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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    60 Setembro 2021  
 
 
PSICANÁLISE EM PANDEMIA

A ESCRITA DO TRAUMÁTICO
O FACE A FACE COM A MORTE.


ALCIMAR LIMA [1]



A escrita traz à tona o trauma.

Ouvir o murmúrio na roda do ruído.

O si se funda no instante do trauma.

A escrita deixa traços, rastros e expõe o indizível, o inaudito.

Põe nas páginas universos, une versos, poliversos, multiversos e cria o que o escritor não sabe.

Os traumas são esgarçamentos que não foram capturados e muitas vezes, nunca o serão. O traumático explode nossas mãos, juntamente com o nosso corpo sensível e psíquico. Pelas mãos escorrem nossas intensidades. No traumático perdemos substâncias. Nas pandemias, nas guerras, nos conflitos urbanos se perdem vidas.

Também são perdidas constâncias, hábitos, corpos, amigos, livros e a liberdade de voar nesse face a face com a morte.

A escrita traz à tona o trauma

Na escrita ouvimos o murmúrio na roda do ruído.

Quando falamos em morte logo surge em nós a palavra decomposição.

Decomposição dos corpos, decomposição das narrativas, decomposição do que somos e do que nos rodeia.

A sensação de si em si movimenta a chave na fechadura.

Na vida pulsa a composição; a composição da escritura, a musicalidade da escritura e o seu ritmo.

A vida é o campo das composições/decomposições. O traumático pode ser composto através da escrita.

Compor o traumático através da escrita é exprimir acontecimentos explosivos e avassaladores. É exprimir o impossível através da magia poética que é um voo sobre o precipício. A escrita pressupõe um distanciamento do traumático em si. Porém, aqui temos um paradoxo, pois, só podemos escrever sobre a morte se estivermos imersos nela.

Ouvir o murmúrio da morte no
Instante infinito em que movimenta a vida.

Nesse paradoxo, a escrita traz à tona o trauma. Neste instante infinito em que estamos frente a frente com a decomposição/composição, acontece a vida. Esta é a tecelagem da escrita, momento sombrio, triste, luminoso e alegre.

O escritor tecelão começa a tecer vivacidades que trarão para o seu tecido um clarão próprio, no qual enxergamos tramas e estampas, traumas e turbulências.

Composição e decomposição. Eis o movimento ético e estético da vida e da morte.

Ouço murmúrios nas rodas dos ruídos.

Os ruídos do traumático vão-se tornando ensurdecedores e escutá-los nos assusta e nos aterroriza. A escrita do traumático acontece quando estamos em contato com a decomposição em seus paroxismos.

A arte nesse instante nos salva. A pintura, através de suas pinceladas, com põe e decompõe constantemente. Com um pincel na mão o pintor compõe e concomitantemente decompõe o fundo ainda não preenchido da tela. Leonardo da Vinci tinha dificuldade em terminar seus quadros; queria perpetuar o movimento de criação. O branco da tela nunca existiu, assim como a folha em branco do escritor; eles estão embebidos das superfícies e das profundezas do artista num movimento de dobras e desdobras que compõem o devir.

Na escrita propriamente dita ocorre que riscamos, rasuramos, sublinhamos, pontuamos e apagamos. Todas essas intensidades pulsantes ganham textura e texto se estivermos encharcados dos estrondos que nos habitam nos meandros de nosso devir.

Nesse mergulho, a caneta passa a refratar nossa alma no papel.

A escrita traz à tona traumas.

Somos vida e morte em concomitância.
Em concomitância somos composições e decomposições.

Podemos escrever sobre o traumático porque este tem face, tem rosto, sempre mutável diante de nós. Sempre mutável, sempre diante de nós, face a face em interação e alteridade.

A escrita traz à tona traumas.

Esse face a face com a morte existe e insiste, pois sua presença se exprime, comprime, expande, grita e silencia.

Nos tornamos outro através da escrita. Nos decompomos e nos compomos em diversos compassos, num remoinho que forma para se decompor sempre.

Nesse instante sem tempo cronológico, uma marca se impõe flui e frui. A magia da escrita do traumático habita esse não tempo e não lugar. Mítico, portanto.

Esse tempo mítico dos extremos da decomposição de si e do texto é uma potência compositiva que atravessa as mãos do escritor, produz o texto que surge como uma miríade e ganha horizontes, pontes, planícies e planaltos; ganha dimensões entre o ruído e o murmúrio.

Entre o murmúrio e o grito, um compasso de cores e de letras pulsam coreografias. Esse ritmo sonoro de múltiplos matizes tonalizantes coreografam uma dança de palavras, parágrafos e páginas provenientes do face a face com a morte.

Pontuações pulsam.
A escrita traz à tona traumas.





[1] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, professor no Curso de Psicanálise.




 
 
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