ANA MARIA LEAL [2]
O mundo se organiza em injustiça e a injustiça acima de todos os
aspectos, compra os injustiçados. Compra o trabalho sem valor, compra o
corpo, uma performance a favor, e compra o espírito, o elo mais fraco. E
simplesmente não se deve falar nisso.
Thales Ab’Saber [3]
Inicio este comentário recorrendo a algo que me toca: a história do Brasil e, no caso, a do Estado de Goiás. Foi com surpresa que vi Marilucia falando da terra recém descoberta e ocupada pelo colonizador, dono de tudo: da terra, do gentio, dos escravos, dos sem nome.
Anomia, palavra central: falta de nome, falta de regra, falta de lugar, falta de nomeação. A autora começa lá atrás, por volta de 2000, com um primeiro trabalho de pesquisa, que considero embrião deste. Está preocupada com os efeitos que os rompimentos sociais estão causando na sociedade e na clínica contemporânea. Ao aproximar-se do tema vai criando modelos para entender a realidade.
Aqui, sou tomada pela Goiás que ela me apresenta. Me lembro dos bancos escolares e das Ciências Sociais, minha origem. Converso com minhas lembranças e sou atingida pela pesquisadora que traz dados e compreensões atualizadas destas referências. Entendo a história na carne e ainda não entendo porque tudo acontece.
Anomia é o nome que escolhe para sua dissertação de mestrado. Vem de lá o fio que vai desenrolar, até chegar aos “bobos” de Goiás. Figuras tão fortes e tão sem lugar. Tão úteis e desúteis. Tão na cara e tão escondidos.
Os que estão de fora, os bobos, ficam na linha de um delírio que parte em pedaços um social “acertado”, “normótico”. Os bobos apresentam uma imagem e linguagem cheia de conteúdos adversos e coloridos. É para estarem escondidos, mas não ficam. Escorrem por debaixo das portas, apresentam-se nas janelas.
É impossível esconder o óbvio quando se passa a ver e é esse o trabalho que Marilucia faz: mostrar.
É nessa Goiás multifacetada, que ela vai buscar a argila de sua história e da História. No meio da caminhada entre a Anomia e Os “bobos” em Goiás, Marilucia escreve, em co-autoria com Marco Aurélio Veloso, o livro: Seguir a aventura com Enrique José Pichon-Rivière: uma biografia. Mais um passo em direção à compreensão do social, agora, através da Psicologia Social e da genial invenção de Pichon sobre os grupos, a teoria do vínculo e do grupo operativo; a experiência acumulativa, essa experiência que se acumula e se transforma em conhecimento para si e para o outro, para o sujeito e para o social.
Encontrei, em Antoni Gaudí, a frase: Ser original é acercar-se das origens. É assim que Marilucia, envolvida na pesquisa, segue em busca de um conhecimento que a arranque do colo materno, partindo para uma entendimento mais universal e então lança luz sobre o fenômeno e o processo da cultura.
Renato Mezan [4] diz sobre a pesquisa em psicanálise: esta estória fala de mim. O pesquisador e a transferência que o modifica; a entrevista que cuida do outro: ali naquela escuta ele é o único, e o pesquisador também.
Luiz Claudio Figueiredo [5] traz uma ideia de que gosto: Não há descoberta do inesperado e invenção do novo, sem as irrupções inesperadas de nossos subterrâneos anímicos e corporais.
Já em Mauro Mendes [6], encontrei a ideia lacaniana: Aquilo que se acha é uma ruptura, uma descontinuidade, achado faltoso; perder para encontrar.
Eixos da Pesquisa
O trabalho da pesquisadora tem muitos eixos, vou me ater a dois que me chamam mais a atenção.
A tese da consanguinidade, ou seja, de que estes agentes apresentam deficiência - são bobos - pois são fruto de relações consanguíneas. Ela procura e acha, em Lévi-Strauss, elementos para superar este mito retirando a causação do biológico e do psicológico, situando suas contribuições no campo da cultura. Portanto daí a proibição do incesto.
