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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    55 Setembro 2020  
 
 
LEITURA

ANTÍGONA REVISITADA


Livro de Ingrid Vorsatz aprofunda a relação entre o universo trágico e a psicanálise



Rafael Pinto Morais[1]

 

Há certa excentricidade nas contribuições de Jacques Lacan à psicanálise. Sem estabelecer rupturas com o legado em mãos, Lacan soube interpretá-lo a partir de outras perspectivas e, por meio desse referencial aparentemente estranho, enunciar sentidos que até então estavam apenas potencialmente colocados na letra freudiana. Entre muitas outras, advém desse jogo sofisticado a instigante afirmação segundo a qual a psicanálise é uma ética.


Em Antígona e a ética trágica da psicanálise (Rio de Janeiro: Zahar, 2013), Ingrid Vorsatz empreende um trabalho minucioso em busca da compreensão do postulado lacaniano de que, para além de uma terapêutica, a psicanálise deve ser inscrita no campo da reflexão acerca da ação humana, pois sua enunciação diz respeito a um sujeito e suas implicações em face da Lei, do dever, do desejo.

Contudo, é um engano pensar que a autora se limita a um comentário elucidativo do conteúdo exposto no seminário A ética da psicanálise, o que, vale dizer, já seria de grande valia e mérito. Influenciada por Lacan também em seu modo de lidar com um arcabouço teórico, Vorsatz desloca o olhar e recolhe os bons frutos dessa descentralização.

Lacan tomou como paradigma da ética da psicanálise a peça Antígona , de Sófocles, e dedicou parte de seu seminário VII ao exame do ato da heroína. Vorsatz, por sua vez, recorrendo a helenistas de renome, como Vidal-Naquet, investiga todo o universo da comunidade política ática do século V a.C., o gênero tragédia em sua especificidade, as tramas de sentido do texto dramático de Sófocles, as ações da heroína em seu vínculo atípico com seus determinantes, o preço que ela paga por sua responsabilidade, sua solidão em vida e morte. Isso tudo faz com que as correspondências múltiplas entre a tragédia e a ética intrínseca à psicanálise, já tecidas por Lacan, ganhem frescor e maiores esclarecimentos ao leitor.

Todo estudo minucioso que Vorsatz conduz possibilita compreender em ampla extensão por que Lacan, ao formular a ética própria à psicanálise, elege precisamente Antígona, última parte da trilogia tebana. A heroína trágica – e seu homólogo, o sujeito da psicanálise, que eleva o desejo à condição de dever ético – realiza um ato cujos móbeis são injunções opacas provenientes de um campo que lhe é exterior e diverso, pouco acessível por meio de demandas de sustentação; é apenas a ação que dá, retroativamente, o caráter de causa a essas injunções. A relação de determinação em jogo entre o ato e seus móbeis é, portanto, marcada pelo princípio de uma causalidade a posteriori, o que garante justamente que a decisão seja livre, que seu agente deva ser o único responsável pelo passo que dá. Este é um dos muitos sentidos expressos pela máxima freudiana Wo es war, soll Ich werden (Onde isso era, devo advir), tão bem explorada no livro.

Em sua obra, Vorsatz expõe todas as ressonâncias do ato de Antígona no que se refere também à condição objetal a que alguém deve se conformar quando não cede de seu desejo. Em muito sentidos, Antígona representa o sujeito em reassunção de sua posição de descontinuidade com a cadeia significante que o constitui. Aqui, é muito elucidativo o contraste detalhado que a autora estabelece entre a heroína trágica e outra personagem emblemática da cultura ocidental, Hamlet, que se encontra vinculado ao campo da mestria e está paralisado justamente por saber demais. Como o neurótico que não afirma sua condição de desamparo e se refugia no (des)conforto dos apelos, o príncipe da Dinamarca fia sua ação a uma busca por conhecimento que nunca se completa e sempre precisa ser reposta, pois denuncia infinitamente a própria insuficiência para o ato.

Vorsatz não deixa de explorar ainda o caráter das ações de um sujeito que se lança ao movimento vertiginoso do desejo em sua incidência singular. Nesse ponto, reside uma das contribuições mais interessantes do livro. A ética trágica é tomada como radicalmente oposta à ética filosófica em suas mais distintas formulações. A título de exemplo, enquanto Aristóteles postula uma ética das virtudes e Kant funda uma Lei moral a partir de um formalismo purificado do mal dos afetos, lei de cunho incondicional, categórico e de aspiração universalizante, a ética em cena na tragédia ática, a mesma da psicanálise, se realiza a contrapelo do ordenamento universal do serviço dos bens, para usar os termos lacanianos novamente. Antígona, mais do que simplesmente desobedecer, está em um registro diverso daquele em que se encontram Creonte e as leis da polis: justificadas por certa racionalidade, estas são levadas adiante pelo governante como forma de garantir o bem da comunidade política. Da mesma forma, o sujeito da psicanálise não se confunde jamais com o bom cidadão; é seu desejo que o convoca e, quando advém em ato, dificilmente caminha rumo ao prescrito como o bem. Vale lembrar que, em Kant com Sade, o próprio Lacan dá um passo a mais e demonstra como a tentação para o bem se transforma justamente no caminho mais curto para o mal.

Historicamente situada entre a epopeia de Homero e o advento da filosofia e seu corolário - a ciência -, a enunciação trágica de Sófocles soube encenar a verdadeira dimensão da condição humana e abrir os caminhos para a compreensão da relação do sujeito com o desejo. Antígona e a ética trágica da psicanálise faz um exame detido de todo esse universo e ainda aponta para o fato de que, muitos séculos depois, coube à psicanálise resgatar esse saber perdido no tempo, soterrado pelo imperativo de ordem no plano da razão, pela exigência de felicidade no plano político. Depois de Freud, os homens até podem recuar, mas não precisam mais silenciar os efeitos de verdade de seus sintomas, dissimular sua angústia, abdicar de agir à luz das injunções que os habitam.

Por fim, uma palavra sobre o estilo. Uma das marcas da riqueza literária é o feliz encontro entre conteúdo e forma, e também nesse aspecto Ingrid Vorsatz é impecável. Sua escrita deixa um interessante testemunho a respeito do que ela mesma procura esclarecer com tanto rigor. Ao longo da obra, o próprio movimento de Antígona está presente. O leitor experimenta um texto espiralado cujos desdobramentos futuros estão sempre em aberto e, quando revelados, dão conta de significar o solo do qual emanam e fundar outros sentidos.





[1] Rafael Pinto Morais é aluno do curso Conflito e Sintoma, oferecido pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae. É formado em Filosofia pela USP e em Letras pela PUC-SP, onde também obteve o título de Mestre em Ciências Sociais.




 
 
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