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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    47 Setembro 2018  
 
 
TEATRO

COMO SE TER IDO FOSSE NECESSÁRIO PARA VOLTAR


CRISTINA BARCZINSKI[i]


Se te parece pobre, Ítaca não te iludiu.
Agora tão sábio, tão plenamente vivido,
bem compreenderás o sentido das Ítacas.

Konstantinos Petrou Kavafis

No início a espera, um grupo de pessoas sentadas dentro de um ginásio. Alguns sabem a sequência, basta uma rápida pesquisa no Google para que algo da surpresa da sequência dos eventos se desfaça. Que desafio suportar uma dose mínima de desamparo nos dias atuais...

A produção do espetáculo chama o público, pedindo que organize uma fila, a repetir recomendações próprias a uma situação de emergência, quando a multidão em pânico pode provocar uma situação de perigo. A cena remete às imagens de refugiados que tentam desesperadamente atravessar as fronteiras pelo mundo afora. Embora, no teatro, a situação desperte comentários jocosos ao longo do deslocamento, aí começa uma experiência de estranhamento. “Todos os lugares são bons”, tenta tranquilizar a voz ao microfone, o que, ao contrário, parece reforçar a certeza de que alguns sairão perdendo, sobretudo se seguirem as regras. Todos querem o lugar melhor. Mas obedecem, contrariados, e são divididos em dois grupos, que assistem a partes diferentes da peça, num palco dividido por uma cortina metálica impressionante, que funcionará também como tela para a projeção de trechos filmados em cena pelo elenco.

Ítaca – nossa odisseia 1 , peça com a direção de Christiane Jatahy e livremente inspirada no poema de Homero, com o acréscimo de falas de refugiados e improvisações dos atores, desafia o lugar do público, que finalmente chega à encenação de uma festa um tanto decadente, com distribuição de chips de batata, amendoim e água. O fundo musical previsível, a animação forçada dos personagens, que se trombam em cena, já anuncia o desastre. Na entrevista feita pela diretora portuguesa Aída Tavares, Christiane comenta que “festa é o social, o lugar dos encontros, mas por trás temos nossas intimidades, melancolias, faltas, medos, sombras.” O ambiente é mesmo sombrio e um humor melancólico persiste nas falas alcoolizadas dos personagens. A plateia ri, enquanto se remexe nas cadeiras, desconfortável. Num dado momento, os dois grupos de espectadores são convidados a mudar de lado, gerando uma nova travessia.

Num dos palcos, Ulisses, rei de Ítaca, depois de naufragar na ilha de Ogígia, há sete anos tenta voltar para casa, sem saber se ainda tem uma. Foi seduzido por uma ninfa, Calipso, que busca convencê-lo a ficar. Ulisses abandonou seu reino, mulher e filho para lutar na guerra de Troia. Do outro lado, a cena transcorre em Ítaca, onde Penélope, mulher de Ulisses, acompanhada por seu filho Telêmaco, tenta resistir ao assédio violento de pretendentes que, rejeitados, põem-se a destruir o que encontram. Incompreensão raivosa entre homens e mulheres, manifestada no uso do francês pelos atores e do português pelas atrizes. Os transbordamentos de fúria se anunciam, nas trocas de acusação e na violência crescente entre os personagens.

Enquanto isto, delicados elementos (ou traços de memória) compõem a cena: uma das atrizes dedilha um violão e canta Maria Bethania de Caetano Veloso, composição que este dedicou à irmã quando exilado em Londres, durante o período da ditadura. A canção produz um efeito inquietante, um tom que mescla conformismo e esperança. Seria este um tempo que verdadeiramente já passou?

Ulisses lamenta ter destruído uma cidade pelo simples fato de que tinha poder suficiente para fazê-lo. Agora se atormenta por não saber o que vai encontrar quando voltar. Mas, assim como Caetano, todos sabemos que nossas cidades foram feitas para serem destruídas... Aliás, Freud afirma que, dada a mútua hostilidade primária dos seres humanos, a sociedade civilizada se vê permanentemente ameaçada de desintegração – o tristemente famoso Homo hominis lupo [ii] . Esta é a eterna história das guerras entre os homens, que expulsam populações de seus países, de suas casas, e que atualmente produzem no mundo um movimento de massas mais numeroso do que aquele que se seguiu à 2ª guerra. Como repete, amarga, a personagem Calipso,a guerra não é declarada, ela é permanente [iii].

A sonhada volta para casa de Ulisses, embora protegida pelos deuses, é coberta de incertezas. No relato de seu retorno à cidade natal, depois de libertado de Auschwitz, o escritor Primo Levi debate-se com as mesmas questões: E quanto perdêramos naqueles vinte meses? O que encontraríamos em casa? Quanto de nós fora corroído, apagado? Retornávamos mais ricos ou mais pobres, mais fortes ou mais vazios? Não sabíamos; mas sabíamos que nas soleiras de nossas casas, para o bem ou para o mal, nos esperava uma provação e a antecipávamos com temor [iv].

O palco começa a fazer água literalmente, obrigando os atores a arrastarem as pernas de um ponto a outro do palco, enquanto recitam suas falas. A água carrega os corpos, vivos ou mortos. A água está nas lágrimas saudosas de Ulisses, no mar do colérico Poseidon que, depois de inúmeras peripécias, finalmente o levará de volta, depois de vinte anos, para o desconhecido. Ainda um longo caminho de aprendizado o espera. Talvez possamos pensar o mesmo a respeito do risco à construção de um país verdadeiramente justo que se apresenta para nós, brasileiros, hoje. A diretora da peça, ao comentar os momentos frequentes de silêncio ao longo da peça, os compara àquele que antecede a eclosão de um tsunâmi – o silêncio cheio de tensão das palavras não ditas. Fiquemos, então, com os versos potentes de Maiakóvski:



O mar da história é agitado.
As ameaças e as guerras
Havemos de atravessá-las, rompê-las ao meio
Cortando-as como uma quilha corta as ondas[v]





[i] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise, professora do curso Clínica Psicanalítica: Conflito e Sintoma, integrante dos grupos de trabalho Sexta clínica, Medicações psiquiátricas em análise e da equipe editorial deste Boletim.

[ii] S. Freud – O mal-estar na civilização – pp. 133-134. Rio de Janeiro: Imago, 1974.

[iii] https://cacilda.blogfolha.uol.com.br/2018/07/27/abundante-itaca-abre-a-cortina-para-as-guerras-contemporaneas/

[iv] Primo Levi - A trégua. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

[v] Maiakóvski – “E então, que quereis?...” in Maiakóvski - Antologia Poética. São Paulo: Editora Max Limonad, 1987.




 
 
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