Outra ideia é assentada na psicanálise e em sua leitura dos fenômenos sociais. Cito Marilucia: Por insistir na descoberta das nuanças dos circuitos associativos, permitindo trabalhar os processos psíquicos dentro de um contínuo, sem isolar polaridades, sejam elas normais ou patológicas: não se deixando enredar pelas tradicionais oposições entre certo e errado, sadio ou doente, ou pelos estigmas e preconceitos que o recobrem, a psicanálise faz seu lugar. Daí a ideia de tabu, da proibição do incesto, para a regulação dos ambivalentes sentimentos de amor e ódio e a complexidade do erotismo presente na circulação dos desejos.
Mas a meu ver a ideia mais original de que Marilucia vai lançar mão é a de um não-tabu, para explicar a falta de um lugar para os bobos, que não estão inscritos em lugar algum.
Para haver interdição, há de haver consideração. Algo a que se tem horror; a que não se pode atravessar, que não se considera, não conta. E na Vila Boa de Goiás, tudo isso é consentido. A sociedade se cala. Vemos nas entrevistas, o incômodo de se falar deles “os bobos”; o que vai desde um constrangimento até o apaziguamento de sentimentos “ruins”: onde o mal-estar fica para um outro.
Assim a naturalização do fenômeno está dada e em nenhuma instituição é contestada; nem nas famílias, nem na medicina, nem nas formações asilares e nem no poder político. “É assim que é” e Marilucia diz: “É assim que não é”.
Daniele Rosa Sanches [7], no texto A voz do Outro no débil, aborda a questão do deficiente a partir de sua pesquisa e encontra no ensino de Lacan saídas para explicações que podem conversar com as ideias de Marilucia.
Cito Daniele em “Conclusões parciais”: Ao construir sua hipótese: uma forma geral da loucura, o texto lacaniano acaba de oferecer um caminho esclarecedor para pensarmos a matéria prima em causa para o funcionamento do débil. Com isto não estamos nos levando ao regresso da pergunta etiológica, mas sim estamos tentando deslocar a noção de debilidade do universo da “inteligência” e tentando realocá-lo como um tipo específico de enlouquecer – um enlouquecer baseado no fenômeno da crença, mas uma crença qualquer, uma crença bastante específica dirigida a um só horizonte: A fé na identidade da voz do Outro, que o invade possuindo suas bases no ideal.
Para finalizar quero homenagear Marilucia. Me desloco de Goiânia para Brasília, movimento que ela também fez, antes de chegar a São Paulo.
Brasília, lugar de sonhos e frustrações. Trago um comentário de Lina Bo Bardi [8], alguém que Marilucia admira, falando sobre os 90 anos de Oscar Niemeyer.
As colunas do Alvorada viraram o marco nacional do desenvolvimento: marco dos caminhões pelas estradas, marco de lojas, de feiras, de padarias, de favelas e de residências finas. Bem, as multidões são a imagem dos supermercados, mas o orgulho popular é outra coisa: é a história de uma nação.
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[1] Originalmente apresentado em Diversidades analíticas, atividade do Instituto Vox de Psicanálise realizada em 28 de outubro de 2015.
[2] Psicanalista. Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.
[3] In Ensaio, fragmento. 205 apontamentos de um ano. São Paulo: Editora 34, 2014.
[4] MEZAN, Renato. Pesquisa em psicanálise: algumas reflexões. J. psicanal., São Paulo, v.39, n.70, jun.2006. Disponível em http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-58352006000100015. acessos em 25 nov. 2015.
[5] FIGUEIREDO, Luís Claudio; MINERBO, Marion. Pesquisa em psicanálise: algumas ideias e um exemplo. J. psicanal., São Paulo, v. 39, n. 70, jun. 2006. Disponível em http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-58352006000100017&lng=pt&nrm=iso. Acessos em 25 nov. 2015.
[6]Mendes Dias, Mauro. “O que significa fazer comentário de um texto?” Disponível em http://www.voxinstituto.com.br/comentario-de-textos-fundamentacao/
[7] Rosa Sanches, Daniele. “A voz do Outro no débil” In Mendes Dias, Mauro (org) A Voz na experiência psicanalítica. São Paulo: editora Zagodoni, 2014.
[8] Bo Bardi, Lina. Poemas , Testemunhos, Cartas – Depoimentos Históricos e Recentes Sobre a Obra e a Personalidade de Oscar Niemeyer. Instituto Lina Bo Bardi e Pietro Maria Bardi, Fundação Oscar Niemayer, 1998.