionismo mata, publicado no jornal Folha de São Paulo em 25 de maio de 2021.





[1] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.

[2] Remetemos o leitor ao artigo publicado na edição 3 deste Boletim, A força das palavras, de Lilian Quintão: http://www.sedes.org.br/Departamentos/Psicanalise/index.php?apg=b_visor&pub=03&ordem=14 (N.E.)




 
 
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