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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    47 Setembro 2018  
 
 
TEATRO

VULCÃO E FRAGILIDADE


MARIA CAROLINA ACCIOLY[i]

Sou habitada por um grito
Toda noite ele voa
À procura, com suas garras, de algo para amar.

Tenho medo desta coisa escura
Que dorme em mim;
O dia todo sinto seu roçar suave e macio, sua maldade.

Sylvia Plath[ii]



Fui à estreia da bela peça Cérebro-coração, um monólogo de Mariana Lima, uma peça/performance/aula. As primeiras experiências desse processo foram em escolas públicas do Rio. As primeiras mesmo, na verdade, parece que foram para amigos. Do íntimo ao público. Um processo que se fez em movimento e também a partir da escuta e dos efeitos produzidos nos outros. Memórias e narrativas pessoais - ficcionais intrincadas com arte e literatura, neurociência, psicanálise... fragmentos de discursos sobre a fragilidade humana, mas também sobre a força da vida, sobre sinapses, sobre memória, sobre o agora, sobre dor, sobre deprimir-se, sobre afetar-se, sobre o corpo e a borda e o corpo sem borda. Resultado de um processo de escrita, processo criativo e fantasioso, de transbordamento e de elaboração.

A fantasia e seus produtos ficcionais, essa metamorfose sublimatória pela qual a escrita pode transformar e transformar os sujeitos (o escritor criativo e o receptor do produto ficcional) é um processo psíquico presente desde a mais tenra infância. Freud (1908) [iii] ao conceituar a fantasia como realização de desejo fala que o processo psíquico do fantasiar articula os três registros temporais - passado, presente e futuro - “entrelaçados pelo fio do desejo que os une” (p.138). Uma situação do presente desperta um desejo e/ou remete a uma experiência do passado na qual esse desejo fora satisfeito ou frustrado, e se projeta a realização do desejo no futuro. Nessa alquimia de lembranças e pulsões se criam fantasias, sonhos, sintomas, poemas, entre tantas outras produções que o psiquismo humano é capaz de inventar.

“A Dichtung parece designar um processo de elaboração psíquica que consiste em transformar as imagens sensoriais, os sentimentos e afecções da alma humana em figuras de linguagem, um dizer poético que preserva em si mesmo o frescor das experiências primitivas e originárias” (p.18) [iv].

O texto ficcional, poético, consegue evocar o efeito transformador de fazer poesia das dores pessoais, fazer fantasia da crueza do real. O efeito da peça evocou em mim a escuta clínica de pacientes que, ao falar, esboçam ficções e elaborações para a força pulsional e para as angústias inomináveis. Mariana no palco falava de um vulcão prestes a transbordar, da memória viva afetando o corpo do agora e reativando sinapses, do cérebro traumatizado e ensanguentado precisando despressurizar, um vulcão real e um vulcão fantasia. Texto performático que foi construído como tentativa de elaborar dores e perdas da autora, e de certa forma, de todos nós. Na performance, num momento de intensidade afetiva, onde atriz e cenário transbordam, ela encontra uma pedra, guardada, escondida, esquecida e silenciada que traz uma mensagem, uma mensagem de dores históricas e transgeracionais. Ela escuta. A dor compartilhada. Então ela e o cenário se recompõem. E a peça segue seu caminho.

O vulcão, essa estrutura geológica criada quando o magma transborda para a superfície da terra, abrindo uma brecha na superfície, me fez pensar nos sintomas que emergem na clínica contemporânea - adições, pânico, ansiedade, depressões, estados-limites, autolesões, etc. – e as teorias que vão sendo reconstruídas a partir da escuta e prática clínica, por exemplo, pensar numa fragilidade egóica associada a um supereu feroz que exige o gozo constante dos sujeitos.

Sujeitos estes que, para serem felizes na nossa sociedade neoliberal globalizada, precisam ser “empreendedores”[v] de si mesmos, autênticos, produtivos, pois são supostamente livres para decidirem a própria vida. Um vulcão que pressiona. Pressão para ser feliz, para consumir, para produzir, para desejar, para se medicar, para amar, para se cortar, para emagrecer, para (não) ser mãe/pai, para decidir, para não parar, para escrever, para sublimar, para criar.

Foucault, em O corpo utópico[vi] , fala do corpo como o lugar ao qual estamos condenados, esse real ao qual estamos condenados, pois, segundo o autor, ao adoecermos ou sentirmos dor tornamo-nos coisa. Coisa frágil. Para a psicanálise, o corpo, essa forma cheia de órgãos e líquidos que pode morrer por acaso, não se reduz ao registro biológico, é um corpo pulsional, um corpo afetado, um corpo que afeta, um corpo com história e pré-história. Podemos sentir uma dor causada por uma doença orgânica ou provocada por uma patologia psíquica. A dimensão da coisa articula-se com a dimensão simbólica. A pulsão é este conceito-limite: não há corpo sem psiquismo nem psiquismo sem corpo. Ainda assim, podemos estar onde nosso corpo não está, podemos brincar, devanear, fantasiar, criar a partir ou apesar do próprio corpo, do traço psíquico originário de cada corpo-sujeito, assim como das novas inscrições.

A mediação do Outro no processo de constituição do corpo e do psiquismo produz a capacidade psíquica de pensar, fantasiar, representar, o que permite aos sujeitos não ficarem capturados no impacto sempre traumático dos excessos pulsionais. Criar (e/ou ser afetado por) uma obra de arte ou uma peça literária intrinca ficção e verdade, faz circular pulsões, produz efeitos simbólicos e afetivos, possibilitando um processo de ressignificação da própria história e dos acontecimentos traumáticos que por vezes nos acometem. A experiência analítica, assim como a experiência artística e ficcional, pode produzir essas brechas no sujeito, brechas por onde a lava do vulcão pode sair, como lava ou fumaça, ou apenas um gesto, um grito, um silêncio, uma figura, uma representação, uma memória, uma música, uma letra; brechas por onde é possível o corpo respirar, trocar com o campo do Outro, e não explodir.



[i] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Sedes, onde participa da equipe editorial deste Boletim, do grupo O feminino e o imaginário cultural contemporâneo e do GTEP.

[ii] Trecho do poema Olmo In Plath, Sylvia. Ariel; trad. Rodrigo Garcia Lopes, Cristina Macedo. 4a ed. – Campinas, SP: Versus Editora, 2018.

[iii] Freud, S. 1907/8. Escritores Criativos e Devaneios. IN: FREUD, S. 1996. Rio de Janeiro: Imago.

[iv] Mango, Edmundo Gomez. Freud e os escritores/ Edmundo Mango, J.- B. Pontalis; trad. André Telles – 1a ed. – São Paulo: Três Estrelas, 2013.

[v] Dardot, Pierre. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal / Pierre Dardot; Christian Laval; trad. Mariana Echalar. – 1 ed. – São Paulo: Boitempo, 2016.

[vi] Foucault, Michel, O corpo utópico; As heterotopias. Trad. Salma Tannus Muchail. – São Paulo: n-1 edições, 2013.




 
 
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