ALCIMAR LIMA [1]
A escrita traz à tona o trauma.
Ouvir o murmúrio na roda do ruído.
O si se funda no instante do trauma.
A escrita deixa traços, rastros e expõe o indizível, o inaudito.
Põe nas páginas universos, une versos, poliversos, multiversos e cria o que o escritor não sabe.
Os traumas são esgarçamentos que não foram capturados e muitas vezes, nunca o serão. O traumático explode nossas mãos, juntamente com o nosso corpo sensível e psíquico. Pelas mãos escorrem nossas intensidades. No traumático perdemos substâncias. Nas pandemias, nas guerras, nos conflitos urbanos se perdem vidas.
Também são perdidas constâncias, hábitos, corpos, amigos, livros e a liberdade de voar nesse face a face com a morte.
A escrita traz à tona o trauma
Na escrita ouvimos o murmúrio na roda do ruído.
Quando falamos em morte logo surge em nós a palavra decomposição.
Decomposição dos corpos, decomposição das narrativas, decomposição do que somos e do que nos rodeia.
A sensação de si em si movimenta a chave na fechadura.
Na vida pulsa a composição; a composição da escritura, a musicalidade da escritura e o seu ritmo.
A vida é o campo das composições/decomposições. O traumático pode ser composto através da escrita.
Compor o traumático através da escrita é exprimir acontecimentos explosivos e avassaladores. É exprimir o impossível através da magia poética que é um voo sobre o precipício. A escrita pressupõe um distanciamento do traumático em si. Porém, aqui temos um paradoxo, pois, só podemos escrever sobre a morte se estivermos imersos nela.
Ouvir o murmúrio da morte no
Instante infinito em que movimenta a vida.
Nesse paradoxo, a escrita traz à tona o trauma. Neste instante infinito em que estamos frente a frente com a decomposição/composição, acontece a vida. Esta é a tecelagem da escrita, momento sombrio, triste, luminoso e alegre.
O escritor tecelão começa a tecer vivacidades que trarão para o seu tecido um clarão próprio, no qual enxergamos tramas e estampas, traumas e turbulências.
Composição e decomposição. Eis o movimento ético e estético da vida e da morte.
Ouço murmúrios nas rodas dos ruídos.
Os ruídos do traumático vão-se tornando ensurdecedores e escutá-los nos assusta e nos aterroriza. A escrita do traumático acontece quando estamos em contato com a decomposição em seus paroxismos.
A arte nesse instante nos salva. A pintura, através de suas pinceladas, com põe e decompõe constantemente. Com um pincel na mão o pintor compõe e concomitantemente decompõe o fundo ainda não preenchido da tela. Leonardo da Vinci tinha dificuldade em terminar seus quadros; queria perpetuar o movimento de criação. O branco da tela nunca existiu, assim como a folha em branco do escritor; eles estão embebidos das superfícies e das profundezas do artista num movimento de dobras e desdobras que compõem o devir.
Na escrita propriamente dita ocorre que riscamos, rasuramos, sublinhamos, pontuamos e apagamos. Todas essas intensidades pulsantes ganham textura e texto se estivermos encharcados dos estrondos que nos habitam nos meandros de nosso devir.
Nesse mergulho, a caneta passa a refratar nossa alma no papel.
A escrita traz à tona traumas.
Somos vida e morte em concomitância.
Em concomitância somos composições e decomposições.
Podemos escrever sobre o traumático porque este tem face, tem rosto, sempre mutável diante de nós. Sempre mutável, sempre diante de nós, face a face em interação e alteridade.
A escrita traz à tona traumas.
Esse face a face com a morte existe e insiste, pois sua presença se exprime, comprime, expande, grita e silencia.
Nos tornamos outro através da escrita. Nos decompomos e nos compomos em diversos compassos, num remoinho que forma para se decompor sempre.
Nesse instante sem tempo cronológico, uma marca se impõe flui e frui. A magia da escrita do traumático habita esse não tempo e não lugar. Mítico, portanto.
Esse tempo mítico dos extremos da decomposição de si e do texto é uma potência compositiva que atravessa as mãos do escritor, produz o texto que surge como uma miríade e ganha horizontes, pontes, planícies e planaltos; ganha dimensões entre o ruído e o murmúrio.
Entre o murmúrio e o grito, um compasso de cores e de letras pulsam coreografias. Esse ritmo sonoro de múltiplos matizes tonalizantes coreografam uma dança de palavras, parágrafos e páginas provenientes do face a face com a morte.
Pontuações pulsam.
A escrita traz à tona traumas.
[1] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, professor no Curso de Psicanálise.