RENATA CALIFE FORTES [i]
E agora, José?
A festa acabou, a luz apagou, o povo
sumiu, a noite esfriou, e agora, José? E
agora, você? Você que é sem
nome.. .[ii]
O paciente chega para a primeira entrevista. Ao recebê-lo, penso, mesmo que de forma tola, tratar-se de mais um jovem a perguntar: é para esta festa que me convidaram?
Penso de forma tola, pois não cabe a mim antecipar o que traz aquele rapaz ao meu consultório. O cotidiano da clínica, porém, deixa o analista curioso sobre a repetição de discursos. Se por um lado, cada sujeito fala de si, em conjunto a fala vira ruído, vira música, vira uma festa ou justamente a falta dela.
Tenho recebido em meu consultório jovens, na faixa etária de 22 a 25 anos. Na maioria recém-formados, pertencentes a uma classe social elevada. Jovens que parecem ter nascido com a agenda pronta: escola bilíngue, atividade física, instrumentos musicais, robótica, raciocínio lógico, vivências internacionais, habilidades sociais, faculdades de primeira linha - aqui ou no exterior. Atribuir ao mercado de consumo a responsabilidade pela oferta e aos pais a eminente necessidade de adquirir todos os atributos intelectuais que prometem uma “vida de sucesso”, não me parece operativo para esta reflexão.
Ao ouvir cada paciente, a imagem que me ocorre é a de uma vida montada em formato de série americana, aquelas que vemos pelo streaming e para as quais esperamos um desfecho épico, uma epifania conciliadora de todos os nossos anseios e sentimentos. Estas famílias acreditavam ter os algoritmos de sucesso.
O enredo construído por e para estes jovens subentendia que, usufruídas todas aquelas oportunidades, a vida estaria ganha. Além disto, como alguém tão privilegiado poderia sentir-se desanimado, desencantado num país de tantos desencantos? Eram estas as perguntas, aquelas iniciais obviamente, conversas que estabelecemos quando encontramos alguém numa festa e tentamos quebrar o gelo.
Em seu livro O tempo e o cão, Kehl [iii]define a estrutura do depressivo como a de alguém que se refugia sob a égide da depressão para evitar o enfrentamento com um saber. A autora, porém, ressalta o contrário: é justamente o não enfrentamento deste saber conhecido pelo sujeito que o aniquila subjetivamente.
Os analisantes referidos neste breve pensar, se me permitem usar o plural, não estão, a meu ver, inseridos numa estrutura depressiva. Aqui vale uma ressalva: não estou definindo um diagnóstico, mas neste momento, a questão que se apresenta nestas análises não é contemplada pelo DSM IV [iv].Kehl, em sua referida obra, também o faz desta maneira, ao considerar as depressões sobretudo como uma estrutura de sobrevivência e estranhamento, sem reduzi-la a uma patologia tratada tão somente de forma medicamentosa.
Terminada a formação acadêmica, ao acessar o mercado de trabalho, há uma vivência de um grande dissabor. Não são jovens que se eximiram ou tivessem sido eximidos da vivência da castração. Ao contrário, viveram desde a infância em ambientes competitivos, lutando pela melhor nota, melhor colocação, melhor classe... melhor, melhor.... menor, menor, menor.
Um dos analisandos diz sobre sua habilidade de fazer sempre barulho, estava tentando repercutir em mim a ideia de um sujeito muito alegre, determinado, confiante, festeiro. E silenciou.
E diante deste silêncio é que penso poder começar o processo analítico. Utilizo de duas possibilidades teóricas para conduzir esta ideia. Remeto-me primeiramente a “Construções em Análise”[v], obra escrita por Freud no final de sua vida. Naquele texto, Freud considerava que, em muitos casos, a construção da história do sujeito era mais importante do que a interpretação. Tão importante quanto, penso eu, não excludentes. Diante dos analisantes era necessário iniciar a construção do próprio enredo. E para isso, cabia ao analista dar início ao jogo de palavras, de tal forma que o analisando pudesse construir perguntas, criar o seu próprio enigma. A possibilidade de o analista emprestar construções, sejam corretas ou não, permitirá ao sujeito novas lembranças, muitas possibilidades de negações e tantos outros deslocamentos, para os quais poremos à disposição nossa escuta atenta.
Outro jovem que veio me perguntar sobre “a festa”, disse: “me sinto como um coringa do baralho”. Pareceria de fato tratar-se de uma festa a fantasia. Uma definição encontrada para esta figura: “coisas ou pessoas neutras, que podem assumir uma posição ou valor de outras. Na linguagem informática, por exemplo, o coringa é aquele que significa qualquer caractere.” [vi]
O coringa é, portanto, aquela pessoa que está sempre disponível para ser aquilo que o outro necessita em determinado momento. Utilizo-me, então, de conceitos lacanianos para tentar dar conta desta fantasia. O caractere, ou qualquer símbolo, coloca este sujeito completamente imerso no desejo de atender ao desejo do Outro. Não estamos falando de uma psicose, de uma colagem. Ressalto um encadeamento de funções operacionais preventivas que colocam o sujeito no ritmo do Outro produtivo, efetivo, festeiro. Há nesta estrutura um Outro que convoca. O que me parece acontecer neste momento, é uma segunda constatação do Outro como faltante e de que a festa, de fato, não existe.
Neste momento de vida, estes jovens que antes tinham um “programa algoritmo de sucesso” estabelecido, sentem o desamparo de não saber sobre si. Considerando, com Lacan, que todos nós estamos submetidos ao Outro, e que existe a possibilidade de um trabalho de construirmos um saber inconsciente, a função da análise seria a da construção de uma cadeia de significantes que permita o sujeito ser o anfitrião de sua própria festa.
Saber sobre si, saber sobre a ética do seu desejo, saber sobre um ser dividido cuja unidade não existe. Novas fantasias, novos ritmos, novo barulho. Hoje não tem festa, há frestas, e se há frestas existe movimento. Para essa abertura, o analisante sempre será o meu ilustre convidado.
[i] Psicóloga, psicanalista, aspirante a membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.
[ii] Carlos Drummond de Andrade. José. In Poesias. Ed. José Olympio, 1943.
[iii] Kehl, Maria Rita. O tempo e o cão: atualidade das depressões. São Paulo: Boitempo, 2009.
[iv] Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais. 4ª. Ed.
[v] Freud, S. Obras Completas, volume 19. “Construções em análise”. Tradução Paulo César de Souza – 1º ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.
[vi] https://www.dicionariodesimbolos.com.br.